6. EXECUÇÃO HÍBRIDA
A difusão dos meios executórios ao longo do Código de Processo Civil, não se limitou a reconsiderar a dimensão na qual se inseria o Processo de Conhecimento, o que por si só já seria bastante significativo, mas a ensejar, na mesma medida, uma uniformização dos meios executórios. Se estes não mais se limitavam ao Processo de Execução, também as modalidades de execução em sentido lato não poderiam se comprazer com as fronteiras dos quinhentos e sessenta e cinco artigos do Processo de Conhecimento ou com as hipóteses previstas no Livro IV que, em mais de uma oportunidade, serviram-lles de modelo.
A nova dinâmica processual calhou ao aplicador do direito, ao operacionalizar a execução em sentido estrito, utilizar-se dos meios executórios da execução em sentido lato para otimizar o Processo de Execução.
Surge, por conseguinte, especialmente em relação à execução das obrigações de fazer e de não fazer previstas no Capítulo III do Título II do Livro II, uma forma peculiar de execução. O artigo 644 permite invocar as disposições da execução em sentido lato para aplicá-las ao Processo de Execução fundado num título judicial ou extrajudicial.
Em termos mais singelos, o dispositivo permite a utilização dos meios executórios da execução sem título como ferramenta para a realização da execução fundada em título. Admite, portanto, uma espécie de hibridismo entre a execução em sentido lato e a execução em sentido estrito. Aquela complementa os meios executórios desta visando à realização plena o direito material expresso no título.
O Livro I, outrora entendido como instrumento de declaração de direitos, agora é colocado como mecanismo de satisfação de direitos que, na hipótese da execução de título executivo extrajudicial, sequer se prestou a apreciar.
A técnica inserida pela Lei 10.444, responsável pela redação atual do caput do artigo 644, ratifica uma visão descompartimentada do Código de Processo, diante da qual os meios executórios não mais se restringem ao Processo de Execução.
A idéia de tipicidade dos meios executórios cedeu lugar à de prevalência das funções típicas de cada um dos quatro primeiros livros do Código.
Os livros I, II e III cuidam, preponderantemente e na ordem apresentada, das funções de declarar, satisfazer e assegurar o direito deduzido em juízo. Os procedimentos especiais, tipos anômalos desde a edição do Código de Processo Civil em 1.973, permitem ao magistrado conhecer e satisfazer o direito num único processo, desde que nas hipóteses estritas elencadas pelo legislador. Como exemplo destes últimos, afigure-se nas ações possessórias.
Todavia, apesar da difusão dos meios executórios, em nenhum dos três livros citados, as medidas de satisfação dos direitos têm fundamento em um prévio título executivo, não se confundindo, por esse motivo, com a execução híbrida. Esta, apesar de poder se utilizar dos meios executórios previstos no Livro I do Código de Processo, artigo 461, sempre será embasada por um título executivo.
Isto posto, que se defina a execução híbrida como a execução considerada em seu sentido estrito que, para a realização do direito material contido no título que lhe serve de embasamento, utiliza-se, primeiramente, dos meios executórios em sentido amplo contidos no artigo 461 do Código de Processo Civil para, só depois, permitir a invocação do procedimento de execução das obrigações de fazer e de não fazer contidos no Livro II, Título II, Capítulo III, do mesmo Estatuto.
7. CONSEQÜÊNCIAS DA EXECUÇÃO HÍBRIDA
A primeira conseqüência da noção de execução híbrida, e talvez a primordial para o seu entendimento, é a fragilidade da adoção do critério da existência ou não de um prévio título executivo para se classificar os meios executórios em seu sentido estrito ou amplo, respectivamente.
A hibridação permite que se aplique os meios executórios da execução em sentido amplo às execuções fundadas num título executivo quando a obrigação a ser executada corresponder a uma conduta de fazer ou de não fazer do executado. É o que prevê o artigo 644 do Código de Processo Civil.
O dispositivo, nesse primeiro momento, infere duas conclusões de grande relevância na ordem prática: o preceito legal impõe precedência dos meios executórios da execução em sentido amplo em relação à stricto sensu; ademais, quando da primeira etapa, execução fundada no Livro I, não há falar-se ordem de preferência ou obrigatória antecipação da coerção em relação à sub-rogação e vice-versa.
Em outros termos: o artigo 644 impõe a infungibilidade entre os meios executórios arrolados no Livro I e no II para a execução das obrigações de fazer e de não fazer, devendo as formas do artigo 461 preceder as dos artigos 632 e seguintes. No entanto, quando da aplicação do artigo 461 a regra é a fungibilidade entre os meios de coerção ou de sub-rogação.
O direito material encartado no título, nesse diapasão, somente servirá de critério determinante dos meios executórios quando se fizer necessário optar pelas formas do Livro I ou pelas dos artigos 632 e seguintes. Todavia, o direito material não assumirá tal relevância quando o meio processual para a sua satisfação for o relativo à execução em sentido amplo.
É evidente que esse critério, no cotidiano do Poder Judiciário, acaba perdendo o caráter quase absoluto que lhe dá o plano teórico.
Evidentemente, a relação de direito substancial influirá no convencimento do julgador para a adoção da coerção ou da sub-rogação, ambas amparadas pelo artigo 461, para a satisfação do direito subjetivo apresentado em juízo. Afinal, como prevê o artigo 620, a execução deverá se processar pelo modo menos gravoso para o executado.
