CRIMES PASSIONAIS: O tratamento conferido pelo direito àqueles que agem sob o domínio do sistema emocional

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25/05/2017 às 19:04

Resumo:


  • O conceito de honra e virtude, historicamente, é mutável e dependente de fatores sociais, geográficos e temporais, o que gera uma obscuridade permanente nessas noções.

  • A pesquisa investiga a relação entre paixão e crime, explorando como a sociedade interpreta o homicídio passional, ora como ato de defesa da honra, ora como resultado de um desequilíbrio emocional.

  • O direito penal não possui uma categoria específica para homicídio passional, mas o Código Penal, em seu artigo 121, § 1º, contempla motivações que podem se encaixar nessa categoria, permitindo a diminuição da pena em determinados contextos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2 MARCOS HISTÓRICOS E ASPECTOS SUBJETIVOS DOS CRIMES PASSIONAIS

Importa-nos apresentar alguns elementos marcantes que compõem a temática dos crimes passionais. Serão acompanhados casos recorrentes desse tipo penal no contexto brasileiro. Como será abordado em momento mais oportuno, isso acaba se refletindo na dramaturgia. Não se sabe ao certo, mas a verdade é que tanto realidade quanto ficção aborda de maneira efusiva o tema. Antes de apontar os aspectos subjetivos, pontuemos alguns momentos da história da legislação.

2.1 Marcos históricos na legislação sobre crimes passionais

É de conhecimento público que antes de ter um legislativo pátrio e, assim, a legislação própria, o Brasil seguia as leis criadas por Portugal, em razão de ser sua colônia.

Pertinente a atual temática, pontua-se a possibilidade, conferida por lei, ao homem, enquanto marido, de tirar a vida de sua esposa no caso de uma traição ou apenas se suspeitasse disso, inclusive facultada a escolha de matar também o amante da mulher (ELUF, 2003).

No bojo da legalidade conferida ao crime passional nascido do adultério, as ordenações Filipinas abriam uma exceção, não seria permitido matar a esposa e o amante se este segundo pertencesse a classe social de natureza superior ao marido (CARVALHO NETO, 2005).

Ficaevidente,à época, o preconceito social e de gênero, lembrando que à esposa não se conferia o mesmo direito de tirar a vida do marido no caso de ele ser o pivô da traição.

Essa legislação permissionista, em relação ao homicídio passional, perdurou até 1830, quando entrou em vigor o primeiro código penal brasileiro, ainda em tempos de Império. Essa legislação se omitiu quanto ao tratamento dos crimes passionais e, somente em 1890 com o código criminal da República a discussão voltou à tela.

Na república o código criminal tratava enquanto excludente o crime que se tivesse cometido em decorrência de se ter os sentidos totalmente perturbados. Conforme preceitua Eluf (2003, p. 162):

Entendia que determinados estados emocionais, como aqueles gerados pela descoberta do adultério da mulher, seriam tão intensos que o marido poderia experimentar uma insanidade momentânea. Nesse caso, não teria responsabilidade sobre seus atos e não sofreria condenação criminal.

Permanece assim o entendimento de que é possível ao marido tirar a vida da esposa em caso de traição, apenas agora sendo justificado pela insanidade que acometeria o homem ao não suportar a falta cometida por sua mulher.

Em 1940 o Brasil promulgava um novo Código Penal. Neste código deixa-se de considerar a turbação dos sentidos nascida da emoção como causa excludente do crime e passa-se a tratar essa prática enquanto homicídio privilegiado.

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço (BRASIL, 1946).

Apesar da mudança legislativa, uma parcela da sociedade continuava apoiando a ideia de que todo homem traído poderia tirar a vida de sua esposa e também do amante. Em especial, a mudança causou alvoroço em meio aos advogados fazendo surgir uma nova tese em busca da redução ou isenção da pena aplicada ao agente que praticasse crime passional; a legítima defesa da honra era o argumento nascente da indignação daqueles que protegiam esses homens.

Gaia (2010) é cada vez maior o número de condenações dadas por tribunais do Juri em casos de homicídio passional. As condenações se baseiam na Lei de Crimes Hediondos e, na Lei Maria da Penha.

