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Algumas hipóteses de cabimento e descabimento em mandado de segurança individual

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22/09/2004 às 00:00
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4 –Hipóteses legais de descabimento e suas exceções:

Feita uma breve explanação a respeito da possibilidade genérica de cabimento do mandado de segurança, baseada num processo de dedução da norma constitucional prescrita no art. 5º, LXIX da Carta, agora serão analisadas as hipóteses legais de descabimento da referida Ação Constitucional, expressas no art. 5º I, II e III da Lei 1.533/51.

De acordo com o art. 5º da Lei do mandado de segurança, não é possível a impetração quando se tratar:

I-de ato que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução;

Devemos ter cuidado ao interpretar a citada norma, sob pena de faze-lo incorrendo em inconstitucionalidade.

Seguindo o pensamento de Norberto Bobbio, manifestado em sua Teoria do Ordenamento Jurídico (1999:76), o mais correto em caso de antinomia é recorrer a uma interpretação sistemática que é, nas palavras do jurisfilósofo italiano:

Aquela forma de interpretação que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento, ou, mais exatamente, de parte de um ordenamento(...) constituam uma totalidade ordenada(...) mesmo indo contra aquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal". Devemos, portanto, interpretar as normas não isoladamente mas em concordância com o "espírito do sistema" que, sem dúvida tem seu âmago na constituição federal.

Estabelece o inciso XXXV do artigo 5º da nossa atual Carta Constitucional que "a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito". Daí infere-se, conforme doutrina do jurista Heraldo Garcia Vitta, algumas situações:

a) Quando o recurso administrativo é concedido com efeito suspensivo e sem a exigência de caução contra ato comissivo de autoridade: aqui, de fato não há que se falar na concessão da segurança, pois haveria carência por falta de interesse jurídico em razão do direito já ter sido plenamente assegurado pelas vias administrativas;

b) Porém, não podemos dizer que é impossível à impetração, sob pena de ferir a supramencionada norma constitucional, em ocorrendo a preclusão do recurso administrativo mesmo que este exista em tese. Há autores que vão mais além: Hely Lopes Meireles (1999:22) afirma ser possível optar a qualquer tempo pela impetração do mandado de segurança ou do recurso administrativo. Oposto a isso, Sávio de Figueiredo Teixeira e Milton Flanks apontam para o dever de exaustão das vias administrativas visão esta atualmente superada pela doutrina e jurisprudência.

Como melhor caminho entendemos, no rastro de Hely Lopes Meireles, que a possibilidade de pleito através das vias administrativas em que possa ser conferido efeito suspensivo ao ato praticado, não impede a propositura do mandado de segurança; tal circunstância por mais que esteja positivada no art. 5º, I da Lei 1533/51, fere frontalmente o, supramencionado art. 5º, XXXIV da Constituição Federal, que repele a exclusão da apreciação do poder judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito.

Assim, interposto ou não recurso administrativo, caberá a impetração de mandado de segurança, desde que atendidos os seus requisitos constitucionais. O alcance da norma referida norma infraconstitucional, restringe-se, ao nosso ver, aos casos em que seja interposto o recurso administrativo e lhe tenha sido conferido o efeito suspensivo a tempo de assegurar o direito violado, pois nesta circunstância verifica-se manifesta falta de interesse processual na impetração do mandamus.

Por último, resta mencionar a súmula que acabou com a polêmica dos atos omissivos de autoridade. Pois quando o ato é desta natureza de nada adianta um recurso administrativo com efeito suspensivo. Aqui o que se pretende é exatamente a realização de ato para o qual autoridade se omitiu. Através da Súmula 429 o STF dirimiu as dúvidas a respeito do tema, preceituando que "A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso do mandado de segurança contra omissão de autoridade".

II-de despacho ou decisão judicial quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição;

Também, sob pena de carência de ação, não se deve utilizar o mandado de segurança quando há algum meio mais específico para atacar a ilegalidade de ato judicial, com o qual se obterá os mesmos efeitos do "remédio heróico".

Pretende a Lei evitar o que ocorreu, por exemplo, no México com o Judicio de Amparo, fonte de inspiração do mandado de segurança, que acabou funcionando como sucedâneo de recurso judicial.

A determinação legal foi reforçada pela Súmula 267 da Suprema Corte onde se coaduna que "não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição".

