Sumário: 1. Introdução; 2. Das Interpretações acerca do artigo 977 do Código Civil de 2002; 2.a. Um Cônjuge Casado no Regime de Comunhão Universal de Bens, ou no da Separação Obrigatório não Pode Contratar Sociedade com seu Cônjuge e/ou com Terceiros; 2.b. Os Cônjuges não Podem Contratar Sociedade Entre Si; 3. Da aplicabilidade do artigo 2.031 do CC/2002 em relação a sociedades constituídas na forma vedada pelo artigo 977 do mesmo diploma legal antes da edição do Código Civil de 2002; 4. Da Comparação das Teses a Dominantes com a Evolução Histórica da Matéria e a Constituição Federal de 1988; 5. Conclusões; Notas; Bibliografia Consultada; Endereços virtuais pesquisados.
1. Introdução.
A edição do Código Civil (CC), Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2004, trouxe-nos algumas inovações. Uma delas é a restrição imposta pelo artigo 977 do Código Civil de 2002: veda-se aos cônjuges casados no regime de comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória o direito de contratar sociedade.
Assim, expomos que a matéria tem grande relevância prática, pois, conforme veremos no decorrer do trabalho, existem empresas já constituídas que, à luz da inovação legislativa, não poderiam ser registradas nas juntas comerciais, da mesma forma que cônjuges inseridos nas hipóteses de restrição podem querer formar sociedade por quotas de responsabilidade limitada e verem seu pleito rechaçado, o que pode vir a ser discutido perante o Judiciário.
Esclarecemos aos leitores que uma leitura apriorística do tema pode levar à aceitar a restrição mencionada, sem que se levante maiores debates. Todavia, perceber-se-á que não podemos nos alinhar à maioria da doutrina consultada, pois, conforme fomos nos aprofundando no estudo da matéria, aí incluindo o estudo da evolução da matéria em debate ao longo da história jurídica brasileira, principalmente pela leitura de acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) e de doutrinadores que se dedicaram à matéria, constatamos que a matéria suscita divergências que merecem ser discutidas pelo meio acadêmico.
Dessa forma, procuramos proporcionar aos leitores, no decorrer deste trabalho, o conhecimento das duas interpretações ao artigo 977 do CC encontradas até o momento da elaboração deste trabalho; da mesma forma em que pretendemos levar à reflexão sobre a aplicabilidade do mencionado artigo combinado com o artigo 2.031, também do CC, que trata da imposição de alteração nos atos constitutivos de associações, fundações e sociedades.
Ao final, apresentaremos aos leitores o resultado da nossa pesquisa jurídica, que inclui, como dito, a comparação entre as teses interpretativas do artigo 977, CC, a evolução histórica da matéria e a Constituição Federal de 1988, do que decorrerão nossas conclusões finais.
Então, exporemos nossas conclusões finais sobre o mencionado artigo 977, apontando, à luz do estudo comparativo realizado, a inconstitucionalidade da restrição estabelecida pelo dispositivo comentado, sem, contudo, abster-nos de apontar, em respeito àqueles que a entenderem constitucional, a tese existente que mais se alinha às nossas conclusões, haja vista não pretendermos encerrar o debate proposto.
2. Das Interpretações acerca do artigo 977 do Código Civil de 2002.
Inicialmente, para podermos nos deter ao estudo das interpretações trazidas no decorrer deste trabalho, convém transcrever o artigo 977 do CC:
"Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime de comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória".
À primeira vista, é bastante evidente que o legislador foi impreciso na redação do citado artigo, já que suscita, no mínimo, as seguintes interpretações: (i) um cônjuge casado em um dos citados regimes não pode contratar sociedade com terceiros; ou, (ii) se apenas os cônjuges não podem contratar sociedade entre si, isto é, esposo e esposa, ambos com terceiros ou entre si apenas, formando sociedade com personalidade jurídica própria.
Nesse passo, outra dúvida criada a partir da exegese do CC diz respeito à aplicabilidade do artigo 2.031, no tocante a sociedades constituídas na forma vedada pelo artigo 977 do mesmo diploma legal antes da edição do Código Civil. Isto posto, faz-se necessária a reprodução do citado artigo 2.0311, CC:
"Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de 2 (dois) anos para se adaptar às disposições deste Código, a partir de sua vigência igual prazo é concedido aos empresários.".