A segunda conseqüência, decorrente da primeira, mas não de menor importância, coloca-se num plano empírico.
A fungibilidade entre os meios executórios em sentido lato permite ao juiz optar, indiscriminadamente, pela coerção ou sub-rogação como vias de efetivação de um mesmo objetivo. Dessa forma, se verificar, de imediato, a ineficácia da execução indireta, incidente sobre a vontade do obrigado, poderá valer-se das medidas de apoio contidas na parte final do parágrafo 5º do artigo 461. Nada impede, saliente-se uma vez mais, que o julgador opte, logo no início, pelos meios sub-rogatórios: busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividades nocivas, dentre outras tantas.
Possibilitando, nesse primeiro momento, a escolha da execução direta, aquela cujo procedimento independe da vontade do obrigado, pretendeu o legislador afastar o demandante do longevo e exaustivo procedimento previsto no artigo 634. Reservou-o às hipóteses em que todas alternativas contidas no artigo 461 mostrarem-se frustradas.
Ademais, e que o bom senso seja a orientação do intérprete, em raríssimas oportunidades o artigo 634 mostrará serventia diante da nova dinâmica adotada. A regra nele encartada limita-se a uma forma de execução direta mais burocratizada do que a contida no artigo 461. Se a deste se mostrou de difícil aplicação, quanto mais a do Livro II.
Por fim, consigne-se a impropriedade da regra contida no parágrafo único do artigo 645 diante da técnica adotada pelo caput do artigo precedente, 644. Se neste se admitiu a execução da obrigação de fazer e de não fazer nos moldes do artigo 461, não há razão para, no primeiro, limitar-se o valor da multa ao estipulado no título.
Se a hibridação impõe a uniformização dos ritos executórios não se justifica a restrição imposta ao Poder Judiciário de apenas poder reduzir o valor da multa prevista no título executivo extrajudicial. O parágrafo único do artigo antecedente, relativo aos títulos executivos judiciais, é incisivo em admitir a majoração do seu valor quando a coerção patrimonial se tornar insuficiente. Um direito não pode valer menos por não estar contido numa sentença.
Em síntese: a execução híbrida, decorrente da difusão dos meios executórios pelo Código de Processo Civil, implica, pela via reflexa, na uniformização dos instrumentos estatais de satisfação dos direitos. Sustentar o reverso seria sobrevalorizar os direitos contidos na sentença em detrimento daqueles oriundos das relações estabelecidas diretamente entre os particulares por intermédio dos instrumentos admitidos expressamente pelo legislador no artigo 585.
De pouco adiantaria facilitar o acesso à ordem jurídica justa por meio da aplicação integrada dos meios executórios previstos no Livro I para, em momento posterior, no Livro II, limitá-los sem qualquer argumento plausível.
8. CONCLUSÃO
Sem qualquer desejo de se esgotar um tema deveras complexo ou de se propor aos práticos uma técnica inovadora de viabilização dos direitos subjetivos, o presente trabalho limitou-se a uma análise perfunctória da atividade executiva do Estado no transcorrer da evolução do Direito Processual Civil.
Tomou-se como ponto de partida a segurança jurídica forjada na fase autonomista perante os direitos negativos para atingir, no momento subseqüente, a execução híbrida, já embalada pelos ideais de efetividade do processo da etapa instrumentalista.
Nessa linha, a execução híbrida não significa mais do que o aproveitamento dos recursos da execução sem título para dar maior efetividade à execução das obrigações de fazer e de não fazer manejadas por meio do Processo de Execução.
A justificativa jurídica para a aplicação da técnica exposta reside, justamente, na impossibilidade de se recorrer aos avanços acrescentados ao Processo de Conhecimento pela fase instrumentalista, quando já se é detentor de um título executivo.
A hibridação das formas executivas carreia para o Processo de Execução as vantagens inerentes aos meios executórios encartados no Livro I do Código.
Dessa forma, não tem respaldo no ordenamento qualquer técnica que se fundamente num formalismo processual injustificado para conferir proteção mais contundente para este ou aquele direito.
O processo, e essa é a conclusão a que se pretende chegar, através da execução híbrida, deve disponibilizar ao operador do direito todos os meios executórios possíveis para a realização do direito material deduzido em juízo.
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NOTAS
1 O tema foi aprofundado por Luiz Guilherme Marinoni em sua obra Tutela específica.
2 Araken de Assis, Manual do processo de execução, p. 65.
3 Ibidem, p. 107.
4 Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito administrativo, p. 26.
5"Laissez faire, laissez passer". Tradução livre do autor.
6 Luiz Alberto David Araújo; Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, p. 65.
7 Ibidem, p. 64-65.
8 Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, p. 230.
9 Evangelho de São João, capítulo 8, versículo 32.
10 Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas de direito processual civil, p. 179, v. 1.
11Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 148.
12 José Roberto dos Santos Bedaque, Direito e processo, p. 23.
13Direito e processo, p. 17.
14 Ibidem, p. 12.
15 Ibidem, p. 15.
16 Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 183.
17 José Roberto dos Santos Bedaque, op. cit., p. 101.
18 Ibidem, p. 83.
19 Ibidem, p. 10.
20 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 92.
21 Op. cit., p. 25.
22 P. 39.