Na maioria das vezes, os assassinos de mulheres são condenados por homicídio qualificado, que tem penas altas e é considerado hediondo. Aliás, se analisarmos a Lei n. 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos), temos que ela foi promulgada justamente para tentar conter o aumento desenfreado da violência, reprimindo com mais severidade os crimes graves. No entanto, nos dizeres de Nogueira (1992, p. 113-114), a lei dos crimes hediondos apresenta certas contradições que só servirão para enfraquecer a sua aplicação e eficácia. Referida lei peca por certas incongruências, misturando, por exemplo, normas de Direito Penal, Processo Penal e outras leis especiais (GAIA, 2010, p.17).

A mesma autora relata em seu texto que a Lei n. 8.072/1990, que definiu os crimes hediondos previstos na Constituição Federal (artigo 5o, XLIII), foi elaborada de maneira imprudente, devido ao o impacto do clamor social e dos meios de comunicação, tendo sido alterada por leis posteriores, como a Lei n. 8.930/1994, devido ao movimento gerado pela autora de novelas Glória Perez, que teve sua filha, a atriz Daniella Perez, assassinada por Guilherme de Pádua, que com ela contracenava na televisão É de casos como o Daniella Perez que lidera a inquietação popular para que as leis fossem mais severas com agentes que cometessem crimes passionais, invocando a legitima defesa da honra enquanto forma de defesa.

Em razão dos esforços da mãe de Daniella, Gloria Perez, e do envolvimento da mídia e da sociedade, todos fazendo pressão sobre o legislativo, foram realizadas mudanças na legislação de crimes hediondos e, homicídios passionais, que se consideram qualificados, passaram a receber um tratamento menos protetivo, sendo que o agente deixa de ter direito a anistia, graça, indulto, fiança, liberdade provisória e progressão, de maneira que toda a pena deva ser cumprida em regime fechado.

2.2 Elementos subjetivos do crime: conduta psicopata, a emoção, paixão, ciúme, honra e ódio

Com o suporte da Criminologia, ciência médica legal que se conecta às infrações penais na tentativa de solucioná-la, tentaremos demonstrar os elementos subjetivos que compõem o crime passional. Em seu trabalho, Gaia (2010, p.25) explica a criminologia da seguinte forma:

Trata-se, em suma, do estudo científico do fenômeno e das causas da criminalidade, o grau de sua nocividade social, a insegurança e a intranquilidade que elaé capaz de gerar na sociedade, as medidas recomendadas para prevenir a incidência e a reincidência no crime, a pessoa do delinquente, sua personalidade e os caminhos para sua recuperação, bem como a vítima do crime. É uma ciência que se baseia na análise e observação da realidade, abordando o crime tanto como um problema individual quanto como um problema social, ou seja, as causas podem ser de ordem psicológica ou social, como, por exemplo, os desvios comportamentais, problemas econômicos e familiares, entre outros, uma vez que o crime é produto de vários fatores, não de uma causa única.

Entende-se que é extremamente necessário compreender os sujeitos se conectam para formar o crime do tipo passional, na tentativa de identificar aspectos semelhantes que os unam tentando elucidar causas, consequências e alternativas para os modos como o judiciário se porta diante dessas ocorrências.

2.2.1 Ciúme

O ciúme é aparentemente a maior causa dos crimes passionais, um descontrole emocional causado pela suspeita de que a/o parceira/o estaria se envolvendo, ou simplesmente se interessando, por outra pessoa. A dificuldade de lidar com a possibilidade da perda ou de uma mera competição, que pode ser de cunho amoroso ou não, parece fazer o ciumento acreditar que é proprietário do outro. Para Gaia há uma natureza egoística, egocêntrica que define o sujeito acometido pelo ciúme.

É um sentimento totalmente voltado para si mesmo, egocêntrico. Suas principais causas são: insegurança psicológica, imaturidade afetiva, desestruturação emocional, julgamento que a pessoa faz do envolvimento do outro, orgulho avassalador que não suporta rivalidades e egoísmo, que faz com que o ciumento veja aqueles que estão à sua volta como suas posses. Alguns especialistas também afirmam que o ciúme pode estar relacionado a problemas de infância e a deficiênciaspsicológicas (2010, p. 30).

