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Sobre ratos e o acordo de leniência da Odebrecht

07/07/2017 às 17:00
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Da forma com foi feita, a punição alcança apenas quem puxou o gatilho, deixando incólume quem, segundo apontaram as investigações, pilhou o país por mais de meio século.

De que a Odebrecht é uma organização criminosa, poucos hão de discordar. Números preliminares apontam para propinas em dezenas de bilhões de reais, sendo que os malfeitos iniciaram na década de 60 do milênio passado. Seria a terceira geração à frente da empreitada delitiva.

 

Sabe-se, ainda, que despendia de 3% a 5% daquilo que auferia, de forma irregular, a título de propina. Conclusão lógica é que o desfalque aos cofres públicos pode adentrar na casa dos trilhões.

Excluam-se desses números os prejuízos indiretos tais como, compra de medidas provisórias (cuja redução e supressão de tributos ficaram patente), bem como inúmeros outros atos desabonatórios, atos esses que tinham/têm um singular objetivo: saquear os cofres públicos.

Dito isso, necessário analisar a posição atual da Odebrecht, bem como sua real possibilidade de continuar operando no mercado brasileiro ou, de forma mais restritiva, contratar com órgãos públicos nacionais. Para tal, necessário analisar o acordo de leniência feito entre o Ministério Público Federal e a empresa, indicando se o Fiscal da Lei observou os parâmetros legais/constitucionais.

Consta da cláusula 2ª do acordo de leniência que:

“o interesse público é atendido com o presente acordo de leniência tendo em vista a necessidade de (i) conferir efetividade à persecução cível de outras pessoas físicas e jurídicas suspeitas e ampliar e aprofundar, em todo o país, as investigações em torno de atos de improbidade administrativa, particularmente aqueles relacionados a fatos que configurem também crimes contra a Administração Pública e o Sistema Financeiro Nacional, crimes de lavagem de dinheiro e crimes contra a Ordem Econômica e Tributária, entre outros, especialmente no que diz respeito à repercussão desses ilícitos nas esferas cível, administrativa, regulatória e disciplinar (ii) preservar a própria existência da empresa e a continuidade de suas atividades, o que, apesar dos ilícitos confessados, encontra justificativa em obter os valores necessários à reparação dos ilícitos perpetrados: (iii) assegurar a adequação e efetividade das práticas de integridade da empresa, prevenindo a ocorrência de ilícitos e privilegiando em grau máximo a ética e transparência na condução de seus negócios; e (iv) estimular que a COLABORADORA entabule negociações e conclua acordo em outras jurisdições, que porventura possam ter interesse em acordos semelhantes, para o fim de ser promovida a expansão das investigações de corrupção no Brasil e no exterior”

 Apesar das justificativas, na prática, o acordo pode ser assim resumido: reunir provas para incriminar a classe política, ficando a reparação do dano, bem como a proibição de contratar com os órgãos públicos, para um plano secundário. Perquire-se: será que o modo de agir do parquet é o mais apropriado? A negativa se impõe.

Os que labutam na área rural, certamente têm nos ratos uma grande dor de cabeça. Animal com enorme poder de destruição dado que ataca, essencialmente, a produção; aquilo que está prestes a ser colhido, inclusive, as próprias sementes que serviriam de base para o próximo plantio. Tratando-se de inimigo comum construiu-se a ideia de que não adianta abater os roedores do presente; é preciso combater os vindouros, destruindo seu ambiente de procriação. Para isso, a melhor escolha é extirpar seu habitat. Os que já estão presentes morrem de inanição ao passo que os demais não serão atraídos, evitando, assim, sua manutenção e procriação.

Mal comparando, a atuação dos roedores possui semelhança com a Odebrecht e os políticos brasileiros. A questão a ser feita é: eliminando todos os políticos da atualidade (ratos) efetuamos uma medida duradoura ou paliativa? Cremos que a segunda alternativa se sobrepõe. De forma sentencial e sem rodeios: basta um novo calendário eleitoral nacional e, ainda que nenhum dos atuais mandatários se reeleja, a base é refeita. Corruptores e corruptos entrelaçam-se novamente e os atos delitivos são retomados.  

Portando, a medida adotada pelo MPF tende a higienizar o presente, deixando a desejar para o futuro. É medida paliativa e não profilática. Outrossim, o desaparecimento momentâneo do corrupto, deixa intacta a figura do corruptor. Este vive sem aquele, ao passo que o inverso não se sustenta.

Assim, salvo melhor juízo, ataca-se a consequência e não a causa, dada que a atividade política não é um fim em sim mesma. É uma expectativa de benesses futuras, muito incentivada pelo quadro corruptor que se apresenta. Está a serviço de algo maior, sendo alavanca para crimes mais perversos, com potencialidade de gerar maiores prejuízos.