Vê-se que as possibilidades de impetração do mandado de segurança contra ato judicial ficam, pois, restritas aos casos em que não houver recurso adequado ou, como vinha sendo reiterado pela jurisprudência, para dar efeito suspensivo ao recurso quando a este não fosse dado tal efeito.Vejamos as duas hipóteses:

Em não havendo recurso adequado para combater a ilegalidade praticada por autoridade judicial (e sendo a correição ineficaz pela natureza da situação), cabe a impetração para fazer valer o direito líquido e certo do coagido.

Uma hipótese seria a da impetração para atacar decisão liminar prolatada em mandado de segurança, para os que sustentam ser incabível recurso de agravo contra em tal situação. Assegura o Ministro do STJ Dr. Milton Pereira, "Não se pode em situações excepcionais(...)deixar de conhecer do mandado de segurança impetrado contra despacho em outro mandado de segurança, posto ser contra aquele ato cabível nenhum recurso, inclusive agravo de instrumento" (RMS- 5248-6/RJ).

Quanto a impetração do mandado de segurança para dar efeito suspensivo em sede de recurso, aconteceu que a Lei 9139/95, que alterou o art. 558 do CPC, permite ao relator suspender o cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da Turma ou Câmara, impossibilitando com isso, o uso de mandado de segurança ou de Cautelar para dar efeito suspensivo em decisão interlocutória agravada.

Se o efeito suspensivo não for dado pelo Relator por abuso de poder ou ilegalidade, caberá Agravo Regimental ao órgão colegiado para atacar tal ato omissivo. O que assevera a jurisprudência atual é a impossibilidade de impetração direta para dar o efeito suspensivo ao recurso sem utilização do meio específico, qual seja requerimento ao Relator do agravo.

Outra circunstância se evidência na seara dos Juizados Especiais, onde também não cabe qualquer recurso contra as decisões interlocutórias, salvo pedido de reconsideração que tecnicamente não se configura como recurso. É cabível, pois a impetração do mandado de segurança para repelir eventual ilegalidade ou abuso de poder praticado pela autoridade judicial.

III-de ato disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou por inobservância de formalidade essencial.

Esta hipótese de descabimento está relacionada com a impossibilidade da impetração de mandado de segurança para atacar o mérito de ato administrativo discricionário, pois a mobilidade deste é de manuseio exclusivo do administrador.

No dizer de Milton Flanks (1980:187):

Exclui-se da censura judicial, e, por conseguinte, do campo de aplicação do mandado de segurança, desde que não eivados de vícios que o nulifiquem, o ato discricionário, resultante da faculdade que se reconhece à administração de apreciar o valor dos motivos e determinar o seu objeto.

      Ao ato disciplinar, que é o ato de punição à indisciplina de servidor público, pelo conteúdo discricionário que resguarda, é vedada a revisão através de mandado de segurança; tal hipótese de descabimento, para que não haja divergências, vem expressa em Lei (art. 5, III, Lei 1.533/51).

Contudo, apesar da proibição legal, existem as ressalvas instituídas pelo próprio inciso em estudo, segundo o qual é possível repressão ao ato disciplinar por meio do mandado de segurança quando ocorrer ilegalidade ou, mais precisamente, quando praticado por autoridade incompetente ou em desacordo com formalidade essencial.

Veja-se que aí não se estaria adentrando no poder exclusivo da Administração de análise do mérito administrativo, mas apenas cumprindo o dever constitucional do controle judicial da legalidade dos atos administrativos.

Como já foi elucidado acima dentro das hipóteses genéricas de cabimento, em havendo qualquer ilegalidade praticada por autoridade caberá a impetração do mandado de segurança. Não seria diferente com o ato disciplinar. Se a autoridade que aplicar a sanção ao servidor indisciplinado o fizer infringindo a lei, seja por aplicar pena inexistente ou ainda de proporcionalidade tão incoerente a ponto de atingir a legalidade do ato disciplinar, caberá mandado de segurança para atacar a ilegalidade genérica.

Quando o ato disciplinar é praticado por autoridade incompetente, por mais que se trate de uma hipótese específica de descabimento não deixa de atingir a legalidade do ato já que a competência é definida por lei. Assim, também é cabível a impetração do mandado de segurança.

Como exemplo, cita o Prof. Cretella Jr. (1980:162) a situação em que um Prefeito Municipal aplica sanção disciplinar para punir um funcionário estadual; ou um Governador de Estado que aplica pena disciplinar em funcionário municipal. Nas referidas hipóteses os atos são anuláveis, desde que não convalidados, e, assim sendo, passíveis de repressão por mandado de segurança.