Consuetudinariamente parece se ter desenvolvido uma ideia de senso comum de que amor e ciúme são indissociáveis. Não faz parte deste estudo reunir pesquisas de natureza psicológica que compreendam o ciúme em sua essência, podemos, entretanto, definir que dentro de nossa temática de estudo esse elemento aparece por vezes desconexo do amor. Há casos em que o relacionamento já é findo, o sentimento de amor já deixou de existir, mas a ideia de pertencimento sobre o outro permanece, como se mesmo após o término do laço afetivo, existisse a tal propriedade.

A relação que se cria é de dependência, o ciumento entende que não há vida fora do convívio com o outro e que este não pode, também, ser capaz de viver sem ele. Por essa visão entorpecida a pessoa acometida pelo ciúme entende que tem direito sobre a vida do outro e que qualquer atitude deste, mesmo após o fim do relacionamento, é uma atitude de provocação ou capaz de ferir a sua honra subjetiva e objetiva.

O objeto de ciúme do agente não é visto por ele como uma pessoa, um sujeito, é antes uma coisa, um bem, e como tal sobre ele recaem seus direitos de usar, gozar, dispor e reivindicar.

De acordo com Seo (2006) ainda há que se considerar o caso do ciumento que sofre de uma baixa autoestima, aquele que se sente inferior e por isso mesmo inseguro em suas relações.

É de se notar que uma grande parte das pessoas acometidas pelo ciúme sabem dessa condição e acabam, ainda que de maneira inconsciente, deixando que isso fuja de seu controle.

Curioso é que a maioria dos ciumentos sabe que o são, de forma que, quando amam, passam a viver em razão da pessoa amada, mesmo que isso os incomode. Embora atormentados pelo fato, não deixam de sê-lo. Inseguros que são, transferem para o outro a causa dessa insegurança, dizendo-se vítimas quando, na verdade, são escravos de ideias absurdas, criadas por suas próprias mentes. O ciumento obsessivo fantasia histórias, tira suas próprias conclusões e sempre acha que está certo. Também o passado do parceiro (seus ex- companheiros) o atormenta tanto quanto as ameaças que ele mesmo cria. (SEO, 2006, p. 33).

Se considerado como é – um sentimento natural do ser humano, difícil ou impossível de ser evitado – percebemos a necessidade de o ciumento discernir se o ciúme que ele sente é algo natural ou uma situação que não se consegue mais controlar, devendo, nesse caso, procurar ajuda médica (GAIA, 2010, p. 35).

Assim, de um mero desconforto coitado, da insegurança, do sentimento de inferioridade constante, o sujeito acometido pelo ciúme passa para uma posição clínica que, se não tratada pode trazer malefícios a ele próprio, a sociedade e, principalmente à parceira/o.

2.2.2 Amor   

Dificilmente é possível traduzir um sentimento, principalmente um de tamanha complexidade. Tentaremos representar o amor da maneira que parecer mais próximo da realidade.

Parece certo que o amor seria um sentimento de querer bem e de desejar o melhor tão intensamente que poderia chegar a se sobrepor ao querer bem que temos por nós mesmos. Pela dramaturgia e pela vida entendemos que em razão do amor o ser humano é capaz de superar as barreiras da lógica, da física, capaz de muito para proteger o bem estar da pessoa amada.

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Neste interim é preciso dizer que a psique humana é capaz de criar amores mesmo sem contato físico, como é o caso do chamado amor platônico: “aquele em que o amante tem seu objeto de desejo simplesmente na figura da pessoa amada, sem talvez nunca tê-la tocado. Não se concretiza em amor carnal, mas sim numa exaltação de ternura e pureza, num encontro de almas sublimes” (FOLLMER, 2015, p. 35).