Longe de afirmar que o político é vítima; apenas se declina que não é o predador mais forte. Logo, sob esse mote, a atuação no Ministério Público Federal deixa a desejar, pois elege apenas uma ala da cadeia dominial. Contudo, há outros apontamentos que merecem atenção.

O acordo de leniência, apesar de possível, é deveras oneroso ao país, havendo questionável legitimidade nos moldes em que foi talhado. Se a Constituição Federal outorgou ao Ministério Público Federal a defesa do interesse público, não o fez de forma exclusiva.

Repise-se: da forma com foi feita, a punição alcança apenas quem puxou o gatilho, deixando incólume quem, segundo apontaram as investigações, pilhou o país por mais de meio século. Mal comparando, pune-se o receptador, mas não o furtador. De forma sentencial: não há como apagar um passado tão pernicioso ao povo brasileiro.

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O acordo de leniência, em sua cláusula 7ª, prescreve que “a COLABORADORA, se compromete a pagar valor global equivalente, nesta data a R$ 3.828.000,000,00 (três bilhões, oitocentos e vinte e oito milhões de reais) (“valor global”), de acordo com as condições de pagamento estabelecidas no Apêndice”. Dessa quantia, parte foi para pagamento, à vista, para os EUA e Suíça, ao passo que parte será recebida pelo Brasil, em longínquos 23 anos.

Esse “acordo”, bastante maternal (restituir R$ 4 bi para quem pode ter saqueado trilhões é mero sermão), certamente é um bom motivo para continuar com os maus feitos, típico exemplo em que o crime compensa e, neste caso, compensa muito bem.

Bom que se diga que a própria lei que regulamentou o acordo de leniência (Lei 12.864/2013), em seu art. 16 § 3o , prescreve que “O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado". Logo, salvo se o MPF considerou que as cifras acima citadas englobam o total da lesão aos cofres públicos o acordo, além de equivocado, é ilegal, padecendo de vício insanável.

Na mesma linha de argumentação, institucionalmente o acordo parece colocar em um pedestal o Ministério Público Federal frente ao próprio MP estadual, bem como outros órgãos, como PGEs estaduais, havendo imposição na sua adesão, bem como retirando autonomia na defesa de interesses puramente estaduais e municipais. Há, inclusive, a possibilidade de descarte de provas obtidas no acordo de leniência, não podendo ser utilizado por não aderentes.

Outra não é a leitura do § 3º da clausula 4ª, verbis (sem destaques no original):

“Em caso de negativa de adesão a este acordo de leniência pelo membro do Ministério Público mencionado n § 2º desta cláusula, por qualquer motivo, os anexos e provas decorrentes deste acordo de leniência que digam respeito aos fatos submetidos a tais promotores ou procuradores e cuja adesão foi negada serão devolvidas pelo Ministério Público Federa à empresa, mediante recibo, e não poderão ser utilizadas pelo membro do Ministério Público não aderente para quaisquer fins. Na hipótese de um anexo que aponte fatos atinentes a duas jurisdições ter sido rejeitado por ser utilizado pelo último após excluídas as informações que digam respeito aos fatos de atribuição do Ministério Público não aderente”

O próprio Ministério Público Federal, consoante cláusula 8ª “h” se compromete a “defender perante terceiros a validade e eficácia de todos os termos e condições deste acordo para todos os fins”, situação que o coloca, salvo melhor juízo, na condição de causídico da própria empresa, utilizando-se um aparato estatal para preservar direitos da acordante/colaboradora, situação bastante deletéria ao interesse público.

De tudo isso, conclui-se que o acordo de leniência com a Odebrecht não atende o interesse público (diante de uma reposição mínima, dá quitação a todos os valores desviados, sendo desproporcional ao dano); fica preso apenas a situações presentes, fazendo crer que a teia de corrupção, em breve, será restabelecida; subjuga outros órgãos estatais, criando hierarquias que a Constituição Federal não criou. Por fim, o que é mais lesivo: outorga novo alvará de funcionamento, permitindo que a empresa continue atuando (inclusive contratando com entes públicos), não obstante tudo o que praticou. Punir somente a ala política certamente incentiva a continuidade do modus operandi de uma Odebrecht e de outros empreendimentos que se utilizam da cooptação de políticos para defesa de seus interesses.

 

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Sobre o autor
Leandro Brescovit

Graduado pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Analista Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, lotado na Procuradoria Regional de Caxias do Sul/RS, Pós graduado em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRESCOVIT, Leandro. Sobre ratos e o acordo de leniência da Odebrecht. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5119, 7 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58202. Acesso em: 19 abr. 2024.

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