Capa da publicação Julgamentos midiáticos: confronto entre o princípio da publicidade e as garantias do acusado
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Julgamentos midiáticos: o princípio da publicidade e o direito a um julgamento justo (fair trial)

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Resumo:


  • O julgamento justo como garantia fundamental individual é essencial para assegurar a observância dos limites impostos pelo Estado Democrático de Direito, incluindo princípios como a presunção de inocência e o devido processo legal.

  • A ponderação de princípios como publicidade e privacidade se torna crucial em casos de julgamentos midiáticos, nos quais a exposição dos casos concretos pela mídia pode influenciar a imparcialidade do júri e comprometer a justiça do processo.

  • O ativismo judicial penal, em meio à crise de credibilidade ética e jurídica das instituições estatais, pode levar à midiatização excessiva de casos criminais, violando direitos fundamentais do acusado e comprometendo a imparcialidade do julgamento.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. ATIVISMO JUDICIAL PENAL E O DIREITO A UM JULGAMENTO JUSTO – FAIR TRIAL

Diante da evolução doutrinária acerca do papel da política criminal na interpretação e aplicação do sistema normativo, a partir dos ensinamentos doutrinários difundidos pelos funcionalistas (radical e moderado, de Günter Jakobs e Claus Roxin, respectivamente), o tema da influência da política criminal em relação à dogmática penal e, consequentemente, ao sistema penal vem ganhando força e encontrando ressonância no cotidiano dos operadores do direito.

Isso significa que a política criminal vem, inegavelmente, reconfigurando a dogmática penal, entendida esta última como área do conhecimento jurídico-teórico responsável pela conceituação e valoração dos institutos de direito penal.

Visando a superar as bases conceituais decorrentes de uma dogmática penal fincada nas premissas do sistema de ação final, ou do finalismo de Welzel, o qual parte do pressuposto de que o conceito de ação, no qual o conteúdo da vontade não pode ser dissociado do ato produzido, de maneira que toda ação, ontologicamente, como essência do ser, é definida como um agir finalisticamente orientado, portanto, ação definida como um conceito pré-jurídico natural, a doutrina funcionalista busca superar essa limitação ao mundo do ser, pré-jurídico e imodificável, a partir de uma construção teórica fincada em bases normativas.

Vale dizer: para os funcionalistas a construção da dogmática jurídica penal deve partir das necessidades sistêmicas do sistema jurídico penal, de cunho prático, cuja ala mais extrema – funcionalismo radical – leva ao raciocínio e à aceitação de que o direito penal e processual penal prescinde da necessidade de proteção a bens jurídicos como elemento de justificação e legitimação da intervenção penal.

Por outro lado, o funcionalismo moderado, fincado também na necessidade de construção da dogmática jurídico penal a partir das necessidades de política criminal – direito penal orientado às consequências – não prescinde da proteção de bens jurídicos, nota que o diferencia em relação ao funcionalismo radical.

A importância de trazer à baila o tema acima, retratado de forma extremamente resumida ante a limitação aos objetivos deste trabalho, é demonstrar a existência e as diferenças fundamentais de sistemas penais possíveis, conforme a sua orientação política e dogmática.

É nesse contexto de possíveis variáveis da política criminal e a sua confrontação com os valores constitucionais – direito penal orientado à valoração - é que se pode compreender e aferir a legitimidade das ações judiciais, especialmente no que tange a ações que adentram e afetam inexoravelmente direitos fundamentais.

O modelo político nacional, indubitavelmente, segundo a Constituição Federal, constitui-se em um modelo de Estado Democrático de Direito, cujo fundamento mais importante encontra-se expresso em seu artigo 1º - dignidade da pessoa humana.

Dessarte, exsurge imprescindível o bem jurídico com sua função legitimadora do direito penal em nosso Estado Democrático de Direito, diante do modelo normativo garantista desenhado na Constituição Federal.