O amor pode ainda se reconhecer enquanto físico, de origem sexual, de carne. Parece-nos que somente neste caso é possível ao amor tornar-se o fundamento de um crime. O amor pelo físico, carnal somente, é origem da compreensão do outro enquanto objeto de desejo e assim, passível de fazer nascer um medo inexplicável de ser desprezado, preterido ou rejeitado.

Anote-se que não necessariamente o desejo carnal será concretizado, pode ser que essa necessidade de contato íntimo e sexual com outro seja platônica e dê assim mesmo vazão à passionalidade.

É apenas aquele primeiro amor que tentamos definir, que prefere a felicidade do outro que a nossa própria, que não parece capaz de fundar um crime, pois este amor não é “egoísta e imaturo” (GAIA, 2010, p. 37) e, portanto não poderia conduzir ao crime.

2.2.3 Paixão

Diferenciar paixão de amor é algo que compete a outras ciências. Em regra, a psicologia se encarrega disso, definindo-a como um sentimento exacerbado, intenso, ela extrapola os limites da razão. Eluf (2003) explica:

Paixão não é sinônimo de amor. Pode decorrer do amor e, então, será doce e terna, apesar de intensa e perturbadora; mas a paixão também resulta do sofrimento, de uma grande mágoa, da cólera. Por essa razão, o prolongado martírio de Cristo ou dos santos torturados é chamado de paixão (ELUF, 2003, p. 109).

A passionalidade que leva ao homicídio tem quase sempre a aparência de amor que se torna paixão em razão do excesso de ciúme e isto tudo evolui para insanidade que termina em crime.

Logo, o próprio nome passional tem sua origem no vocábulo paixão, essa obsessão dotada de constância determina o nascimento da violência. Importa-nos diferenciar paixão e emoção em razão do enquadramento de ambos em tipos penais diversos. Mirabete (2006) apresenta essa diferença, sendo que para ele a primeira teria um caráter temporário, como uma explosão que abala o psicológico do indivíduo, enquanto o segundo se caracteriza por um estado mais permanente que corrompe a própria formação de caráter do sujeito. 

Emoção é um estado afetivo que, sob uma impressão atual, produz repentina e violenta perturbação do equilíbrio psíquico. Sendo intensa, é comparável à torrente que rompe um dique (Kant). São emoções: a ira, o medo, a alegria, a surpresa, a vergonha, o prazer erótico etc. A paixão é uma profunda e duradoura crise psicológica que ofende a integridade do espírito e do corpo, o que pode arrastar muitas vezes o sujeito ao crime. É duradoura como uma força que se infiltra na terra, minando o obstáculo que, afinal, vem a ruir. São paixões o amor, o ódio, a avareza, a ambição, o ciúme, a cupidez, o patriotismo, a piedade etc (MIRABETE, 2006, p.218).

A intensidade e a duração dos sentimentos, paixão e emoção, parecem ser as características que as marcam e podem diferenciá-las, enquanto a primeira é temporária e extremamente forte, a segunda é duradoura e também de grande intensidade. O liame que separa esses sentimentos é sensível, e facilmente podemos confundir um e outro, Gaia (2010) afirma:

Embora haja diferenças entre emoção e paixão, ambas praticamente seconfundem. A paixão se origina na emoção, é o estado crônico dela. Enquanto a emoção chega e logo vai embora, a paixão permanece e solidifica-se. Existem autores que situam a paixão, pelas suas características, entre a emoção e a loucura (GAIA, 2010, p. 40).

A paixão geralmente acomete indivíduos ainda imaturos em suas questões emocionais, sujeitos que ainda não possuem preparo suficiente para estar em um relacionamento aceitando as questões do outro, compreendendo e fazendo ajustes para que duas vontades possam coexistir (ELUF, 2003).

Em razão de a história legislativa ser tão permissiva com os casos de homicídios passionais onde o autor é o marido, que é ou se sente traído, fez-se necessário, e ainda se faz, trabalhar legislações e métodos de modificação cultural que garantam a segurança da mulher e façam compreender que a passionalidade, embora seja de fundo orgânico, ou ainda mesmo denomindado de fundo sentimental, não é suficiente para afastar nem o crime nem a punibilidade deste.

