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A função social da preservação da empresa: utopia nas recuperações judiciais?

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19/07/2017 às 13:15
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Medita-se sobre a finalidade das recuperações judiciais, buscando aprofundar-se no sentido do art. 47 da Lei nº 11.101/2005. A recuperação judicial é mais do que preservar a empresa.

Sumário: 1. A recuperação judicial e o artigo 47 da Lei nº 11.101/05 2. Interesses a serem preservados na recuperação judicial: a utopia da igualdade e do balizamento 2.1 A função social da empresa no contexto da recuperação judicial 2.2 Instabilidade das relações jurídicas e preservação da empresa 3. Considerações finais 4. Referências bibliográficas.


1. A recuperação judicial e o artigo 47 da Lei nº 11.101/05

A recuperação judicial[1], procedimento em voga na conjuntura de crise econômico-financeira nacional[2], caracteriza-se por certo rol de fundamentos normativos, ora observados, ora não, por vezes com maior ou menor vigor, nas decisões judiciais.

Chamar-se-á aqui atenção para três pressupostos da recuperação judicial cuja exegese tem suscitado preocupação.

A primeira regra para a qual se chama a atenção é o princípio da preservação da empresa, capitulado no art. 47 da Lei Federal nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2.005[3], Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LREF). Muito embora constante do direito positivo como um objetivo do processo de recuperação judicial, evidentemente não implica e nem pode implicar a “manutenção da atividade a qualquer custo[4]”.

Assim, desde já se assente a premissa de que o apego em demasia a esse postulado pode “desencadear a situação de moral hazard, ou seja, o risco de o devedor deixar de empreender esforços para saldar sua dívida (...), prejudicando o mercado de crédito[5]”.

O segundo pressuposto a se observar diz respeito ao papel do juiz na recuperação judicial. Com efeito, o art. 58, caput, da LREF[6] atribui ao magistrado a incumbência de fiscalizar se os envolvidos no procedimento concursal observaram as regras capituladas na inteireza do citado diploma. Referida norma, ao assim dispor, confere competência à Assembleia Geral para deliberar sobre o Plano de Recuperação Judicial da forma que melhor se amoldar aos interesses dos credores e da empresa em crise.

O terceiro pressuposto para o qual se convida à reflexão, que deve caminhar paralelamente àquele do art. 58 da LREF, supracitado, encontra-se sedimentado no art. 35 da LREF[7], onde são previstas as competências da Assembleia-Geral de Credores.

Os três pressupostos supracitados devem caminhar juntos, num sistema de freios e contrapesos.

Contudo, não é isso que tem sido observado na totalidade das recuperações judiciais (inclusive em andamento) no País, razão pela qual a presente reflexão se mostra atual e necessária.


2. Interesses a serem preservados na recuperação judicial: a utopia da igualdade e do balizamento

A recuperação judicial visa (como deveria ser cediço – e a jurisprudência, por vezes, parece rumar na contramão) mais que o soerguimento da empresa em crise: objetiva, por expressa disposição legal (art. 47 da LREF) a manutenção “do emprego dos trabalhadores e do interesse dos credores”, promovendo não só a preservação da empresa, mas também o estímulo à atividade econômica.

Por interesse dos credores deve se entender não só o desejo de ver concretizado seu pagamento, mas também o “prosseguimento das suas relações econômicas com a empresa” e, para tanto, [n]a manutenção da própria empresa[8]”. Obviamente, a manutenção da empresa deve ser visada se viável e sem violar direitos dos demais stakeholders[9].

A insistência argumentativa de que deve – a todo tempo – ser balizada a viabilidade de manutenção da empresa em crise e que os interesses dos trabalhadores e dos credores são tão importantes quanto a preservação da empresa advém do fato de que a lei deve ter inteligência prestável, de modo que, sem tal ponderação, os demais interesses protegidos pela LREF se afigurariam meramente retóricos, e seria dispensável o trabalho do legislador[10]. Esse seria o cenário ideal, em tese, a ser perseguido por todos os partícipes do procedimento de recuperação judicial.

Outro grande problema, nesse exercício de balizamento, advém da observação, pura e simples, de que recuperação judicial se faz com novas concessões (lato sensu) de crédito. De um lado, a empresa em crise precisa de capital (novo ou por retenção temporária, fenômeno associado ao alongamento dos prazos de pagamento originalmente contratados) para se soerguer; de outro, os credores querem que seu pagamento seja feito do modo menos decotado possível. Isto é, quanto menor o haircut, maior a chance dos credores aprovarem o plano. Daí a nomenclatura de “utopia da igualdade e do balizamento”.