No entanto, esse denominado garantismo penal ainda é mal compreendido nos dias atuais, conforme leciona Eugênio Pacelli de Oliveira:

O denominado garantismo penal, tão incompreendido quanto referenciado (para o bem e para o mal) em doutrina e na jurisprudência de nossos dias, não pede muito, malgrado os excessos na sua aplicação: exige-se, com ele, prudência nas incriminações, ciência (como compreensão) da falibilidade do conhecimento humano e respeito aos direitos fundamentais da pessoa. Nada que já não tenha sido reclamado há tempos pelos povos civilizados. ‘Dentre tantas as antíteses apontadas na obra de Ferrajoli, a rejeição à estrutura autoritária de Estado, como impossibilidade de sobrevivência de um ambiente garantista – Lei x Arbítrio (em última análise) – parece decisiva. O princípio da legalidade surge como verdadeiro pressuposto de uma ordem social e política com pretensões democráticas. E daí se chegará com facilidade a diversos outros axiomas de Ferrajoli para o Direito Penal (nulla poena sine crimine; nullum crimen sine lege; nulla lex poenalis sine necessitate e nulla necessitas sine injuria). No âmbito de uma democracia, na qual os direitos fundamentais ocupam posição central na definição do papel do Estado (Democrático de Direito), não se podem aceitar incriminações sem finalidade de efetiva tutela daqueles direitos (fundamentais) e nem dirigidas contra condutas que não produzam lesões relevantes a eles (direitos).25

Por outro lado, em muitos casos de julgamentos midiáticos, em que a publicidade se sobrepõe, efetivamente, à privacidade uma das causas que levam os operadores do direito a optar por essa via da irrestrita publicidade é notória crise de credibilidade ética e de eficiência das instituições que compõe o sistema penaldesde o legislativo na elaboração de leis brandas para crimes que verdadeiramente atingem a coletividade, tais como nos casos de ofensas a bens jurídicos coletivos e difusos (meio ambiente e corrupção de agentes públicos e econômicos), até o judiciário e os órgãos encarregados da execução penal.

É notório que em grandes casos que envolvem pessoas influentes e detentoras de alguma parcela de poder do estado, há uma grande dificuldade dos órgãos de instância ordinária em condenar criminosos do colarinho branco – White Collar Crime – seja pela brandura da legislação, seja pelo tráfico de influência que exercem às escuras e nas entranhas do poder.

Essa situação se agrava ainda mais em decorrência da corrupção sistêmica e generalizada que permeia as instituições democráticas.

É nesse contexto que surge o ativismo judicial, para o bem e para o mal. Perplexos, ao verem seus esforços empregados no combate à verdadeira criminalidade, muitos operadores do direito e do poder estatal (delegados, juízes e promotores de justiça – sujeitos da persecução penal) terminam por se valer da ampla publicidade de feitos criminais – midiatização – a fim de garantir a aplicação da lei penal por meio de uma espécie sui generis de accountability da opinião pública por meio da mídia, quando há interesse desta da divulgação ampla de certos casos.

A consequência inevitável do processo de midiatização de feitos que deveriam ficar resguardados aos cuidados do Estado é a violação de um catálogo de direitos fundamentais do indivíduo, que tem a sua cabeça lançada a prêmio para a opinião pública, sem lhe conferir o indisponível direito de defesa com paridade de armas.

O resultado antecipado do ato de publicização excessiva de casos concretos é a antecipação de uma condenação por vias transversas que extrapolam os limites fixados em lei, o que, por si só, configura uma violação ao princípio da legalidade em um Estado Democrático de Direito.

Quem paga a conta pela crise de credibilidade ética e moral do Estado é o indivíduo quando comete um desvio de conduta (crime) em relação às normas jurídicas. Além disso, o infrator pagará ainda, com a exposição e execração de sua imagem enquanto indivíduo, com diversos direitos da personalidade que, em tese, não tem nenhuma relação de causa e efeito com o ato criminoso por ele praticado. E as violações a direitos não se restringem à pessoa do infrator na maioria dos casos midiáticos, atingem também seus familiares quase que de forma inevitável.

