A CRISE DO “HOMEM CORDIAL”: ARTS. 12 E 153 DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
RESUMO: Artigo que se propõe a analisar a atuação do “homem cordial”, alegoria representativa do brasileiro, perante o Poder Judiciário, seja como parte, seja como sujeito imparcial (magistrado ou serventuário). Demonstra as resistências à implantação de uma verdadeira imparcialidade e racionalidade nas relações e gestões públicas, aí incluído o processo judicial. Aborda o surgimento de novas normas, trazidas pelo Código de Processo Civil agora em vigor, que pretendem tornar objetivos certos procedimentos que antes se submetiam ao arbítrio do juiz ou do escrivão, como é o caso do tempo para proferir sentenças ou para cumprir pronunciamentos judiciais, o que, com a nova lei, passou a se submeter a uma ordem cronológica, conforme são os processos conclusos ao juiz ou recebidos pelo escrivão. Por fim, apresenta os instrumentos de que dispõem os jurisdicionados para reclamar sobre eventual preterição de seu processo, mostrando ainda de que maneiras o juiz ou escrivão pode ser responsabilizado por eventual irregularidade.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil. Sentença e acórdão. Ato judicial de escrivão. Ordem cronológica. Homem cordial.
SUMÁRIO: Introdução; 1. O “homem cordial” e sua presença no Judiciário; 2. A observância da ordem cronológica; 2.1. Da conclusão de processos ao juiz ou relator; 2.2. Do recebimento de processos em cartório ou secretaria; 3. A responsabilidade pela não observância da ordem cronológica; Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), como autor de um dos maiores clássicos de nossa literatura científica, Raízes do Brasil, tornou famosa uma expressão cunhada pelo escritor Ribeiro Couto (1898-1963) e mencionada por Alfonso Reyes (1889-1959) no seu jornal literário Monterrey: o “homem cordial”, que corresponde ao caráter do brasileiro médio no trato com as pessoas além do núcleo familiar – não há uma respeitosa polidez ou civilidade, mas uma emotiva generosidade e hospitalidade que, embora transpareçam virtude perante os estrangeiros, disfarçam a inaptidão do brasileiro de diferenciar as relações familiares e o espaço público das relações sociais.
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque desnuda o “homem cordial” ao ponto de apontá-lo, com razão, como responsável pela transformação das relações de Estado em campo para trocas de favores e uso da administração pública ou da justiça para benefício próprio – ainda que isso não seja exclusividade do Estado brasileiro, sem dúvida temos no nosso país a “cordialidade” como traço marcante das gestões de Estado. O fundamento desse problema está no fato de que no círculo familiar, intimista, não há espaço para a impessoalidade e racionalidade, de modo que essas, sendo regra nas relações públicas, acabam por ser contornadas pelo “homem cordial” mediante os mais diversos artifícios, seja com a colaboração ou mesmo complacência de servidores públicos, seja “abrandando” ou “relativizando” leis, muitas vezes, inclusive, com o aval dos tribunais, como será mencionado mais adiante.
No presente artigo, trataremos, em breves linhas, do modus operandi do “homem cordial” no Poder Judiciário, com o retrato de situações comumente observadas nos fóruns e tribunais, mas sem, aqui, fazer acentuadas imersões na casuística. É de se ressaltar que o “homem cordial” não é representado por um indivíduo ou uma classe de pessoas em específico, mas tão-somente sinaliza um traço característico do brasileiro. Por isso, as atitudes típicas do “homem cordial”, no que tange às ações e processos judiciais, tanto podem partir dos sujeitos parciais (partes e advogados) como dos imparciais (juízes e serventuários), já que essas atitudes se referem à personalidade e o caráter das pessoas, não à função que ocupam dentro das relações públicas de poder.
Logo após, traremos ao debate as normas dos arts. 12 e 153 do novo Código de Processo Civil (nCPC – Lei 13.105/2015), imprevistas no codex anterior, e que trazem (ou traziam) regras objetivas para a movimentação de processos nos órgãos judiciários, desestabilizando a estrutura tradicional de atuação do “homem cordial”, como já dito alhures, avesso às normas generalistas e impessoais.