É esse resgate histórico que confere a possibilidade de uma mulher, na luta por seus direitos mais básicos de sobrevivência e dignidade, fazer com que seja criada uma lei na defesa de todas as outras mulheres.

2.3 Lei de violência doméstica e familiar contra a mulher

A violência contra as mulheres apresenta-se como um tema recorrente na sociedade, tão presente, que infelizmente tornou-se algo aparentemente natural e banalizado. Em uma sociedade essencialmente machista, na qual é defendida a superioridade masculina, onde impera a vontade do homem em detrimento da mulher, observa-se a necessidade de coibir todos os tipos de violência contra o lado que, historicamente, foi rotulado de mais frágil nessa relação.

Apesar dos avanços legislativos que tentam proteger as mulheres, a configuração histórica ainda se apresenta de maneira marcante e impede, por vezes, o cumprimento da lei.

A plena cidadania da mulher é fato recente, porém, a revolução feminina, que marcou o século XX, e o significativo avanço das mulheres em diversas áreas e setores ainda não conseguiram encobrir o vestígio mais cruel da discriminação e da opressão: a violência. Isto porque, apesar de todos os avanços, apesar da equiparação entre o homem e a mulher; ainda existe uma grande desigualdade sociocultural que conduz à discriminação feminina e, principalmente, à sua dominação pelos homens.

Ainda existem traços paternalistas que protegem a agressividade masculina e constroem a imagem da superioridade do sexo que é respeitado por sua virilidade. Essa errônea consciência masculina leva o homem a se sentir proprietário da mulher e dos filhos, assegurando-lhe o falso direito de fazer uso da superioridade de sua força física sobre estes. As tragédias daí advindas revelam a incapacidade que a sociedade e, até mesmo, que o Estado têm de impedir a tradição (GAIA, 2010, p.40) .

Em função de inúmeras lutas e reinvindicações feministas durante muitos anos, viu-se a necessidade da promoção por parte do Estado de políticas públicas que defendessem a proteção da mulher vítima de violência. De forma mais objetiva, nota-se tal atuação do Estado na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) a qual fez, com que o Estado brasileiro passasse a assegurar o respeito aos direitos das mulheres, sendo possível intervir na violência perpetrada no âmbito doméstico, retirando deste o caráter de inviolabilidade.

A Lei n. 11.340/2006, que foi sancionada em 7 de agosto de 2006 está em vigor desde 22 de setembro do mesmo ano, alterando dispositivos do Código de Processo Penal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal, seu objetivo é criar mecanismos para coibir a violência contra a mulher, estabelecendo várias medidas para prevenção, assistência e proteção às vítimas de agressão.

O nome da lei é uma homenagem à biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que, durante seis anos, foi agredida pelo marido, professor universitário e economista. Em 1983, por duas vezes ele tentou assassiná-la. Em 1991, o agressor foi condenado pelo Tribunal do Júri a oito anos de prisão. Além de ter recorrido em liberdade, um ano depois, teve seu julgamento anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de dez anos e seis meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19 anos após os fatos, em 2002, é que foi preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão (GAIA, 2010, p.41).

De acordo com Bertoldi (2014), a primeira agressão sofrida ocorreu em 1983, deixando-a paraplégica, e a segunda aconteceu quando seu marido a empurrou da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro, meses depois. As investigações começaram em junho daquele mesmo ano, porém a denúncia só foi feita em setembro do ano seguinte, com o primeiro julgamento ocorrendo somente oito anos mais tarde. Em 1991 os advogados do marido conseguiram anular o julgamento, que aconteceu no ano de 1996; ele foi julgado e condenado, mais conseguiu recorrer.

Depois de 15 anos de luta, a justiça ainda não havia dado um veredito acerca do caso de Maria. Com a ajuda de Organizações não governamentais, ela conseguiu encaminhar o caso para a Organização dos Estados Americanos[3], que foi a primeira a acatar tal denúncia de violência doméstica.

O referido agressor foi preso em 2002, porém cumpriu somente dois anos de prisão. O Brasil, com isso, foi condenado por negligência em relação à violência doméstica e foi punido com a recomendação de que, imediatamente, elaborasse uma lei em defesa dos direitos das mulheres.