Esta prática não é recente, tampouco exclusiva dos dias atuais. Cesare Beccaria denunciou em sua obra Dos Delitos e das Penas a malfada prática do uso de pôr a cabeça a prêmio nos tempos de penas cruéis e desproporcionais, nos seguintes termos:

Constituirá vantagem para a sociedade colocar a prêmio a cabeça de um celerado, dar armas a cada cidadão e assim fazer outros tantos carrascos?

Ou o criminoso deixou o país, ou ainda reside nele. No primeiro caso, os cidadãos são excitados a praticar um homicídio, a matar talvez um inocente, a merecer tormentos. Comete-se uma injúria ao país estrangeiro, desmere-se a autoridade, autoriza-se que sejam feitas idênticas usurpações entre os próprios domínios.

Se o que praticou o crime ainda se encontra no país cujas leis violou, o governo que coloca a cabeça dele a prêmio demonstra debilidade. Quando a gente tem força para se defender não compra o auxílio de ninguém. Além disso, o uso de colocar a prêmio a cabeça de um cidadão desfaz todas as ideias de moral e de virtude, tão débeis e tão abaladas no espírito humano. De uma parte, as leis castigam a traição; de outro, autorizam-na. O legislador, com uma das mãos, aperta os laços de sangue e de amizade e, com a outra, dá o prêmio àquele que os rompe. Sempre em contradição com ele mesmo, ora tenta disseminar a confiança e encorajar os que duvidam, ora espalha a desconfiança em todos os corações. Para prevenir um crime, faz com que nasçam cem.

Semelhantes usos apenas são convenientes às nações fracas, cujas leis só servem para sustentar por um momento um edifício de ruínas que se esboroa inteiramente.26

Beccaria já denunciava, àquela época, a prática Estatal de colocar a cabeça de um cidadão infrator a prêmio para o povo.

Nada mudou em essência, e as práticas continuam as mesmas nas sociedades modernas, apenas com algumas peculiaridades dos tempos modernos.

Como não citar o exemplo da afamada Operação Lava-Jato, especialmente no seu episódio envolvendo um ex-presidente – Lula - no momento em que este foi nomeado para o cargo de Ministro pela Presidência da República? Teria sido acertada a decisão do Juiz Federal Sérgio Moro ao conferir irrestrita publicidade aos documentos contidos nos autos?

Ressalte-se que, quanto ao caso supracitado, não se pretende aqui a defesa política de nenhuma das partes – nem do réu e nem do juiz da causa.

O juiz federal Sérgio Moro, sabendo da trama para nomear um dos investigados na operação por ele conduzida, ou supervisionada, revelou e midiatizou os autos que até então eram, ao menos teoricamente, sigilosos. Sua justificativa para tal decisão teria sido a de que em uma sociedade democrática e livre os cidadãos têm o direito de saber o que seus governantes fazem.

Ao saber que não teria mais poder sobre o referido investigado após a sua nomeação para o cargo de ministro, ante o foro por prerrogativa de função que este passaria a deter, o que acarretaria modificação da competência do juízo, o referido magistrado, imbuído do espírito de implacável combate à impunidade, decidiu “colocar a cabeça a prêmio” do acusado.

Ora, não teria sido este ato um ato de defesa à aplicação da lei penal, de combate à impunidade? Se houvesse confiança na credibilidade das instituições da cúpula do judiciário (STF), a midiatização dos autos seria mesmo necessária e imprescindível para fins de garantir a aplicação da lei penal?

Se houvesse confiança então a decisão de publicização dos autos teria sido desnecessária e desproporcional, tendo em vista que nada, sob o ponto de vista estritamente jurídico, a justificaria naquele momento e sob a referida justificativa apresentada pelo próprio magistrado.

