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O segurado especial e o descumprimento do princípio da contributividade: o caráter assistencial

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3 OS PRINCÍPIOS DA CONTRIBUTIVIDADE E DA SOLIDARIEDADE 

Os princípios são a base de toda a legislação infraconstitucional e da própria interpretação constitucional, não obstante seria também os princípios da Seguridade Social a base da legislação que trata sobre a Assistência Social, a Previdência Social e a Saúde.

Alguns sistemas de proteção social têm no sentimento de solidariedade seu principal fundamento. Um exemplo são os benefícios voltados aos segurados especiais, que embora marcados pela contributividade da Previdência Social, ostentam fortes traços de solidariedade.

De acordo com o art. 201 da Constituição Federal de 1988, a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. (BRASIL, 1988)

Sabe-se que a contributividade é da essência da previdência social, e tal restou expressamente declarado nos arts. 40 e 201 da Constituição Federal. Afirmar que a previdência social é um sistema contributivo significa reconhecer a obrigatoriedade de recolhimento da contribuição por parte do segurado.

Cabe à legislação ordinária dos regimes previdenciários (no caso do Regime Geral da Previdência Social, a Lei n. 8.212/91; no caso dos regimes próprios de agentes públicos, a lei de cada ente da Federação) definir como será a participação dos segurados, fixando hipóteses de incidência, bem como, alíquotas de contribuição e bases de cálculo, obedecendo, em todo caso, às regras gerais estabelecidas no sistema tributário nacional - previstas, atualmente, na Constituição e no Código Tributário Nacional.

Não existe regime previdenciário na ordem jurídica brasileira que admita o recebimento de benefícios sem a contribuição específica para o regime, “salvo quando a responsabilidade pelo recolhimento de tal contribuição tenha sido transmitida, por força da legislação, a outrem que não o próprio segurado”. (PARREIRA, 2010).

Para Wladimir Novaes Martinez (2012), solidariedade tem uma grande importância, vejamos:

Solidariedade quer dizer cooperação da maioria em favor da minoria, em certos casos, da totalidade em direção à individualidade. Dinâmica a sociedade, subsiste constante alteração dessas parcelas e, assim, num dado momento, todos contribuem e, noutro, muitos se beneficiam da participação da coletividade. Nessa ideia simples, cada um também se apropria de seu aporte. Financeiramente, o valor não utilizado por uns é canalizado para os outros. (MARTINEZ, Wladimir, 2012, p. 117).

A Solidariedade espalhou-se sobre todo o ordenamento jurídico protetor, justificando inúmeras regras jurídicas. Como exemplo temos o custeio dos benefícios dos trabalhadores rurais, que, na sua quase totalidade, depende da dos trabalhadores urbanos. Ou na assistência social, já que o fornecimento de serviços ou o pagamento de benefícios independem de contribuição prévia do assistido (art. 203, CF), mas arcados por toda a sociedade.

Tal princípio impõe uma obrigação social, qual seja todos contribuíram para a manutenção da seguridade social. Isso posto, toda a sociedade, é obrigada a contribuir independentemente de esta contribuição gerar ou não algum benefício.

A própria Constituição aborda a solidariedade quando diz constituir um dos objetivos de nossa República (art. 3°): “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I), “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III) e “promover o bem de todos...” (inciso IV). O art. 194 ressalta para a solidariedade do sistema quando prescreve que “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

Para Kerlly Huback Bragança (2012), a lógica do seguro social não é a mesma do seguro privado, porquanto a obrigação de contribuir não implica necessariamente a contrapartida pessoal por conta do sistema protetivo. Na solidariedade substitui-se o provérbio “Cada um por si e Deus por todos” por “Um por todos e todos por um”.


4 SEGURADO ESPECIAL E O SEU CARÁTER ASSISTENCIAL   

O segurado especial tem sua definição no próprio texto Constitucional, o qual diz que tal segurado tem tratamento diferenciado:

O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei (art. 195, § 8£, da CRFB/88).

