1. Considerações iniciais
A vigente Lei de Direitos Autorais (LDA) – Lei 9610, de 19 de fevereiro de 1998 – ao contrário do que ocorre com a Lei de Propriedade Industrial[1], não traz qualquer disposição acerca da titularidade da obra criada por autor no âmbito do contrato de emprego. Surge, então, celeuma quanto a este tema. Se o empregado for contratado para produzir determinada obra, quem é o titular dos direitos patrimoniais? E dos direitos morais?
O Direito Autoral tem um caráter dúplice: assume concomitantemente características de direito patrimonial e de direito da personalidade, as quais se inter-relacionam e se complementam.
No Brasil, adotamos a corrente dualista da natureza jurídica do Direito Autoral, que concilia as teorias da propriedade, da personalidade e a dos direitos sobre bens intelectuais de forma a evidenciar que este ramo assume uma forma mista, e traz em seu bojo normas que regulamentam os denominados direitos morais de autor, assim como os direitos patrimoniais do autor.
Ao presente trabalho, interessam estes últimos.
Seja por força do art. 5º, XXVII, da Constituição Federal de 1988, seja pelo conteúdo do art. 28 da LDA, as obras podem ser objeto de exploração econômica por parte de seu autor. Neste sentido, é dado ao criador, no exercício da liberdade contratual a ele assegurada por lei, usar, fruir e dispor da obra, transferindo o direito exclusivo de explorá-la a terceiros.
Observamos, que uma vez transmitidos a outrem por ato inter vivos – ou seja, por força de contrato – a interpretação do citado negócio jurídico, uma vez que verse sobre matéria autoral, deve se dar de forma restritiva.
Estas são duas premissas básicas que devem ser utilizadas para respondermos aos questionamentos inicialmente propostos. A estas, cumpre somar mais uma, que em verdade, consiste em uma inicial contraposição ao direito autoral do empregado.
2. O criador da obra intelectual no curso da relação laboral
Como sabido, na relação laboral, o empregado presta determinados serviços ao empregador, com subordinação, pessoalidade, de forma não eventual e mediante o pagamento do salário. É o que dispõe o vigente art. 3º, da CLT.
Decorrência da relação empregatícia é que o empregado, detentor de sua força de trabalho, a aliena ao empregador, por força de sua autonomia privada, e este recebe os frutos da atividade física ou intelectual, pelo trabalhador produzidos, pagando um salário em contrapartida.
Destas premissas, surge um contraponto a que se deve dar uma solução: enquanto o Direito do Trabalho prevê que aquilo que for produzido pelo empregado pertence ao empregador; para o Direito Autoral, a autoria sobre a obra é daquele que a cria, impondo-se que seja pessoa física, conforme dita o art. 11 da LDA[2].
Em verdade, a própria norma autoralista estatui a possibilidade de transferência dos direitos patrimoniais pelo autor a terceira pessoa, física ou jurídica. Diante disso, no caso do empregado-autor, contratado justamente para criar determinada obra, como artigos de jornais, jingles publicitários, filmes, novelas, dentre tantas outras hipóteses, há a possibilidade de se avençar esta transferência em favor do empregador, nos limites e forma legais.
Vale ressaltar que a transferência se operará apenas quanto aos direitos patrimoniais, e não quanto aos morais, visto que estes, são atribuídos à pessoa física, ademais, não são passíveis de transmissão, por terem natureza de direitos de personalidade.
Retomando a pendência quanto aos direitos patrimoniais, que é o que propomos examinar com o presente ensaio, temos, assim, que o contrato de emprego é lícito ao dispor que o empregado recebe a remuneração e, em contrapartida, cria a obra.
Como sustenta Carlos Alberto Bittar, o empregado é contratado justamente para o objetivo final visado pelo seu empregador, a quem se relaciona, por subordinação[3].
Importa, então, examinarmos se a titularidade dos direitos patrimoniais é transferida ao empregador com relação a todos ou a apenas um ou alguns deles.
Aqui releva notar que os direitos patrimoniais são numerus clausus, e que comportam uma gama variada de exercício por parte do autor. Cumpre, também, novamente retomar a premissa no sentido de que os contratos em Direito Autoral são interpretados restritivamente.
Diante disso, entendemos que o empregador adquire a titularidade patrimonial apenas daquilo que for previsto pelo contrato. Por conta disso, continuam sendo de titularidade do empregado os demais direitos patrimoniais não alcançados pelo contrato e, claro, os direitos morais.