Não pode(ria) o magistrado ter uma visão romântica da recuperação judicial, acreditando que haverá absoluto espírito cooperativo. Recuperação judicial é procedimento – com maior ou menor grau – litigioso, não beneficência.

Nessa perspectiva, duas advertências devem ser feitas. A primeira diz respeito ao cuidado que se deve ter ao se tomar uma deliberação de cram down, hipótese na qual o magistrado, na faculdade que lhe confere o §1º do art. 58 da LREF[11], supera o veto de uma das classes de credores ao Plano de Recuperação Judicial e, se, em seu juízo, o Plano atender aos objetivos (cumulativos e não alternativos) fixados no art. 47 da LREF, pode[12] conceder a recuperação judicial.

A segunda diz respeito ao fato de como efetivamente ocorrem as negociações na recuperação judicial. Ora, basta, ao menos em tese, que sejam cumpridos formalmente os quóruns dos arts. 41 e 45, §1º da LREF que o Plano de Recuperação Judicial estará aprovado. Tal circunstância, por si só, sujeita a votação a deturpações quanto ao seu caráter democrático. Como assevera VERÇOSA[13]: “a pureza da recuperação judicial não resiste à análise de deturpações realizadas entre o devedor e uma parte dos credores (por fora) até o momento em que eles chegam (dentro do plano oficial) a uma porcentagem de adesões suficientes para chegar à metade mais um dos votos daqueles em pelo menos duas classes e 1/3 na terceira classe. Com os demais não se faz acordo, o que os leva a terem e suportar o falso plano que foi aprovado[14]”.

Isso significa dizer que, na prática (plano que mais deveria interessar ao jurista), existem dois cram down na LREF: aquele derivado da imposição judicial obedecidas determinadas condições, e aquele derivado da negociação do devedor com um certo rol de credores até atingir o quantum formalmente[15] exigido pela LREF.

Nenhuma das duas hipóteses significa, necessariamente, que a empresa em crise é viável e que merece o beneplácito da concessão da recuperação judicial. Deve, em qualquer hipótese, haver por parte do magistrado o balizamento de todos os interesses capitulados no art. 47, sob pena de se permanecer um cenário de utopia e imprestabilidade legal.

Tanto o legislador se preocupou com os interesses dos credores que, em seus arts. 47 e ss., colocou-os em situação de igualdade e disciplinou o modo de proceder quanto ao feixe de direitos e obrigações que os envolvem no âmbito da recuperação judicial[16].

Ressalve-se, contudo, sem qualquer puerilidade, que não é preciso grande esforço para imaginar que, em assembleia geral, cada credor vota conforme seus próprios interesses, o que, anote-se, não ofende, ao menos per se, a Lei nº 11.101/2005[17]. Advogar tese diferente implicaria defender que essa ou aquela parte está obrigada, sob o utópico pressuposto da plena harmonia, a votar contra seus próprios interesses, a fim de que todos se deem por satisfeitos. Não é essa a proposta. O que se chama a atenção aqui é, sim, para o fato de que todas as decisões proferidas no âmbito da recuperação judicial, mormente aquelas que analisam a sua concessão, devem apurar se não se está homologando documento contra legem. O balizamento é necessário, sem dúvida. Mas esperar que ele parta da relação entre recuperandas e seus credores e não de um terceiro desinteressado (como deveriam sê-lo os juízos a quem atribuídas as recuperações judiciais), parece-nos demasiado utópico.

Se o adimplemento de um crédito, como parte da doutrina tem defendido, não pode ser obstáculo ao soerguimento, também a necessidade de recuperação não pode servir de escusa para o inadimplemento contumaz[18].

A necessidade desse equilíbrio, aqui esposada, não deriva apenas da lei, mas da própria lógica intrínseca à formação das sociedades, que devem gozar de um ambiente jurídico adequado ao desenvolvimento da atividade produtiva e dentro de uma ordem racional de mercado, o que inclui dele se retirarem – voluntária ou compulsoriamente – as empresas inviáveis[19].

E isso porque a empresa não é senão um fenômeno econômico (em meio a outros tantos de uma ordem econômica) e como tal deve ser compreendida. Uma vez assim compreendida, as mesmas razões que justificam sua propulsão, também servem de pressupostos para inferir se sua permanência no mercado é ou não viável e desejável (o que pressupõe a análise dos efeitos da aprovação de dado plano de recuperação não só para a empresa, mas também para a ordem econômica que integra, aspecto a que se retornará adiante).