Em setembro de 2006, a Lei 11340/2006 entrou em vigor, e com isso, a violência contra a mulher deixou de ser menosprezada. Apesar de existirem dados que comprovam que a maioria dos casos de violência ocorrem, principalmente, nas classes mais baixas, sabe-se que a violência contra a mulher acontece em todas as classes sociais, independente de raça, cor ou etnia.

Mesmo após a promulgação da referida lei, muitas mulheres sofrem agressão diariamente e não tem coragem de denunciar seu companheiro, por medo, e também pelas ameaças sofridas. De acordo com o artigo 7º da Lei Maria da Penha, as formas de violência são a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial, entre outras como a violência virtual, atualmente tão presente na mídia.

Com relação àquelas mulheres que não possuem condições de contratar um advogado, elas poderão ir sozinhas à delegacia de atendimento especial a mulher, porém é preferível que ela vá acompanhada de um defensor publico. Em casos de travestis, lésbicas e transexuais a aplicação da lei é analisada a cada caso.

Ações organizadas do movimento feminista foram fundamentais e decisivas para que os direitos das mulheres fossem mundialmente reconhecidos como direitos humanos, travando assim uma luta constante pela igualdade prevista nas constituições e tratados internacionais.

De acordo com Pinto (2007), diversos instrumentos internacionais de proteção aos direitos das mulheres foram editados com a finalidade de que fossem tomadas medidas legislativas e administrativas pelos países signatários, a fim de que, por meio destes mecanismos legais, houvesse a promoção da igualdade entre os sexos e o combate à violência contra a mulher.

Pinto (2007) afirma que, no Brasil, a inquietação em coibir e prevenir a violência contra mulher foi evidenciada apenas a partir da Constituição Federal de 1988, na qual a igualdade entre homens e mulheres foi, pela primeira vez, estabelecida na lei, mesmo o país sendo signatário de tratados internacionais. Mesmo com o tardio reconhecimento da necessidade em estabelecer a igualdade social, a regulamentação de normas que a asseguram trataram-se de um ponto inicial para que o poder público passasse a ampliar a proteção dos direitos da mulher em razão da discriminação e violência por elas sofridas.

A norma constitucional dos direitos à mulher não foi, ainda, suficiente para coibir a violência de gênero na esfera doméstica e familiar. Pesquisas recentes revelam que o alto índice de violência à mulher no país, principalmente no ambiente doméstico, como mostra a pesquisa realizada pela Campanha Compromisso e Atitude (2014):

Embora muitos avanços tenham sido alcançados com a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), ainda assim, hoje, contabilizamos 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que coloca o Brasil no 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime (COMPROMISSO E ATITUDE, 2014).

Diante deste contexto, procurou-se o aperfeiçoamento das normas legais que disciplinam tal assunto. Sabe-se que as questões relacionadas à violência doméstica e familiar necessitam de mecanismos eficazes para o seu combate, já que os meios, até então adotados, não foram capazes de reduzir sua ocorrência.

Assim, foi promulgada a Lei nº 11.340/06, conhecida como a Lei Maria da Penha, idealizada e criada com o intuito de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, cumprindo preceitos constitucionais e as orientações dos tratados e convenções corroborados pelo Brasil.

Na literatura, são apresentados diversos tipos de violência e por isso é fundamental traçar algumas considerações conceituais sobre dos tipos de violência que possuem relação direta com a violência contra mulher, como por exemplo: a violência de gênero, a violência doméstica e a violência familiar. No que se refere à violência de gênero, de acordo com o doutrinador Sérgio de Souza, apresenta-se como a forma mais abrangente e geral, sendo que tal expressão é utilizada para designar:

[...] diversos atos praticados contra as mulheres como forma de submetê-las a sofrimento físico, sexual e psicológico, aí incluídas as diversas formas de ameaças, não só no âmbito familiar, mas também abrangendo sua participação social em geral, com ênfase para as suas relações de trabalho, caracterizando-se principalmente pela imposição ou pretensão de imposição de uma subordinação e controle do gênero masculino sobre o feminino. A violência de gênero se apresenta, assim, como um gênero, do qual as demais são espécies. (SOUZA, 2007, p. 35).