Finalmente, analisaremos os instrumentos e garantias previstos em lei (em especial do próprio nCPC) para controle de eventuais abusos e distorções na aplicação das novas regras, seja por parte de magistrados, seja por serventuários da justiça, sempre lembrando que essas categorias, sendo sujeitos imparciais do processo, possuem um dever absoluto de agir conforme a lei, sem a distinção de pessoas que não sejam distinguidas antes pelo legislador e sem a prática de atos que sejam atentatórias à moralidade, publicidade e impessoalidade – os magistrados, mais do que isso, conforme o Código de Ética da Magistratura[1], devem se abster de condutas que tenham a aparência de ilegítimo, ainda que não o sejam de fato, isso para resguardar a própria dignidade do cargo que ocupa e o decoro no exercício das funções.
1. O “HOMEM CORDIAL” E SUA PRESENÇA NO JUDICIÁRIO
As relações entre a família e o Estado, como se sabe, nunca foram amistosas. O Estado surgiu em sobreposição à família e em oposição à barbárie pré-histórica que ameaçava ressurgir diante da crescente tensão na organização gentílica: a acumulação de riquezas e a escravidão faziam com que se desequilibrassem as relações entre os membros da tribo ou gens, de modo que o Estado, na visão de Engels, foi a instituição concebida pelos mais abastados para garantir seu poder e a divisão da sociedade em classes[2].
Ocorre que o Estado, após consolidado, não se limitou à ideia inicial, mas sim invadiu, progressivamente, centros de poderes tradicionais como a família e a religião, substituindo as leis particulares por uma outra, ampla, geral e irrestrita, o que costumeiramente provoca reações de forte oposição por parte daqueles que terão sua “ordem natural” afetada.
Sérgio Buarque de Holanda pontua bem as diferenças entre a família e o Estado. São suas as palavras a seguir:
“O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe entre o círculo familiar e o Estado uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. (...) Só pela transgressão de ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo (...). A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”.[3]
No entanto, como aponta o próprio Sérgio Buarque, vê-se que, no Brasil, a resistência ao racionalismo e à impessoalidade sempre foi contundente, por uma série de fatores elencada no já citado Raízes do Brasil. Daí ser, infelizmente, ainda bastante comum no âmbito do Judiciário ver-se procedimentos adotados e decisões tomadas conforme o gosto pessoal ou de acordo com o poder de influência das partes sobre os sujeitos imparciais do processo, leia-se, magistrados e serventuários.
Os famosos “embargos auriculares” são apenas uma faceta do problema. Nesse particular, a própria lei (art. 7º, VIII, da Lei 8.906/1994) garante ao advogado dirigir-se ao magistrado para com ele tratar diretamente de casos do seu interesse, embora a Lei Orgânica da Magistratura ressalte que tal atendimento restringir-se-ia às situações que reclamam solução urgente (art. 35, IV). Essas audiências, na prática, pouco tratam de situações particularmente urgentes, mesmo porque, diante do considerável volume de processos em trâmite e da lentidão para julgá-los, são raros os casos em que a razoável duração do processo não foi violada.
Ainda mais perversa e prejudicial à racionalidade que deve reger as relações de Estado é a crise de legitimidade observada nas decisões judiciais baseadas, ainda que não confessadamente, no “direito livre” ou numa interpretação flexível da lei. Basta por ora, dados os estreitos limites do presente trabalho, lembrar de decisões relativamente recentes em que Juizados Especiais Federais, relevando disposição expressa de lei, deram provimento a pedidos previdenciários em desfavor do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS)[4]. Se a Constituição e a lei não governarem sequer os juízes, como conceber um Estado que proporcione direitos e exija deveres iguais a todos? Não há dúvidas de que o direito positivo confere uma racionalidade ao sistema jurídico que não pode ser ignorada pelo Judiciário, tendo, inclusive, o nCPC trazido normas que reforçam a necessidade de uma fundamentação racional e sólida dos magistrados ao proferir suas decisões (vide arts. 489, § 1º, e 926, este último tratando da jurisprudência dos tribunais[5]).