Dessa forma, passaremos adiante a estudar as duas mais conhecidas interpretações ao artigo 977 do Código Civil, e, após o problema de sua aplicabilidade às sociedades constituídas anteriormente ao citado código civilista.
2. a. Da Interpretação de que Um Cônjuge Casado no Regime de Comunhão Universal de Bens, ou no da Separação Obrigatória não Pode Contratar Sociedade com seu Cônjuge e/ou com Terceiros.
Sabe-se que alguns Cartórios e Juntas Comerciais, num primeiro momento, seguiram a primeira interpretação exposta e, conseqüentemente, não registravam sociedades em que qualquer um dos sócios fosse casado em regime de comunhão universal ou de separação obrigatória.
Assim sendo, tal entendimento é fruto de uma interpretação puramente literal e bastante discutível do citado dispositivo legal, sem levar em conta o espírito da lei, desprezando o que dispõe para os operadores do Direito, em especial para o Judiciário, o artigo 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), Decreto-Lei n.º 4.657/1942, na medida em que não atenderam aos fins sociais a que se dirige o mencionado artigo, bem como às exigências do bem comum. O que resulta em uma afronta ao direito de contratar, constituir, sociedade. Conversamos ontem.
2. b. Da Interpretação que Prega que Cônjuges casados nos regimes discriminados no art. 977, CC/2002, não Podem Contratar Sociedade Entre Si, ou Ambos com Terceiros.
Por outro lado, há aqueles que entendem que a restrição do artigo 977 do CC está restrita a sociedades formadas por apenas os cônjuges nos regimes específicos citados entre si e por ambos com terceiros em uma mesma sociedade.
Tal posicionamento é adotado pelo Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), órgão vinculado à Secretaria do Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que através do Parecer Jurídico DNRC nº 50/03, exarado por sua Coordenadora Jurídica, Rejanne Darc B. de Moraes Castro, expôs seu entendimento, conforme abaixo transcrito:
"EMENTA: Impedimento constante do art. 977 do Código Civil, restringe-se aos cônjuges entre si ou de ambos com terceiros em uma mesma sociedade.
(...) entendemos, por ser no mínimo razoável em face do princípio da autonomia da vontade vigente no direito brasileiro, que a restrição da norma ali inserta, limita tão-somente a constituição de sociedade entre os cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória ou desses conjuntamente com terceiros, não indo tão longe ao ponto de proibir que pessoas bastando serem casadas nesses regimes de bens, estariam impedidas de individualmente contratarem sociedade, ainda que sem qualquer vínculo entre si."
3. Da aplicabilidade do artigo 2.031 do CC/2002 em relação a sociedades constituídas na forma vedada pelo artigo 977 do mesmo diploma legal antes da edição do Código Civil de 2002.
De acordo com o prazo legal estabelecido pelo citado artigo 2.031, CC, todas as sociedades, associações e fundações, têm 02 (dois) anos a partir da vigência do Novo Código Civil para adequarem seus contratos e estatutos sociais às novas regras do novo diploma civilista.
A partir desse dispositivo, surge a discussão acerca de as sociedades constituídas por pessoas casadas em regime de comunhão universal ou de separação obrigatória de bens serem impelidas, ou não, a adequarem seus atos constitutivos de maneira a atender os ditames do artigo 977, CC.
Assim, a defesa da tese da desnecessidade de adequação dos atos constituídos de sociedades anteriormente à vigência do atual Código Civil em respeito ao instituto do "ato jurídico perfeito" encontra abrigo no inciso XXXVI do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e o artigo 6.º da LICC, normas estas que passamos a transcrever respectivamente:
"Art. 5.º (...)
(...)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
"Art. 6.º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada".
Nesse sentido, trazemos a opinião do Ministro Néri da Silveira, do STF, exposta em voto proferido nos Autos de Recurso Extraordinário2:
"(...) Essa liberdade de o legislador dispor sobre a sorte dos negócios jurídicos, de índole contratual, neles intervindo, com modificações decorrentes de disposições legais novas não pode ser visualizada, com idêntica desenvoltura, quando o sistema jurídico prevê, em norma de hierarquia constitucional, limite à ação do legislador, de referência aos atos jurídicos perfeitos. Ora, no Brasil, estipulando o sistema constitucional, no art. 5.º, XXXVI, da Carta Política de 1988, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, não logra assento, assim, na ordem jurídica, a assertiva segundo a qual certas leis estão excluídas da incidência do preceito maior mencionado".