Por último, afirma a lei ser possível a impetração de mandado de segurança quando o ato disciplinar for praticado em descordo com formalidade essencial do processo disciplinar administrativo. Como as formalidades dos atos administrativos são determinadas pela lei, este também acaba sendo um caso de ilegalidade.

É importante observar que, sob o âmbito do direito administrativo, os atos objetos desta norma do inciso III do art. 5º da Lei do mandado de segurança, quais sejam os praticados por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial, são vícios que atingem dois pressupostos genéricos de validade do ato administrativo: respectivamente o sujeito e a forma. Por serem pressupostos de anulabilidade, são convalidáveis. Isto significa que se, por exemplo, um Secretário de Estado demite um funcionário público estadual, praticando com isso uma ilegalidade já que a competência para tal prática é do Governador, o ato pode ser convalidado pela autoridade competente. Aí sua eficácia jurídica será mantida, sendo impossível desfaze-lo através de mandado de segurança.

Da mesma maneira ocorreria se o vício fosse na forma, como editar norma através de portaria em sendo meio adequado o decreto [6]. Assim o ato também pode ser convalidado.


6) CONCLUSÃO:

Mesmo diante de uma breve explanação, de mera superfície acerca do tema cabimento e descabimento em mandado de segurança, fica, senão esclarecida, ao menos reforçada a necessidade de especificação e individualização dos requisitos constitucionais e legais para uma adequada impetração do citado remédio constitucional.

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Não atento a tais requisitos, por se tratar o mandado de segurança de uma via específica e especial, poderá o operador do direito, dada urgência que normalmente acompanha a impetração, mitigar as possibilidades do impetrante de resguardar os seus direitos e garantias constitucionais que lhes seriam plenamente assegurados, em não havendo qualquer equívoco.

Além da atenção aos requisitos próprios à concessão da segurança, como dito e é valido reprisar, deve-se conhecer também, em razão do caráter residual do objeto do mandado de segurança, sobre a tutela dos demais remédios constitucionais, como habeas data, habeas corpus, ação popular, etc., que por vezes fazem fronteira com o remédio heróico, evitando com isso a extinção por falta de interesse de agir.

Assim, desde que corretamente utilizado, é o mandado de segurança uma verdadeira arma às mãos do cidadão para defesa dos seus direitos constitucionais que lhes são, a todos os instantes, violados pelas autoridades públicas quando atuam em desatenção às normas jurídicas do nosso sistema.


BIBLIOGRAFIA

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VITTA, Heraldo Garcia. Mandado de Segurança, São Paulo, Editora Jurídica Brasileira, 2000.


Notas

1 Dispõe o Art. 5 em seu inciso LXIX inciso: "Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público".

2 O presente elenco de requisitos foi inspirado na classificação de Sérgio Ferraz, sendo que, para melhor didática, achamos conveniente destacar a autoridade coatora num terceiro requisito, ao invés de aglutiná-la junto à ilegalidade e abuso de poder, como fez o douto jurista.

3 Nesse sentido, dentre inúmeros julgados, TRF1ª Região, Relatora Eliana Calmon, AMS- 90.01.16327-0, DJ 05/09/94.

4 No mesmo sentido André de Laubadire, 1970, pg. 502.

5 No caso citado a impetrante foi outra farmácia que se sentiu prejudicada pelo funcionamento de estabelecimento irregular, do mesmo gênero, nas proximidades de sua sede, desrespeitando os limites (de 200m), estabelecidos em Lei. Por isso há, neste caso, legitimidade para impetração de mandado de segurança.

6 O prof. Cretella Jr. distingue forma e formalidade do ato administrativo ( Obra: Comentários à Lei de mandado de segurança, 1ª edição, pg. 163). Aqui, como a maioria da doutrina não iremos tecer tal distinção, pela sua pouca utilidade prática no âmbito de mandado de segurança. Pois, como assume o próprio jurista ambos os casos cabe a impetração.

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Sobre o autor
José Andrade Soares Neto

Bacharel em Direito pela UFBA. Servidor Público do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES NETO, José Andrade. Algumas hipóteses de cabimento e descabimento em mandado de segurança individual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 442, 22 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5729. Acesso em: 23 abr. 2024.

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