Capa da publicação O caso Maria da Penha no direito internacional: quando a pressão externa é ferramenta de mudanças
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O caso Maria da Penha no Direito Internacional.

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14/03/2018 às 14:10
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As pressões internacionais foram decisivas para que o caso Maria da Penha provocasse uma reforma na legislação penal e processual penal brasileira.

INTRODUÇÃO

Em maio de 1983, Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica cearense, dormia em sua casa quando fora atingida por um tiro nas costas. O disparo a deixou paraplégica. O seu algoz, Marco Antonio Herredia Viveros, colombiano naturalizado brasileiro, economista e professor universitário[1], era ainda seu marido e pai de suas três filhas. Esta foi a primeira tentativa de homicídio que Maria da Penha sofrera em meio a mais de vinte anos de violência doméstica que lhe foi impingida pelo seu então esposo. Este, para justificar o ocorrido, alegou que ladrões invadiram a residência do casal e atiraram contra sua mulher.

Depois de cerca de quatro meses internada, Maria da Penha retornou ao seu lar e fora submetida a mais abusos. Viveros a manteve em regime de isolamento completo e, em pouco tempo, atentou novamente contra a vida de sua companheira. Desta vez, tentou eletrocutá-la durante o banho.

Esse poderia ser apenas mais um caso de violência doméstica e familiar do Brasil. Uma Maria, dentre tantas outras, que sofre abusos recidivos dentro de seu próprio lar. Acontece que Maria da Penha fez de sua história de sofrimento uma luta e o seu grito por justiça acabou por dar voz a todas as mulheres brasileiras.

Ela ingressou na Justiça e saiu de casa com suas filhas. No mais, denunciou seu marido pelos abusos que sofrera.

Herredia foi a júri duas vezes: a primeira, em 1991, quando os advogados do réu anularam o julgamento. Já na segunda, em 1996, o réu foi condenado a dez anos e seis meses, mas recorreu e acabou passando apenas cerca de dois anos preso.[2]

Em face da aludida decisão da justiça do Brasil, em 1998, foi protocolada denúncia conjunta pelo CEJIL (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional), pelo CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) e pela vítima Maria da Penha à CIDH/OEA (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos). Tal feito se consagrou como um marco, sendo a primeira vez em que a OEA acolhia uma denúncia de violência doméstica.

Em 2001, a CIDH responsabilizou o Estado brasileiro por omissão, negligência e tolerância[3]. Considerou que neste caso se davam as condições de violência doméstica e de tolerância pelo Estado definidas na Convenção de Belém do Pará[4]. A punição fora aplicada, dentre outras, como a necessidade de criação de uma lei adequada a este tipo de violência contra a mulher.

Iniciou-se, paralelamente, um longo processo de discussão do tema de violência doméstica contra a mulher através de proposta elaborada por um Consórcio de ONGs[5]. Assim, a repercussão do caso foi elevada a nível internacional. Após reformulação efetuada por meio de um grupo de trabalho interministerial, coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres[6], do Governo Federal, a proposta foi encaminhada para o Congresso Nacional.

Transformada a proposta em Projeto de Lei, realizaram-se, durante o ano de 2005, inúmeras audiências públicas em Assembleias Legislativas das cinco Regiões do País, contando com a intensa participação de entidades da sociedade civil[7].

O resultado foi a confecção de um substitutivo acordado entre a relatoria do projeto, o Consórcio das ONGs e o Executivo Federal, que resultou na sua aprovação no Congresso Nacional, por unanimidade.

Assim, a Lei nº 11.340[8] foi sancionada pelo então Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de 2006.

O caso Maria da Penha demonstra como a pressão externa pode transformar a atuação, inclusive legislativa, de um país. Foi o constrangimento sofrido em âmbito internacional, assim como as punições que o País sofrera em decorrência de infringir convenções previamente firmadas, que fizeram o Brasil editar a aludida lei e, desde então, progredir no combate à violência contra a mulher. Resta, assim, patente a importância da análise da influência dos tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos no direito interno brasileiro.

O presente trabalho compõe-se, além desta introdução, de outros dois capítulos. O primeiro aborda a denúncia do caso Maria da Penha frente às organizações internacionais e a consequente edição da lei que leva o nome da aludida cearense. O segundo é dedicado a uma análise da interação do direito internacional com o direito interno do Brasil, podendo aquele acarretar necessárias mudanças neste. Derradeiramente, são apresentadas as considerações finais.