Assim, o segurado especial é o pequeno produtor rural e o pescador artesanal. A Lei nº 11.718, de 20 de junho de 2008 trouxe algumas mudanças para o segurado especial, a qual passou a admitir a contratação de mão de obra remunerada eventual pelo segurado especial, sem que este perca esta qualidade. A lei ainda vai mais longe, admitindo mesmo o exercício de outras atividades remuneradas, o que costuma ser fundamental para a sobrevivência destas famílias, especialmente em época de entressafra.

Ainda, cumpre pôr em relevo a previsão do artigo 9ª da Lei 11.718/08 que:

Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes.

Vislumbra-se que a “prova” é o que separa o trabalhador rural do estado de segurado especial do INSS, é a maneira que faz o rurícola ter direito aos benefícios da previdência social. Esta transposição só é possível caso o segurado consiga constatar através de prova documental e testemunhal que praticou a atividade agrícola em período, não necessariamente, imediatamente anterior ao pedido da concessão.

Nesse sentido, o INSS é o órgão responsável pela aprovação dos pedidos de benefícios do trabalhador rural. Em sua grande maioria, as cartas de indeferimento vêm negando o beneficio por não reconhecer quem o requisitou como trabalhador rural. Assim, o resultado é o ingresso na Justiça Federal, competente nas lides contra o INSS, pleiteando o benefício via judicial, ou seja, o Estado gasta duas vezes para deferir ou não um benefício, uma na esfera administrativa e outra na esfera judicial.

O benefício do segurado especial tem caráter assistencial, pois não tem filiação obrigatória e não tem caráter contributivo, que são características especificas dos filiados ao Regime Geral da Previdência Social. Já para o rurícola resta provar, que tem ou teve a condição de trabalhador rural para que seja enquadrado como segurado especial do artigo 201, § 7º, II da Constituição Federal de 1988, acrescido pela Emenda Constitucional nº 20 de 15 de dezembro de 1998.

Ao incluir o trabalhador rural no rol constitucional de segurado especial, o legislador fez uso do Princípio da Solidariedade, procurando dar dignidade a quem sofre com as dificuldades do “campo”. Assim, se configura o assistencialismo com a ausência de contribuição específica que cubra os gastos com os benefícios despendidos ao segurado especial, vindo este custo do montante arrecadado de outros setores, vindo a prejudicar tais setores.


5 GASTOS E CUSTEIO DA PREVIDÊNCIA RURAL  

Inicialmente compreende-se que não existe uma forma de custeio específico que supra totalmente os benefícios percebidos pelos rurícolas. O impasse com o custeio da Previdência Rural acontece por incapacidade de autofinanciamento, pois com os futuros beneficiários não existe a obrigatoriedade da contributividade, como foi relatado.

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O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fez uma pesquisa, onde relatou que em 2013 havia 13,5 milhões de brasileiros com mais de 15 anos de idade trabalhando no campo. Desses, 1,6 milhões tinham carteira assinada. Os outros não tinham carteira assinada ou trabalhavam por contra própria ou então eram empregadores.

Frisa-se que hoje a única contribuição específica ao benefício rural é a contribuição sobre a venda da produção primária, que se destina ao custeio dos benefícios previdenciários rurais, e é insignificante. O rurícola, classificado como segurado especial é praticante da agricultura familiar e de subsistência, sendo, portanto, impraticável o excedente de produção, consequentemente a venda de produção primária. O que é produzido pelo rurícola supre somente a sua subsistência e de sua família, assim, dificilmente sobra uma renda para que ocorra uma suposta contribuição.

Entre os anos de 2009 e 2015, a arrecadação da previdência urbana foi maior do que as despesas com o pagamento das aposentadorias dos trabalhadores dessa categoria. Entretanto, o resultado do RGPS como um todo foi negativo porque, na previdência rural, a arrecadação sempre foi muito inferior às despesas.