Acompanhando o mencionado entendimento jurisprudencial do STF, temos o DNRC que, mediante o Parecer Jurídico DNRC/COJUR n.º 125/03, assinado por sua citada Coordenadora Jurídica, emite louvável opinião na seguinte forma abaixo:
"ASSUNTO: Sociedade empresária entre cônjuges constituída antes da vigência do Código Civil, de 2002.
De outro lado, em respeito ao ato jurídico perfeito, essa proibição não atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor do Código, alcançando, tão somente, as que viessem a ser constituídas posteriormente. Desse modo, não há necessidade de se promover alteração do quadro societário ou mesmo da modificação do regime de casamento dos sócios-cônjuges, em tal hipótese".
4. Da Comparação das Teses Dominantes com a Evolução Histórica da Matéria e a Constituição Federal de 1988.
Diante das teses ora apresentadas, parece-nos que a evolução doutrinária e jurisprudencial acerca do tema está sendo precipitadamente desprestigiada, pois com a edição do Estatuto da Mulher Casada (EMC), Lei n.º 4.121/62, tanto a Doutrina quanto a Jurisprudência dominantes na época não vislumbravam restrição alguma a contratação de sociedade comercial, conforme nos lembra Lucena (2003:246):
"Ora com o Estatuto da Mulher Casada, permitida a separação de patrimônios do marido e da mulher, independentemente do regime de bens do casamento, por óbvio que se ambos destinavam uma parcela de seu patrimônio para a integralização do capital da sociedade, surgia, a partir dessa destinação, um novo e único patrimônio, que era o da sociedade, completamente distinto daquele que conglobava os demais bens do casal, que continuavam submetido ao regime de bens do matrimônio".
A análise da evolução dos entendimentos sobre a matéria nos dá a certeza de que os operadores do Direito, já há alguns anos, pretendiam resguardar o cumprimento das obrigações por parte da sociedade, pela restrição de, até então, a mulher contratar sociedade com seu esposo, haja vista que não era garantido à mulher o direito de meação dos bens da sociedade conjugal – cujo regime de comunhão universal de bens era o mais usual até a edição da Lei do Divórcio, Lei n.º 6.515, de 26.12.1977, nem a esposa era geralmente titular de bens a integralizar na sociedade ou para responder perante terceiros na insuficiência ou falta de patrimônio social. Neste contexto histórico, a restrição se enquadrava.
Assim, tais fatos, juntamente a outros também, fomentaram o surgimento de teorias como a da desconsideração da personalidade jurídica, justamente para atacar os sócios de pessoas jurídicas que, agindo com dolo, prejudicam direitos de terceiros na direção destas pessoas jurídicas, o que dá ao terceiro ofendido extra ou patrimonialmente o direito de acessar ao Poder Judiciário para ver reparado eventual dano. O que torna, por si, de um todo desnecessária a restrição imposta pelo artigo 977 do CC.
Por outro lado, temos a lição de Fiuza (2004:899) que, ao tempo em que o Relator do Projeto do Código Civil fundamenta a restrição, explica o porquê de tal restrição abaixo transcrita:
"(...). No primeiro caso, o da comunhão total, a sociedade seria uma espécie de ficção, já que a titularidade das quotas do capital de cada cônjuge na sociedade não estaria patrimonialmente separada no âmbito da sociedade conjugal, da mesma maneira que todos os demais bens não excluídos pelo art. 1.668, a ambos pertencentes. No que tange ao regime da separação obrigatória, a vedação ocorre por disposição legal, nos casos em que sobre o casamento possam ser levantadas dúvidas ou questionamentos acerca do cumprimento das formalidades ou pela avançada idade de qualquer dos cônjuges"
Mais adiante, o ilustre Fiuza (2004:899) dá solução alternativa para o caso de os cônjuges sob a restrição do artigo 977 do CC que desejarem constituir sociedade entre si ou ambos com terceiros, conforme transcrição abaixo:
"(...). Estando os cônjuges casados pelos regimes da separação total ou da comunhão parcial, podem constituir sociedade, entre si ou com terceiros. Permite-se, assim, a sociedade entre cônjuges nos regimes de comunhão parcial e da separação total, em que ambos os cônjuges podem fazer suas contribuições individuais para a formação do patrimônio social, desde que não haja abuso da personalidade jurídica societária com a intenção de prejudicar credores. A partir do novo Código Civil, o ordenamento jurídico permite, expressamente, a constituição de sociedade empresária ou simples entre marido e mulher, superando, assim, lacuna existente em nossa legislação e as divergências jurisprudenciais que vinham sendo objeto de acalorados debates pela doutrina".