1 BREVE HISTÓRICO DA EDIÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA

Em vigor desde 22 de setembro de 2006, a Lei Maria da Penha dá cumprimento, finalmente, as disposições contidas no §8º, do artigo 226, da Constituição Federal de 1988[9], que impunha a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

A edição da referida lei adveio da denúncia do caso específico de Maria da Penha, o qual evidenciou um padrão sistemático de omissão e negligência do Brasil em relação à violência doméstica e intrafamiliar contra muitas das mulheres brasileiras.

Pela situação enfrentada pela farmacêutica cearense e pela inefetividade jurisdicional frente ao caso, o País fora denunciado por violações à Convenção Americana de Direitos Humanos[10]; à Declaração Americana dos Direitos e Deveres dos Homens[11], bem como à Convenção Interamericana para Prevenir, Prevenir e Erradicar a Violência Contra a Mulher[12], também conhecida como Convenção de Belém do Pará.

De acordo com as próprias instruções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[13] e no art. 44 da Convenção Americana[14], o Pacto de San José da Costa Rica[15], qualquer pessoa, grupo de pessoas ou organizações não-governamentais podem apresentar uma petição à Comissão, alegando violações de direitos protegidos na Convenção Americana e / ou da Declaração Americana.

 E, com relação ao Estado, assegura o art. 28 da mesma Convenção que, “quando se tratar de uma República Federativa (Brasil), o governo responde na esfera internacional pelos seus próprios atos e pelos atos praticados por agentes das entidades que compõem a federação.”

A petição pode ser apresentada em qualquer dos quatro idiomas oficiais da OEA e poderão ser apresentados em nome da pessoa ou arquivamento da petição em nome de uma terceira pessoa.

A Comissão só pode tratar casos individuais em que é alegado que um dos Estados membros da OEA é responsável pela violação dos direitos humanos em questão. A Comissão aplica a Convenção de casos processo instaurado contra os Estados que são partes no referido instrumento. Para os Estados que não são partes, a Comissão aplica a Declaração Americana[16].

No ano de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu Informe n.º 54 de 2001[17], responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres.

Com efeito, o caso Maria da Penha foi o primeiro de aplicação da Convenção de Belém do Pará. A utilização desse instrumento internacional de grande relevância para a proteção e promoção dos direitos humanos das mulheres e o seguimento das peticionárias perante a CIDH sobre o cumprimento da decisão pelo Estado brasileiro, foram decisivas para que o processo fosse concluído em âmbito nacional[18].


2 DIREITO INTERNACIONAL SUPRINDO AS OMISSÕES DO DIREITO INTERNO

A Segunda Guerra Mundial e todos os horrores nela praticados atestaram o fracasso da humanidade (especialmente das nações ditas poderosas) em promover e proteger os direitos humanos, mas, igualmente, fez surgir, embora dolorosamente, as bases desse novo Direito, fundadas, principalmente e essencialmente, nas urgentes e necessárias promoção e proteção da dignidade da pessoa humana em âmbito universal.

O surgimento do movimento internacional dos Direitos Humanos e sua posterior materialização jurídica com a Declaração Universal de 1948[19] e os vários tratados e instrumentos protetores posteriormente implementados tem sua origem histórica na repugnância às ações da Alemanha nazista e a consequente conscientização mundial da necessidade de um sistema de tutela aos direitos fundamentais do homem em nível global.

Para Flávia Piovesan[20]:

“A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteção dos direitos humanos.”

A fase de implementação definitiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), inicia-se a partir da harmonização entre as jurisdições interna e internacional no sentido de conferir à temática de Direitos Humanos o caráter de regime internacional, seja por normas reconhecidamente verificáveis, seja pela conscientização da inerência desse rol de direitos pela comunidade internacional. Insta salientar que as normas de Direitos Humanos gozam de aplicabilidade imediata/direta, não necessitando, portanto, de atos legislativos ou medidas administrativas para pronta aplicação, seja qual for a jurisdição adotada.

Isto significa dizer que a proteção aos direitos humanos inova no sentido de que relativiza o sentido de soberania absoluta do Estado, já que este pode ser monitorado e responsabilizado internacionalmente, por violação de direitos humanos e, legitima o indivíduo como sujeito de direitos, que deve ter os seus direitos protegidos internacionalmente.

Os tratados de direitos humanos, entretanto, impõem deveres aos Estados que a eles aderem. De notória importância é o dever que os Estados pactuantes têm de compatibilizar os comandos do produto normativo convencional com suas normas de direito interno. Daí a improcedência do argumento de que a Constituição Federal estaria subpondo-se a si mesma, ao permitir que o produto normativo dos compromissos exteriores do Estado ingressassem em nosso ordenamento jurídico, em detrimento da soberania do país[21].