Tal acepção encontra amparo para além do art. 966 do Código Civil e das próprias considerações aqui já feitas quanto ao art. 47 da Lei nº 11.101/2005, confirmando-se tanto em países de Common Law como de Civil Law.

Nos Estados Unidos da América, a § 1129 (b) do Chapter 11 do Bankruptcy Code dispõe como requisitos para aprovação do plano de recuperação judicial via cram down se não houver injusta discriminação entre os credores e se, entre outros elementos: (i) especificar o tratamento, detalhadamente, a ser dado a cada classe, afetada ou não pelo plano (§1123 (2) e (3)); (ii) o plano for exeqüível[20] e forem oferecidos meios propícios ao pagamentos dos credores e ao soerguimento da empresa em crise (§1123 (5)); e, (iii) for previsto o mesmo tratamento para cada classe de credores, a menos que o titular de determinado crédito ou interesse concorde com um tratamento menos favorável (§ 1123, (4))[21]. Essa necessidade de equilíbrio e viabilidade conduz a afirmações como a de que uma petição de Chapter 11 é um convite à negociação (e não à fraude)[22].

Na Itália, por meio do Decreto-Lei nº 83/2012, inseriu-se o novo art. 186-bis no Regio Decreto nº 267/1942[23], introduzindo-se a disciplina do concordato con continuità aziendale, isto é, a situação na qual o plano prevê, entre outras hipóteses, a continuidade do funcionamento da empresa em crise, quer pelo próprio empresário, quer por terceiro. Para que isso seja possível, o plano deve prever, obrigatoriamente: (i) uma indicação analítica dos custos e das receitas necessárias ao prosseguimento da atividade da empresa, os recursos financeiros necessários (art. 186-bis, 2, a); e (ii) o laudo de um profissional especializado (figura semelhante ao nosso administrador judicial) atestando que o prosseguimento da atividade de empresa prevista no plano é apta à melhor satisfação dos credores (art. 186-bis, 2, b)[24]. E, por fim, o art. 186-bis, 7, dispõe que, se iniciado o procedimento de concordato con continuità aziendale, verifica-se que o exercício da atividade da empresa se mostra manifestamente danoso para os credores, poderá, inclusive, haver revogação judicial (art. 173) da concessão concordatária.

Na Alemanha, a §1 do InsolvenzOrdnung (InsO) é clara ao estabelecer que: “os procedimentos de insolvência devem servir ao propósito de satisfação coletiva dos credores do devedor mediante a liquidação dos ativos deste e pela distribuição de seu produto, ou por meio da celebração de um acordo de insolvência [equivalente ao que denominamos de plano de recuperação judicial], notadamente visando a manutenção da empresa. Os devedores honestos devem ter a oportunidade de obter quitação de dívidas residuais”[25].

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O dispositivo não poderia ser mais claro: para o InsO, o processo de soerguimento é um caminho que tem como denominadores a satisfação dos credores e a preservação da empresa[26], hipótese essa que deve ocorrer se – e somente se – a empresa for viável.

Referida viabilidade, no que concerne ao direito brasileiro, deve decorrer da verificação da possibilidade de atendimento de todos os elementos constantes do art. 47 da Lei nº 11.101/05, sob pena de se considerar sua redação meramente retórica e se relegar tudo à discricionariedade judicial.

O Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.302.735-SP, foi expresso ao aduzir que o art. 47 da Lei nº 11.101/05 contempla três postulados que são essenciais na solução de contendas: “a relevância dos interesses dos credores; a par conditio creditorum; e a preservação da empresa[27]”.