Também neste sentido, Luciano Andrade Pinheiro:
Diante do quadro, a solução é entender o negócio de natureza trabalhista/ autoral de forma que o empregador apenas exercerá a parte do direito patrimonial necessária ao fim do próprio contrato. O salário pago ao autor empregado servirá como remuneração à modalidade de utilização da obra necessária e suficiente à finalidade do contrato, ou para o fim primário das atividades com o empregador.[4]
Destarte, não será dado ao empregador explorar economicamente a obra fora dos limites contratuais, devendo se ater à forma autorizada pelo empregado, contratado para produzir a obra, naquelas condições.
Caso o empregador a explore além dos contornos do contrato, pensamos que estará afrontando os direitos patrimoniais remanescentes e que são de titularidade do empregado, ficando, assim, sujeito às penalidades legais.
3. A fixação do conteúdo das aulas e da imagem do professor em suporte a ser explorado pela instituição de ensino
Uma situação corriqueira, e que merece atenção especial, diz respeito às aulas ministradas pelos professores universitários no âmbito das instituições de ensino superior em que lecionam.
O contrato de trabalho firmado entre professor universitário e instituição de ensino tem por objeto a prestação de serviços de cunho educacional, em que o professor ministra aulas, compartilhando o conhecimento que detém com os estudantes, estes últimos vinculados à instituição.
Na consecução de seu labor, os professores elaboram os planos das aulas, podendo criar mecanismos didáticos para facilitar seu empreendimento. Em contrapartida, recebem o salário mensal, haja vista se tratar de uma relação empregatícia, abarcada pela Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT.
Enquanto limitado ao domínio da sala de aula, em cumprimento à carga horária previamente estabelecida em contrato, não há pontos controvertidos a respeito dos direitos autorais do docente, que pode ou não permitir aos seus alunos a gravação em áudio das aulas, com o intuito de estudo posterior.
Controvérsia surge quando as aulas passam a ser gravadas em vídeo para posterior exibição a outro público, distinto.
Isso porque, o simples fato de ser empregado da instituição não assegura a esta o direito de fixar as aulas ministradas pelo professor em suporte material, reproduzi-las e comercializá-las. Para que seja possível esta comercialização das aulas, é imperioso que haja expressa cláusula contratual, com a prévia anuência do professor.
Inexistente tal cláusula, ou modificadas as condições laborais, sem a ciência do trabalhador, concluímos pela impossibilidade de manutenção de seu conteúdo.
Situações como estas, de utilização das aulas, sem a devida concordância do professor, ensejam, em verdade, dupla afronta a direitos deste: ao seu direito de imagem – direito de personalidade alheio à esfera do Direito Autoral, que se refere à utilização não permitida de sua efígie e voz; bem como ao seu direito patrimonial de autor.
Examinando situação similar a ora apreciada, Antônio Chaves[5] narra as observações de Adolf Dietz em relação às condições aplicáveis ao corpo docente na Alemanha, e que, segundo Antônio Chaves, seriam perfeitamente aplicáveis no Brasil.
Valem, para o nosso país, as observações de Adolf Dietz, em Lettre de la Republique Fédérale d’Allemagne para Le Droit d’Auteaur, março de 1990, pág. 105, relativas às condições particulares que se aplicam ao corpo docente de ensino superior em seu país [...]
Cita o caso bastante particular de um professor convidado ao centro de estudo das médias de uma universidade, que organizou um “happening” no quadro de suas conferências.
Entendeu a Corte federal de justiça que o só fato de aceitar o cargo de professor convidado não significava que o interessado tinha cedido ou tinha-se obrigado a ceder os direitos de aproveitamento sobre o “happening” ao estabelecimento acolhedor.
[...] as obrigações normais de um professor universitário não incluem as de ceder ao empregador (a universidade) direitos de utilização sobre as obras suscetíveis de serem protegidas que o interessado tenha criado e utilizado aos fins de seu ensino (manuscritos de conferencias, material de apresentação etc.).
O fato de ser empregado de instituição superior de ensino não obriga ao professor que aceite a comercialização de suas aulas em vídeos ou outros suportes. Para que sejam possíveis a reprodução e a citada comercialização, faz-se necessária prévia autorização do docente.
A reprodução e a comercialização não autorizada das aulas resulta em responsabilização da empregadora, com a possível condenação de indenizar por dano material/ moral pelo uso indevido da criação intelectual do professor, não se afastando, ainda, a provável indenização pelo uso indevido da imagem – matéria que foge ao âmbito deste estudo.
