4 DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Ante os inúmeros institutos e casos práticos que refletem, direta e indiretamente, a segurança jurídica, conforme já explicitado, bem como a limitação deste trabalho, destacar-se-ão apenas dois julgados a título de ilustração da aplicação deste importante princípio, com base no que fora até aqui discutido. O primeiro refere-se à vedação da aplicação retroativa de nova interpretação de norma administrativa e o segundo relaciona-se ao prazo decadencial que a Administração Pública possui para anular seus atos.
4.1 Da Vedação Da Aplicação Retroativa De Nova Interpretação De Norma Administrativa
Conforme já apontado neste trabalho, a Lei n.º 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal), em seu artigo 2.º, parágrafo único, inciso XIII, prevê a vedação da aplicação retroativa de nova interpretação de norma administrativa com base no princípio da segurança jurídica.
Como exemplo prático, tem-se o julgado, proferido pela Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), acerca de apelação em mandado de segurança, no qual o impetrante desejava não sofrer descontos em seus proventos entre os anos 2000 e 2001, em face da aplicação de interpretação retroativa de norma administrativa, que viola a segurança jurídica, conforme segue a ementa abaixo:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. RECEBIMENTO DE DÉCIMOS DE GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÕES DE DIREÇÃO, CHEFIA OU ASSESSORAMENTO "DAS" INCORPORADOS. MUDANÇA DE INTERPRETAÇÃO. IRRETROATIVIDADE. LEI 9784/99. VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ. REPOSIÇÃO AO ERÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Trata-se de apelação em mandado de segurança, interposta contra a sentença que denegou a segurança, onde o impetrante objetivava não sofrer descontos em seus proventos, a título de reposição ao erário, referente a décimos de gratificação incorporada, recebidos no período compreendido entre setembro/2000 e fevereiro/2002. 2. O ato impugnado tem lastro no Ofício Circular n. 19/SRH/MP, fundado em parecer da AGU, com o objetivo de unificar o entendimento sobre aplicação da legislação correlata à incorporação de parcelas incorporadas. 3. Ficou evidenciado, portanto, mudança de entendimento de norma, sendo vedado à Administração pública retroagir nova interpretação, tendo em vista o princípio da segurança jurídica, nos termos do art. 2º da Lei n. 9.784/99. Precedente deste Tribunal (AC 1999.01.00.089520-6/DF, Primeira Turma, Relator Juiz Federal João Batista Gomes Moreira (Conv.), DJ 28/08/2000, p. 35). 4. Reposição ao erário: boa-fé e natureza alimentícia: são inexigíveis as verbas de natureza alimentícia recebidas de boa-fé pagas indevidamente. Súmula 106 do STF e Precedentes deste Tribunal (AC 2004.34.00.008703-3/DF, Primeira Turma, Relatora Juíza Federal Sônia Diniz Viana (Conv.), e-DJF1 13/01/2009, p. 29 e AMS 2000.34.00.005323-2/D , Primeira Turma, Relator Juiz Federal Evaldo de Oliveira Fernandes Filho , e-DJF1 16/09/2008, p. 42) 5. Apelação provida, para, reformando a sentença, conceder a segurança, para que a autoridade Impetrada se abstenha de efetuar descontos, nos proventos do Impetrante, de parcelas recebidas de boa-fé, referentes a incorporações de décimos, recebidos no período de setembro/2000 a fevereiro/2002. (TRF-1 - AMS: 38878 DF 2003.34.00.038878-6, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL ANTÔNIO SÁVIO DE OLIVEIRA CHAVES, Data de Julgamento: 03/06/2009, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: 21/07/2009 e-DJF1 p. 30). (grifo nosso).
Ressalta-se, no referido decisum, que o impetrante/apelante recebeu de boa-fé os décimos de gratificação incorporados em seus proventos, afastando, assim, causa excludente da segurança jurídica, conforme discutido neste trabalho, razão pela qual a Apelação foi provida, determinando-se que a Administração Pública não efetue os descontos das parcelas recebidas referentes aos décimos.
4.2 Da Decadência do Direito da Administração Pública de Anular os Atos Administrativos
Outro instituto que merece destaque, decorrente do princípio da segurança jurídica, é o da decadência. A lei n.º 9.784/99, em seu artigo 54, estabelece que decai em cinco anos o direito de a Administração Pública anular seus atos ilegais, contados da data em que foram praticados, salvo se comprovada a má-fé do beneficiário. No âmbito da Previdência Social, a Lei n.º 8.213/91, em seu artigo 103-A, determina que o prazo decadencial para o INSS anular seus atos é de dez anos, conforme já relatado acima.
Ocorre que, nem sempre, a Administração Pública obedece este prazo, anulando, por vezes, atos que já se convalidaram com o decurso do tempo, motivo pelo qual o administrado socorre-se ao Poder Judiciário para pleitear um direito adquirido.