Por outro lado, se não houvesse confiança, então o referido ato judicial é a comprovação fática e inequívoca da crise de credibilidade ética e moral das instituições encarregadas da persecução penal e da aplicação da lei penal.

Desse modo, o exemplo dado da Operação Lava-Jato comprova a crise de credibilidade das instituições responsáveis pela aplicação da lei penal, tal como já denunciado por Cesare Beccaria nos tempos mais longínquos.

Ressalte-se que esta constatação demonstra que o ativismo judicial penal decorre da crise de credibilidade ética, moral e de eficiência que acomete as instituições estatais, que, por sua vez, decorre da corrupção generalizada de que sofrem essas instituições.

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Infelizmente, de um lado se tem louváveis esforços e boas intenções de operadores do direito que buscam a efetividade das normas penais, combatendo a impunidade de delitos que merecem a repressão penal, e de outro lado se tem a consequência inevitável de comprometimento do direito a um julgamento justo decorrente da postura ativista do poder encarregado de julgar com imparcialidade.

Ademais, mesmo que fosse possível cogitar-se da possibilidade de existência de juízes ativistas e, simultaneamente, imparciais, a midiatização de casos criminais gera danos colaterais a direitos fundamentais do indivíduo que nada tem a ver com a infração por ele cometida, o que viola o princípio da proporcionalidade e da legalidade.

Reafirmo, o julgamento justo não significa absolvição incondicionada ou impunidade.

Sem querer propor a adoção de uma postura abstratamente adequada para todos os casos possíveis da vida real, é preciso que se tenha em mente todas as nuances acima destacadas a fim de verificar, na atividade ponderativa, se os valores constitucionais adotados pelo nosso estado permite a midiatização, voluntária ou involuntária, de casos judiciais.

Essa reflexão se faz importante para que não se perpetuem os erros do passado, tais como os já cometidos em tempos sombrios da idade média ou de qualquer outra época da sociedade civilizada.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho expôs a problemática da influência da mídia nos casos criminais que alcançaram grande repercussão na sociedade. Tratou-se acerca dos princípios do processo penal garantidores de um julgamento justo ao acusado, quais sejam: da presunção de inocência, do devido processo legal, da publicidade, da privacidade e da imparcialidade do julgador.

Foram ainda traçadas balizas no tocante ao conflito aparente desses princípios e garantias, precipuamente em relação ao princípio da publicidade, o qual traz ao acusado a garantia de não possuir um julgamento sigiloso, como ocorria na época da ditadura militar, mas, também que pode acarretar a ampla divulgação do caso, caso interesse à mídia, revelando sua intimidade ao público, e relativizando a privacidade não apenas sua, mas também de sua família.

Ilustrando o tema, foram expostos três casos criminais famosos, como os de Isabella Nardoni, de Suzane von Richthofen e do Maníaco do Parque, os quais causaram grande clamor social.

Por fim, perpassou-se pela questão do ativismo penal e no carecimento de credibilidade das instituições, muitas das quais se utilizam da midiatização dos autos para fins de garantir a aplicação da lei penal.

Verificou-se, por fim, que, a falta de confiança converge para a comprovação fática e inequívoca da crise de credibilidade ética e moral das instituições encarregadas da persecução penal e da aplicação da lei penal, em detrimento dos acusados levados a julgamento, parcialmente destituídos de seus direitos e garantias.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Mendonça de Freitas

Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça Substituto do Estado do Acre. Ex-analista Judiciário da Justiça Federal, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Aprovado em 6 (seis) concursos de Analista Judiciário em Tribunais Federais, 4 (quatro) concursos de Técnico Judiciário de Tribunais Federais, Ex-Agente de Polícia Científica, ex-servidor do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Paulo Henrique Mendonça. Julgamentos midiáticos: o princípio da publicidade e o direito a um julgamento justo (fair trial). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5105, 23 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58643. Acesso em: 22 dez. 2024.

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