Como se vê, o “homem cordial” tem força em diversas ações dentro do Judiciário, não só tratando os processos como algo particular, familiar, mas também relativizando normas cogentes ou até instituindo novos princípios para justificar determinadas decisões assumidas. Ao menos no que respeita às relações entre juízes e advogados, o Código de Ética da Magistratura (art. 9º) e também o nCPC veiculam normas que pretendem abolir as idiossincrasias processuais e fazer prevalecer a vontade geral sobre a lei particular, inclusive, no caso do nCPC, trazendo regras de impedimento inéditas (art. 144), de que é exemplo a vedação de atuação do juiz e demais sujeitos imparciais em processo patrocinado por escritório de advocacia onde parente seu atua, ainda que esse não tenha participado diretamente do processo (§ 3º). Dados os limites deste artigo, contudo, limitar-nos-emos a debater as normas do nCPC veiculadas em seus arts. 12 e 153, que constituem, de igual forma, uma tentativa de se superar a subjetividade na condução dos processos, conferindo a esse trâmite a impessoalidade e a racionalidade tão necessárias e tão refutadas pelo “homem cordial”.
2. A OBSERVÂNCIA DA ORDEM CRONOLÓGICA
2.1. DA CONCLUSÃO DE PROCESSOS AO JUIZ OU RELATOR
O art. 12 traduz um dos pontos mais polêmicos do nCPC. O seu caput, na redação original, dispunha que os juízes e tribunais “deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão” dos processos “para proferir sentença ou acórdão”, ressalvadas as exceções constantes do § 2º, que retratam as preferências legais, recursos de breve rito (embargos de declaração e agravo interno) e outros casos urgentes e especiais, a exemplo do julgamento das demandas e recursos repetitivos e as sentenças proferidas em audiência – essas últimas, em verdade, sequer são precedidas de conclusão.
A submissão a uma ordem cronológica era algo inédito na legislação processual brasileira (ressalvado, evidentemente, o regime dos precatórios), e a reação da magistratura nacional não tardou. Já em agosto de 2015 (cinco meses após a publicação do Código), a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) aprovou, por ocasião do Seminário “O Poder Judiciário e o novo Código de Processo Civil”, vários enunciados para orientação dos magistrados na aplicação do nCPC, dentre eles os de números 32 e 33[6], que desde ali flexibilizavam a norma cogente extraída do citado art. 12.
Fato é que a edição de enunciados pela Enfam não seria suficiente para aplacar o rigor da norma, já que não possuem eles qualquer caráter vinculante, nem mesmo para os juízes. Por isso, sobreveio a Lei 13.256/2016, a qual entrou em vigor juntamente ao nCPC e cuja edição foi patrocinada notadamente pelos membros do Judiciário, que temiam, além da responsabilidade pela infração à norma cogente, comprometimento à agilidade e eficiência nas decisões e na efetivação dos pronunciamentos judiciais. Assim é que a nova lei, tanto no art. 12 como também no art. 153 do nCPC, substituiu a expressão “deverá[ão] obedecer” por “atenderá[ão], preferencialmente”, o que, às claras, fez “enfraquecer a rigidez do comando original da regra”[7].
Embora o caput do artigo tenha sido modificado na forma acima descrita, deve-se entender que esse artigo criou para os juízes e tribunais um dever, que é o de obedecer à ordem cronológica de conclusão dos autos para proferir suas decisões definitivas (sentenças e acórdãos), instituindo, com efeito, um direito público subjetivo dos jurisdicionados ao julgamento conforme a ordem cronológica de conclusão – uma regra objetiva, consentânea com o caráter público do processo e da jurisdição, sem prejuízo das exceções legais.
O controle dessa ordem cronológica é regulado pelos §§ 1º e 4º a 6º do art. 12, pelos quais se determina a disponibilização, em cartório e na internet, de lista de processos aptos a julgamento (§ 1º), além de se prever o procedimento a ser observado para elaboração, atualização, retirada e reinclusão de processos na lista. Além dessa lista geral, há uma outra prevista no § 3º do art. 12, a qual se dirige exclusivamente aos processos que retratam preferências legais, entre os quais também deverá ser respeitada a ordem cronológica – é o caso, por exemplo, dos processos que têm como parte pessoa maior de sessenta anos, conforme previsão do art. 71 da Lei 10.741/2003.