A título de ilustração, a Egrégia Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF4), por unanimidade, negou provimento à apelação e à remessa oficial do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), aplicando a decadência como decorrência do princípio da segurança jurídica, conforme segue:
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DECADÊNCIA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. A Administração, em atenção ao princípio da legalidade, tem o poder-dever de anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais (Súmulas 346 e 473 do STF). Entretanto, este poder-dever deve ser limitado no tempo sempre que se encontrar situação que, frente a peculiares circunstâncias, exija a proteção jurídica de beneficiários de boa-fé, em decorrência dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Precedentes do STF. In casu, restaram configuradas as circunstâncias excepcionais a demandar a aplicação do princípio da segurança jurídica em detrimento do princípio da legalidade. (TRF-4 - APELREEX: 14183 SC 2008.72.00.014183-0, Relator: CELSO KIPPER, Data de Julgamento: 16/12/2009, SEXTA TURMA, Data de Publicação: D.E. 14/01/2010)
Conforme consta do referido julgado, trata-se de uma segurada do INSS que impetrara, em 11/12/2008, mandado de segurança, com pedido de liminar, objetivando restabelecimento da aposentadoria por idade urbana que percebia desde 04/05/1992, sob o argumento de que decorreram mais de cinco anos entre a concessão e o ato administrativo que cancelou a sua inativação, ou seja, já decaiu o direito da Administração Pública de rever seus atos, nos exatos termos do artigo 54 da Lei 9.784/99. Afirmou, ainda, que o benefício foi concedido dentro dos preceitos legais, não podendo ser penalizada com o cancelamento deste por erro administrativo. A autarquia federal, por sua vez, sustentou que o benefício fora concedido quando a autora não tinha idade mínima para tanto, além da ausência de documentos com o fim de comprovar o tempo mínimo de contribuição necessário para a outorga da inativação por idade urbana. O INSS argumentou, também, que pode anular seus atos eivados de ilegalidade, e que não ocorreu a decadência, uma vez que possui o prazo de dez anos, conforme o artigo 103-A, da Lei de Benefícios Previdenciários, contados a partir de 29/01/1999, para a revisão do benefício.
Em seu voto, o relator Des. Federal Celso Kipper asseverou que a Administração, em atenção ao princípio da legalidade, pode e deve anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, eis que tal enunciado encontra-se sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Súmula 346: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
Súmula 473: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Contudo, o Eminente Relator consignou que o poder-dever da Administração de anular seus próprios atos não é ilimitado no tempo, ficando sujeito, à observância de prazo decadencial. Como bem assentou no bojo de seu voto:
Em decorrência dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, subprincípios do Estado de Direito, e da consequente necessidade de estabilidade das situações jurídicas criadas pela própria Administração, quando delas decorram efeitos favoráveis aos particulares, o poder-dever de anular seus atos deve ser limitado no tempo, sempre quando, associada ao transcurso de um certo período, encontrar-se situação que, frente a peculiares circunstâncias, exija a proteção jurídica de beneficiários de boa-fé. (TRF-4 - APELREEX: 14183 SC 2008.72.00.014183-0, Relator: CELSO KIPPER, Data de Julgamento: 16/12/2009, SEXTA TURMA, Data de Publicação: D.E. 14/01/2010).
Ademais, não há alegação, pelo INSS, de existência de fraude na obtenção do benefício ou de que tenha havido má-fé da impetrante para a percepção deste, o que seria causa de anulação do benefício. Soma-se a isso o fato de que houve o decurso de, aproximadamente, 16 anos entre a concessão e o cancelamento do benefício previdenciário, ocorrido em 2008. Eis que ultrapassou o prazo decadencial de dez anos da Lei Previdenciária, para que o INSS anule seus atos eivados de ilegalidade, o que, aliado à idade avançada da demandante – contava com 73 anos por ocasião do cancelamento -, configuram as circunstâncias que demandam a aplicação do princípio da segurança jurídica em detrimento do princípio da legalidade, razão pela qual o E. Tribunal negou provimento ao recurso de apelação do INSS e à remessa necessária, determinando o reestabelecido do benefício de aposentadoria pleiteado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, frisou-se, neste trabalho, que o princípio da segurança jurídica, elemento essencial do Estado de Direito, tem como escopo manter a estabilidade, a ordem jurídica, a paz social e a previsibilidade da atuação estatal, a fim de que o homem possa conduzir a sua vida de forma responsável. Com isso, consignou-se que tal princípio repousa-se sobre os alicerces da estabilidade – manutenção das decisões dos poderes públicos -, e da previsibilidade – certeza que os cidadãos possuem em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos.
Como decorrência do princípio da segurança jurídica, apontou-se para a existência dos institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, elevados a garantias constitucionais fundamentais (Art. 5.º, XXXVI da Constituição Federal de 1988). O significado destes institutos está previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu artigo 6.º, §§ 1º ao 3º.