Diferente, porém, seria o caso em que houvesse prévio acordo, e nele o professor permitisse a fixação, reprodução e comercialização das aulas ministradas, inclusive para reprodução em outras instituições de ensino. Neste caso, o professor universitário estaria dispondo de seu direito patrimonial, em estreito exercício de direito que lhe é outorgado por lei.
4. Análise derradeira: a autonomia privada do professor
Mas ainda nesta hipótese, há de se fazer uma análise derradeira.
É que, na qualidade de empregado, parte hipossuficiente da relação laboral e, acaso imposta tal cláusula contratual como pré-requisito para sua contratação, a autonomia do professor universitário para contratar ficaria comprometida.
Questionamos, então: mesmo nestas condições, em que a autorização para a reprodução e comercialização dos vídeos é dada expressamente, há como prevalecer o conteúdo do contrato de trabalho, caso o professor seja remunerado apenas pelas aulas?
Antes de respondermos a este questionamento, formulamos um segundo, que será alicerce para o raciocínio: É nessas situações prestigiada a autonomia privada do professor?
Definitivamente, não.
Elaboradas as cláusulas contratuais unilateralmente por parte da instituição de ensino, estas, via de regra, não são debatidas pelo empregado no ato de sua contratação. O professor universitário limita-se a aderir às condições de trabalho propostas pela empregadora, sujeitando-se às condições de remuneração, horários e demais regras disciplinares e organizacionais da instituição.
Destarte, a autonomia concedida ao professor é mínima: ou ele contrata, ou deixa de firmar o negócio jurídico, ficando sem trabalhar e receber o salário correspondente.
Constando cláusula similar à tratada na espécie, em que o professor universitário permite a fixação das aulas por ele ministradas em um suporte material, para comercialização, sem que haja qualquer remuneração a mais por isto, não poderá ele se opor, caso queira se empregar na citada instituição.
Neste caso, entendemos que a manifestação de vontade não é livre, e resulta em desequilíbrio contratual entre o professor e o seu respectivo empregador, sendo possível a anulação da cláusula contratual em comento, por ser esta abusiva.
Situação diversa se caracteriza na hipótese em que, além de receber pelas aulas ministradas, também aufere a remuneração pertinente à transferência dos direitos patrimoniais de reprodução e distribuição. Nesta hipótese, o professor universitário está realmente recebendo pelos seus direitos patrimoniais, além de perceber o que lhe é devido pelas aulas ministradas.
REFERÊNCIAS
BITTAR, Carlos Alberto. Direito do Autor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BRASIL. Consolidação das leis do trabalho (CLT). Decreto-Lei 5.453, de 1º de maio de 1943. Aprova a consolidação das leis do trabalho.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Lei de Direitos Autorais. (LDA) Lei 9610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.
BRASIL. Lei 9279, de 14 de maio de 1996. (LPI) Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.
CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual. São Paulo: LTR, 1995.
PINHEIRO, Luciano Andrade. Titularidade da obra criada por empregado. in ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo. (coord.) Propriedade intelectual em perspectiva. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
Notas
[1] A Lei 9.279, de 14 de maio de 1996, que regulamenta a propriedade industrial, traz nos arts. 88 e ss. disposições pertinentes à criação no âmbito do contrato de trabalho. A regra geral (do art. 88) é a de que o empregado inventor, contratado para estes fins, recebe o salário como forma de pagamento por tudo aquilo que criar no contexto da relação laboral. Neste caso, os direitos daí advindos, pertencem ao empregador. O legislador ordinário previu, também, a hipótese em que o empregado cria fora do estabelecimento do empregador, utilizando dos recursos deste – situação em que os frutos advindos da criação deverão ser repartidos entre ambos (art. 91). Há, ainda, a regulamentação da hipótese de criação pelo empregado sem o uso de qualquer maquinário ou informação pertencente ao empregador, caso em que os louros serão colhidos exclusivamente pelo empregado (art. 90).
[2] Vale observar que pelo parágrafo único do art, 11, é equiparada a pessoa física à condição de autor, no que diz respeito ao exercício dos direitos previstos na LDA.
[3] BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 100.
[4] PINHEIRO, Luciano Andrade. Titularidade da obra criada por empregado. in ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo. (coord.) Propriedade intelectual em perspectiva. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 233.
[5] DIETZ, Adolf. apud CHAVES, Antônio. op. cit. p. 227-228.