A mudança efetuada no caput do art. 12 (assim como no do art. 153) não pode significar o simples retorno ao regime anterior, em que as prioridades de tramitação eram definidas conforme o entendimento de cada juízo, sem qualquer homogeneidade, racionalidade, sequer transparência. Não há dúvidas que os citados artigos buscam concretizar o princípio da igualdade em seu sentido amplo (isonomia), isto é, entre todos os jurisdicionados, consoante o art. 5º, caput, da Constituição Federal (igualdade perante a lei)[8], dando ensejo, por conseguinte, ao efetivo acesso à justiça e à duração razoável do processo, sem descurar da impessoalidade na prestação jurisdicional, elemento que, para o “homem cordial”, seria de implementação dispensável em nosso sistema.
Entendemos, nessa esteira, que eventuais resistências dos magistrados em aplicar a nova norma devem ser suplantadas por um novo entendimento acerca do próprio papel do juiz no sistema judicial, não deixando que amizades ou mesmo razões ou critérios pessoais influenciem no trabalho de distribuir justiça entre os jurisdicionados, em tempo razoavelmente adequado e indistintamente, salvo quando a própria lei fizer distinção.
2.2. DO RECEBIMENTO DE PROCESSOS EM CARTÓRIO OU SECRETARIA
A exemplo do art. 12, o caput do art. 153 do nCPC também foi modificado por obra da Lei 13.256/2016, publicado esse antes mesmo da entrada em vigor do codex. Com a adoção do termo “preferencialmente”, fixa-se como regra o atendimento à ordem cronológica com, porém, um rigor amainado, abrindo-se espaço para excepcionar casos em que a obediência estrita à ordem de recebimento mostrar-se-ia um desserviço à eficiência da justiça. No que diz respeito aos escrivães e chefes (diretores) de secretaria, essa mudança na lei representou não simplesmente o clamor de uma classe, mas uma verdadeira necessidade de ordem prática.
É que, além das situações excepcionais – os atos urgentes e as preferências legais, já ressalvados no § 2º do dispositivo em comento – poderá haver casos de processos que devam, por questão de pertinência temática ou simplesmente para racionalização de procedimento, ser movimentados conjuntamente, ainda que um ou outro feito esteja separado dos demais na ordem de recebimento. Não seria mesmo hipótese de ato urgente reconhecido pelo juiz, previsto no inciso I do § 2º, mas sim de uma rotina que, em razão da obediência estrita à ordem de recebimento, seria quebrada, causando retardo no cumprimento dos atos ou até mesmo um trabalho desnecessário em duplicidade.
Tome-se como exemplo a expedição de editais de citação, eventualmente determinados pelo magistrado. Sendo um trabalho que, geralmente, exige o envio de informações a um órgão de imprensa ou empresa jornalística e é realizado em dias esparsos da semana ou do mês, poder-se-ia reputar maléfico, em nome da observância da ordem cronológica, deixar de lado a expedição do edital em determinado processo retardatário pelo simples fato de existirem outros atos, de natureza diversa, com precedência na lista pública. Dessa feita, por força da norma que exige a observância da ordem cronológica, a serventia poderia ser obrigada a encaminhar à publicação, em dia diverso, um edital que poderia ser reunido a outros, antes preparados, porque aquele último se encontrava separado dos primeiros por processos outros recebidos em data mais antiga.
Essa observação, restrita aos atos de serventia, tem sua lógica. Diferentemente do proferir sentença ou acórdão, que são, sobretudo, produções de natureza intelectual, o cumprimento de pronunciamento judicial consubstancia, no mais das vezes, uma atividade mecânica, que é bem melhor executada se inserida em rotinas ou num sistema de divisão de tarefas, conforme o volume de processos e a dimensão (de estrutura e de pessoal) do ofício judicial.
Assim, conclui-se que a mudança implementada pela Lei 13.256/2016, ao menos quanto ao art. 153 do nCPC, foi absolutamente necessária, isso para evitar que a observância estrita à ordem cronológica representasse mais um motivo para retardo na prestação jurisdicional. De todo modo, não se pode dizer que não houve um avanço com a novel legislação, isso para se distanciar do absoluto descontrole de ordem e prazos na efetivação dos pronunciamentos judiciais. É que a “agilização” de qualquer processo fora das preferências legais ou urgências reconhecidas pelo juiz violará a regra do caput, a não ser que essa quebra da ordem cronológica tenha por justificativa a observância da rotina de procedimentos fixada pelo ofício judicial, daí o sentido de o escrivão ou chefe de secretaria atender, não obrigatoriamente, mas “preferencialmente” a ordem cronológica.