De acordo com dados oficiais, em 2015 o valor arrecadado com a contribuição dos trabalhadores rurais representou 2% da receita total do INSS, enquanto os gastos com o pagamento das aposentadorias a essa categoria foram equivalentes a 22,5% do total.

Portanto, o déficit do INSS, está ligado principalmente à aposentadoria rural. Em 2015, o sistema rural registrou déficit de R$ 91 bilhões, enquanto o urbano teve um superávit de R$ 5 bilhões. Assim, o Estado faz uso do Princípio da Solidariedade, onde usando capital das contribuições dos trabalhadores urbanos, paga os benefícios dos trabalhadores rurais já que ocorre uma incapacidade de autofinanciamento por parte dos rurícolas.


6 A PEC 287 E OS REFLEXOS PARA O SEGURADO ESPECIAL

Sabe-se que a Proposta de Emenda Constitucional nº 287 (PEC 287), enviada pelo governo ao Congresso Nacional no início de dezembro de 2016 altera diversas regras relacionadas aos benefícios da Previdência e da Assistência Social. As mudanças propostas para a Previdência incidem tanto sobre o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que protege os trabalhadores da iniciativa privada e os servidores públicos que não contam com regimes próprios, quanto sobre os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), voltados a atender as necessidades dos servidores públicos, federais, estaduais ou municipais.

Certamente um grande reflexo para o segurado especial na proposta da PEC é que terão que atingir a idade de 65 anos para se aposentar. Com isso, desaparece a aposentadoria com idade antecipada em cinco anos para os trabalhadores rurais e a distinção de sexo, também de cinco anos. Além disso, há o aumento de 15 para 25 anos no tempo de contribuição ou de atividade agrícola.

Acrescenta-se também que outra grande mudança para os segurados especiais é a introdução da exigência de contribuição social, com uma alíquota favorecida a ser definida em lei, em substituição ao recolhimento que hoje incide sobre a comercialização da produção. Hoje, a contribuição de 2,1% sobre a produção comercializada e a comprovação da atividade agrícola por, no mínimo, 15 anos garantem ao produtor familiar e a família dele os benefícios previdenciários. A PEC, em substituição a esse sistema, exige contribuição em caráter individual, a ser feita pelo trabalhador e cada um dos membros da família.

Desta forma a aposentadoria poderá ficar mais distante para os trabalhadores rurais, tanto os segurados especiais quanto os assalariados. O pagamento monetário poderá ser inviável para agricultores de menor renda, pois a atividade que eles exercem tende a estar bastante sujeita a interrupções por fatores sazonais, meteorológicos e de mercado. Por outro lado, existe a necessidade de racionalização dos gastos previdenciários, adequando o sistema à realidade orçamentária. Além disso, a contribuição deverá ser individual, o que pode dificultar a filiação à Previdência de mais de um membro da família e impedir a busca do direito ao benefício na justiça.

Contudo, nem todos os segurados estarão imediatamente enquadrados nessas novas regras trazidas pela PEC 287, caso seja aprovada, em razão da chamada regra de transição. Essa regra de transição tem uma finalidade básica, atenuar os efeitos da reforma para aqueles que já estão inseridos no sistema previdenciário com as regras atuais, vigente nesse momento e, portanto, possuem uma expectativa de direito que não pode ser violado, o chamado de direito adquirido.

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Sobre os autores
Luiz Felipe Iaghi Saboia

Acadêmico do 10º período do Curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins.

Fábio Barbosa Chaves

Professor do Curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins; Doutor em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito pela PUC Goiás, orientador deste artigo de conclusão de curso;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SABOIA, Luiz Felipe Iaghi ; CHAVES, Fábio Barbosa. O segurado especial e o descumprimento do princípio da contributividade: o caráter assistencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5117, 5 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58156. Acesso em: 26 abr. 2024.

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