É importante ressaltar neste ponto, e com a devida vênia ao entendimento exposto acima, que não vislumbramos, pela interpretação isolada do Código Civil de 2002, a possibilidade de contratação de sociedade empresária ou simples entre cônjuges nos regimes de comunhão parcial e da separação total, pois – é necessário lembrarmos – o artigo 977 do NCC está inserido no seu Livro II, Título I, Capítulo II, isto é, na parte que trata da capacidade do empresário (conceito do artigo 966 do CC que deve ser entendido amplamente), o que dá ao artigo estudado a condição de limitar o direito de tais cônjuges constituírem sociedade, uma vez que de nada adiantaria o ato de constituição de sociedade que, por tal limitação, poderia vir a ser declarado nulo por violação ao artigo 166 do CC.
Outrossim, é de se destacar que já existe Projeto de Lei, o de n.º 6.960/2002, de autoria do Deputado Federal Ricardo Fiuza, em trâmite no Congresso Nacional, pelo qual o eminente parlamentar pretende a alteração do artigo 977 do CC/2002 para excluir a injusta restrição do Diploma Civil pátrio, no dizer do Autor do referido PL/2002, em obra de Fiuza (2004:899), e "permitindo que os cônjuges possam livremente contratar sociedade, entre si ou com terceiros".
Ao demais, pelo exposto, está bastante claro que a restrição criada pelo artigo 977 do CC, além de estar fora dos contextos social e jurídico, viola a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5.º, incisos I e, até mesmo, LVII, pois impõe restrição a um grupo de pessoas pela simples especulação de que os cônjuges poderiam vir a fraudar terceiros em nome da sociedade, e que estes prejudicados encontrariam dificuldades na procura da devida reparação.
5. Conclusões.
Não obstante as conclusões finais expostas abaixo, acreditamos que a aprovação e sanção do Projeto de Lei n.º 6.960/2002, de autoria do Deputado Federal Ricardo Fiúza, que visa suprimir a restrição abordada neste trabalho é a melhor solução para os questionamentos aqui expostos, pois evitaria a discussão da matéria em nossos Tribunais, poupando tempo tanto ao Judiciário quanto às partes que vierem a buscar o reconhecimento do direito restringido pelo artigo 977 do CC.
Ao final deste estudo, diante dos fundamentos expostos neste trabalho, entendemos que (a) a restrição do artigo 977 do CC, se considerada constitucional, deve atingir tão-somente as hipóteses de cônjuges casados em regime de comunhão universal ou de separação obrigatória de bens que contratarem sociedade entre si, ou quando os dois cônjuges constituam sociedade com terceiro(s); e (b) as sociedades constituídas antes da vigência do CC que estiverem em desacordo com o citado artigo 977 não necessitam ser adequadas, pois as mesmas estão cobertas pelo manto do "ato jurídico perfeito".
Outrossim, concluímos que a restrição do artigo 977 do Código Civil não deve ser aplicada, em virtude de, como exposto, violar a CF/88, visto ser inaceitável restrição de os cônjuges constituírem sociedade com entre si ou entre ambos e terceiros, por serem simplesmente casados em um dos regimes elencados no mencionado artigo 977 do CC, ferindo o princípio constitucional da isonomia sem um motivo plausível.
Notas
1 - Redação dada pela Lei n.º 10.838, de 30.01.2004
2 - STF, RExtr. n.º 198.993-9, Rel. Min. Néri da Silveira.
Bibliografia Consultada
CASTRO , Rejanne Darc B. de Moraes. Parecer Jurídico DNRC n.º 50/03. Departamento Nacional de Registro do Comércio. 2003.
________. Parecer Jurídico DNRC n.º 125/03. Departamento Nacional de Registro do Comércio. 2003.
FIUZA, Ricardo [Coord]. Novo Código Civil Comentado. 3. ed. São Paulo : Saraiva. 2004.
LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5. ed., Rio de Janeiro : Renovar. 2003.
Endereços virtuais pesquisados
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