Ainda discutindo a respeito de gênero, na visão de Teles:

[...] gênero se constrói socialmente de acordo com o tempo histórico vivido em cada sociedade, enquanto a expressão “sexo” teria uma caracterização biológica com destaque para os aspectos físicos do ser feminino ou do ser masculino. Assim, é a apropria estrutura da sociedade e sua dinâmica que transformam as diferenças sexuais em desigualdades sociais tendo em vista atender interesses de determinados grupos. (TELES, 2006, p. 39).

De acordo com os autores, a categoria gênero é utilizada como meio de evidenciar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem tanto na esfera da vida pública e quanto na vida privada de ambos os sexos, impondo papéis sociais diferentes que foram construídos historicamente, criando assim os polos de dominação e submissão, prevalecendo o poderio masculino em detrimento dos direitos das mulheres.

De acordo com Pinto (2007), a violência contra mulher pode ocorrer tanto em ambientes públicos como privados e é designada por qualquer comportamento permissivo ou omissivo, de caráter discriminatório, instituindo uma agressão, coação ou coerção, que cause morte, dano, constrangimento, limitação, perda patrimonial ou sofrimento de qualquer natureza, proveniente da condição da pessoa, ou seja, o elemento condicionante é a vítima ser do sexo feminino.

A violência contra a mulher possui identificação direta com a violência doméstica, no entanto, o primeiro caso é mais abrangente, já que de acordo com a IV Conferência Mundial da Mulher (1995), conglomera “qualquer ato de violência baseado em sexo, que ocasione algum prejuízo ou sofrimento físico, sexual ou psicológico às mulheres, incluídas as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrárias da liberdade que ocorram na vida pública ou na vida privada”.

No que se refere à conceituação de violência doméstica, inúmeros autores no trabalho de Simião (2015) concordam que é o tipo de violência que ocorre com pessoas interligadas por laços consanguíneos, pelo casamento ou pelo direito consuetudinário, incluindo-se nesse contexto os ex-cônjuges, e na maioria das vezes, essa prática ocorre em casa e tem como vítima crianças e mulheres.

Sérgio Souza (2007, pág. 12) afirma que o termo violência doméstica se apresenta com o mesmo significado de violência familiar ou intrafamiliar, compreendendo assim a prática de maus tratos desenvolvidos no âmbito domiciliar, residencial ou referente ao lugar que habite um grupo familiar. Faz-se importante ressaltar o aspecto espacial no qual ocorre a violência, não priorizando apenas o sujeito violentado, pois a vítima pode ser qualquer pessoa integrante do grupo familiar que venha a sofrer agressões físicas ou psíquicas praticadas por um agressor, membro desse mesmo grupo.

A violência doméstica e familiar contra mulher é manifestada na sociedade das mais variadas formas possíveis, desde a violência simbólica, fruto da sociedade de uma cultura denominada machista; da violência física, que deixa marcas além das corpóreas na vítima; até violência virtual, mais recente, tratando-se de uma crescente modalidade de violência contra a mulher com a divulgação de material pornográfico sem o consentimento, muitas vezes usada como forma de vingança pelo término de um relacionamento.

Sabe-se ainda que a referida lei aplica-se à casos em que haja qualquer relação íntima de afeto (independentemente da orientação sexual), na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a pessoa ofendida, independentemente de morarem no mesmo lugar. Observa-se que pela definição, é possível delinear as diversas possibilidades de aplicação da lei, não somente quanto ao gênero, e para tal, a reflexão faz-se necessária.

Com tantos avanços o que se espera é que a cultura do machismo seja superada cedendo lugar a novos comportamentos, novos pensamentos e uma visão de mundo em que não seja aceitável ou menos culpável um homicídio iniciado em uma relação de amor.

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Sobre a autora
Nara Rubia Gomes Carneiro

Bacharel em direito pela Faculdade de Jussara.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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