Pactuando-se com normas que objetivam garantir um dos princípios fundamentais do homem, qual seja, a liberdade, inaceitável se apresenta a sua inobservância face à violação de um compromisso assumido, por nós, e em prol de nós mesmos. Não se quer dizer com tal assertiva, que os preceitos normativos oriundos do direito das gentes sempre venham a suplantar, de maneira irrestrita, o nosso ordenamento interno em detrimento da Constituição da República. Com exceção dos tratados de direitos humanos, como foi visto, nenhum outro tem o condão de se sobrepor aos mandamentos constitucionais. O que se pretende é dar luz a tais direitos para que eles[22].

Inserido num contexto de interesse global, através da ratificação dos tratados voltados à proteção dos direitos humanos, o Brasil deve buscar alcançar sua identidade jurídica quanto à aplicabilidade daqueles tratados nas situações concretas regidas pelo ordenamento interno.

Quando, em seu art. 4.º, II, a Constituição proclama que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, e em seu art. 1.º, III, que o Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito, tendo como fundamento, a dignidade da pessoa humana, está, ela própria, a autorizar a incorporação do produto normativo convencional mais benéfico, pela válvula de entrada do seu art. 5.º, § 2º[23].

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Portanto, há uma convivência dinâmica entre o direito internacional e o direito interno, no tocante à proteção dos direitos humanos com primazia da norma mais favorável, que melhor proteja, erga omnes, o ser humano.

Em tempo, a Constituição de 1988, conhecida informalmente por “Constituição Cidadã”, recebeu profunda inspiração da Declaração Universal de 1948. O diploma brasileiro assegura o mais amplo e detalhado elenco de direitos e liberdades individuais, coletivos e sociais, notadamente no artigo 5º e seus 78 incisos, os quais cobrem abrangente gama dos chamados direitos e garantias fundamentais.

Ocorre que o Brasil não tem se utilizado de todos os meios disponíveis ao seu alcance para efetivar a observância dos direitos humanos, consagrados nos tratados internacionais por ele ratificados. Dentre as inúmeras violações de Direitos Humanos que se perpetuam em solo nacional, o caso de Maria da Penha saltou aos olhos no que tange à violência contra mulher, principalmente no âmbito doméstico familiar.

Anote-se, ainda, que a Conferência Mundial de Direitos Humanos[24], realizada na cidade de Viena, reconheceu a violência de gênero como violação dos direitos humanos[25], e a consequente responsabilidade do Estado de garantir a segurança pública, tendo também o dever de garantir a igualdade e a segurança das pessoas, independentemente da cor, do sexo, do gênero, do credo e da nacionalidade[26]. 

Percebe-se que, no caso Maria da Penha, foi apenas a pressão da sociedade internacional, combinada à mobilização interna, que fez o País sair da inércia e por em práticas medidas de proteção à mulher. O Estado, por si só, mesmo ostentando uma das mais democráticas Constituições existentes, e mesmo tendo ratificado Convenções e Tratados que versam sobre a matéria de jus cogens, não implementou medidas para, de fato, defender os direitos fundamentais que, em tese, ele afirma proteger.

Vale reiterar que este caso demonstra uma das situações mais conhecidas e, a primeira do gênero, na qual o sistema internacional demonstra-se eficaz na denominada omissão estatal e do ordenamento interno.

Em suma, citando Flavia Piovesan e Silvia Pimentel[27]:

A Lei Maria da Penha é uma conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres. Destacam-se sete inovações extraordinárias introduzidas pela Lei "Maria da Penha": mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher; incorporação da perspectiva de gênero para tratar da desigualdade e da violência contra a mulher; incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar; fortalecimento da ótica repressiva; harmonização com a Convenção CEDAW/ONU e com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito à livre orientação sexual; e, ainda, estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas.

Por fim, sabe-se que não é via Lei Maria da Penha que a violência gênero e a opressão sobre as mulheres, sendo estas violações aos direitos humanos, serão efetivamente derrotadas. Ainda é preciso mais enfrentamento na tomada de decisões e formulações de políticas públicas, capazes de apresentar saídas para tais problemas que, longe de contingenciais ou conjunturais, são de ordem estrutural e sistêmica. A própria criação da lei, contudo, trouxe mais visibilidade a questão, o que já representa um avanço, ainda que embrionário e o Direito Internacional foi essencial neste quesito.

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Sobre a autora
Camila Machado Lima

Advogada na área de Direito Público. Pós-Graduanda em Direito Administrativo pela PUC Minas. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016). Membro da Comissão de Estudos Constitucionais OAB-CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Camila Machado. O caso Maria da Penha no Direito Internacional.: A pressão externa fomentando mudanças em uma nação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5369, 14 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58908. Acesso em: 29 mar. 2024.

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