Ademais, explicitou-se que a segurança jurídica encontra amparo também no Direito Administrativo, em especial, na Lei n.º 9.784/99 – Lei de Processo Administrativo Federal, no seu artigo 2.º. Com efeito, pôde-se destacar, deste instrumento normativo, dois importantes efeitos ou institutos que decorrem da segurança jurídica, a saber: a vedação de aplicação retroativa de interpretação de atos normativos (art. 2.º, Parágrafo Único, inciso XIII) e a decadência (art. 54). Frise-se que a decadência, na esfera da Administração Pública, também foi estabelecida na Lei 8.213/91 – Lei de Benefícios Previdenciários, em seu artigo 103-A. Destarte, como é comum haver alteração na interpretação de atos normativos, na esfera administrativa, o legislador, consagrando o princípio da segurança jurídica, houve por bem proibir que nova interpretação tenha efeito retroativo. Ademais, conforme bem assentado neste trabalho, evidenciou-se que a Administração Pública não pode anular seus atos ilegais no tempo que bem entender, o que geraria extrema insegurança jurídica, razão pela qual o legislador estabeleceu, para a sua anulação, por exemplo, os prazos decadenciais de cinco (Lei de Processo Administrativo) e dez anos (Lei de Benefícios Previdenciários).
Destacou-se, ainda, que a doutrina administrativista divide a concepção do princípio da segurança jurídica em dois sentidos: o sentido objetivo, que são limites à retroatividade de atos estatais que afetem o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; e o sentido subjetivo (proteção à confiança), segundo o qual se exige do Estado uma atuação leal e coerente, sem sobressaltos ou surpresas aos seus administrados.
O marco histórico da segurança jurídica administrativa, em seu sentido subjetivo, foi em 1956, no caso intitulado “A Viúva de Berlim”, segundo o qual o Tribunal alemão determinou que se mantivesse o benefício previdenciário a uma viúva mesmo que diante de um ato ilegal do Estado.
Como decorrência da segurança jurídica, consignou-se, ademais, que, na atuação da Administração Pública, vigora a Teoria dos Atos Próprios, também chamada de venire contra factum proprium, que é a vedação do Estado de alterar, repentina e imotivadamente, seu padrão de agir, decidir ou interpretar os atos normativos. Assim, deixou-se assente que não pode a Administração Pública ir contra seus próprios atos, sendo desleal com o administrado.
Por fim, para ilustrar a aplicação prática da segurança jurídica no caso concreto, demonstraram-se dois julgados. O primeiro deles retratou a vedação da aplicação retroativa de nova interpretação da Administração Pública em sede de Apelação em Mandado de Segurança, na qual o TRF1 considerou que o Estado violou a referida vedação ao descontar dos proventos do servidor público seus décimos de gratificação pelo simples fato de ter adotado uma nova interpretação do ato normativo, atacando, frontalmente, o direito adquirido deste servidor. Já o segundo julgado referiu-se ao instituto da decadência administrativa. Assim, o TRF4 negou provimento à apelação do INSS que havia cancelado, em 2008, a aposentadoria por idade de uma segurada, a qual recebia o benefício desde 1992, vez que já havia decorrido o prazo decadencial.
Ante as reflexões aqui tecidas, impende destacar que o princípio da segurança jurídica é importante para o País, pois gera um clima de estabilidade das relações jurídica, o que propicia, por exemplo, no plano econômico, a entrada de investimentos estrangeiros, e, no plano social, a confiança dos indivíduos nas instituições estatais, bem como maior senso de justiça, igualdade e dignidade da pessoa humana. Uma sociedade que conhece quais e como são estabelecidas as “regras do jogo”, sabendo, ainda, que, independentemente do seu resultado, elas não serão alteradas sem justos motivos, é capaz de melhor planejar o seu futuro, obter a paz e conquistar a felicidade plena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Documentos em meio eletrônico:
BRASÍLIA. Tribunal Regional Federal – Primeira Região. Apelação em Mandado de Segurança n.º 38878 DF 2003.34.00.038878-6. Relator: Desembargador Federal Antônio Sávio De Oliveira Chaves. Pesquisa de Jurisprudência, acórdãos, 03 jun 2009. Disponível em: <https://trf-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5038293/apelacao-em-mandado-de-seguranca-ams-38878-df-20033400038878-6/inteiro-teor-101792159?ref=juris-tabs >. Acesso em: 06 maio 2017.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal – Quarta Região. Apelação em Reexame Necessário n.º 14183 SC 2008.72.00.014183-0. Relator: Desembargador Federal Celso Kipper. Pesquisa de Jurisprudência, acórdãos, 16 dez 2009. Disponível em: <https://trf-4.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6939432/apelacao-reexame-necessario-apelreex-14183-sc-20087200014183-0/inteiro-teor-12745727?ref=juris-tabs >. Acesso em: 06 maio 2017.