Prossegue então o voto do Min. Luís Felipe Salomão: “depreende-se desse dispositivo legal que “a adesão dos credores às medidas preventivas de recuperação da empresa é de salutar importância, passando estes a ter papel de destaque, relevante no procedimento da recuperação de empresas, na medida em que darão assentimento expresso em assembleia de credores, sobre as condições propostas no plano de pagamento apresentado pelo devedor. O credor passa da condição passiva que lhe era imposta na Lei anterior, a ter voz ativa, participando do processo, concordando ou desaprovando as condições entabuladas no plano de recuperação apresentado pelo devedor. (...) A Lei confere, ainda relevância à função social da empresa e às circunstâncias de produção de trabalho e, por fim, apresenta grande preocupação com o crédito, que é pilastra da economia hodierna” (MACHADO, Rubens Approbato (coord.) Comentários à nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 80-81). A propósito dos dois primeiros princípios – relevância dos interesses dos credores e par conditio creditorum –,  observa-se que a legislação recuperacional procurou sobrelevar por meio deles, como dito acima, a função social da empresa, encartada, sobretudo, na Constituição Federal de 1988. Este princípio fundamental, segundo Marlon Tomazette  “servirá de base para a tomada de decisões e para a interpretação da vontade dos credores e do devedor. Em outras palavras, ao se trabalhar em uma recuperação judicial deve-se sempre ter em mente a função social. Se a empresa puder exercer muito bem sua função social, há uma justificativa para mais esforços no sentido da sua recuperação” (in Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas.  Vol. III. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 52-53). Diante desse macrossistema principiológico, o devedor, ao se enquadrar no benefício da recuperação judicial, deve ter em mente, como um ciciar constante e imperativo da legislação, a prevalência do interesse de seus credores, visando mais à coletividade do que à singularidade de cada detentor de crédito. Além disso, deve também o devedor se atentar ao fato de que, independentemente das condições e das peculiaridades de cada crédito,  seus credores devem ser tratados de forma equitativa, sem que se busque a celeridade das deduções antes das considerações do mérito de cada pretensão[28]”.

O voto deixa claro o ponto de equilíbrio que, em seu entender, deve ser adotado para se verificar a viabilidade ou não de uma empresa e, portanto, verificar-se se ela é ou não merecedora dos esforços envidados no curso de uma recuperação judicial: o atendimento de sua função social, tendo em vista a coletividade de créditos, pilastra da economia hodierna. Assim, deve-se responder: (i) em que consiste a função social da empresa? (ii) é possível uma definição única? (iii) como se apurar se uma empresa em crise ainda cumpre sua função social?

2.1 A função social da empresa no contexto da recuperação judicial

Não é nenhuma inovação  dizer que a empresa deve cumprir sua função social. Mas esse postulado, que, por vezes, é tratado com tanta simplicidade, possui notória importância.

A função social é o elemento justificativo da empresa, previsto nos arts. 5º, XXIII, e 170, III, da Constituição Federal de 1988, sob o caractere da propriedade (perfil patrimonial[29]), bem como do art. 421 do Código Civil e do art. 116, parágrafo único, da Lei nº 6.404/76. Pontes de Miranda fora preciso ao dizer que o termo propriedade, previsto também no texto constitucional de 1967, aplica-se a “qualquer direito patrimonial[30]”, abrangendo, portanto, também a empresa.

Uma definição única parece-nos que seria pretensão demasiadamente engessada, inclusive considerando-se que a teoria de Asquini contempla quatro perfis de empresa e que a dinâmica do mercado sempre exige novos olhares, conferindo à empresa um caráter poliédrico.

Principiemos, então, o estudo da função social no caso das empresas em crise, debruçando-nos a respeito do entendimento Superior Tribunal e Justiça. No Recurso Especial nº 1.399.853-SC, no voto da Ministra Maria Isabel Galotti, lê-se que “a Nova Lei de Falências visa a alcançar equilíbrio entre os objetivos dos empresários ou da sociedade empresarial e de seus credores, buscando preservar a função social da empresa. Entre os mecanismos por ela utilizados para alcançar tal fim, a recuperação judicial é primordial para salvaguardar a empresa passível de recuperação, com o saneamento da crise que a envolve, permitindo o prosseguimento da atividade empresarial, com a manutenção do emprego dos trabalhadores, satisfação dos credores, atendendo aos anseios da sociedade de um modo geral. (...) O sistema legal visa a ensejar a recuperação de empresas viáveis em benefício de toda a cadeia produtiva: a empresa devedora, seus trabalhadores e credores, com proveito para a economia nacional [31]”.

Parece claro, portanto, que a posição do STJ sobre o tema pode ser sintetizada da seguinte forma: o cumprimento de todos os objetivos fixados no art. 47 da Lei nº 11.101/05 está ligado ao atendimento da função da social da empresa. Tal síntese é absolutamente compatível com a asserção feita pelo Ministro Luís Felipe Salomão, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.359.311-SP: “se é verdade que a intervenção judicial no quadrante mercadológico de uma empresa em crise visa tutelar interesses públicos relacionados à sua função social e à manutenção da fonte produtiva e dos postos de trabalho, não é menos certo que a recuperação judicial, com a aprovação do plano, desenvolve-se essencialmente por uma nova relação negocial estabelecida entre o devedor e os credores reunidos em assembleia[32]”.

Note-se que o acórdão é claro ao afirmar que a condução judicial da empresa em crise visa garantir os interesses concernentes à sua função social, inclusive, se o caso, pelo viés negativo, a convolação em falência (arts. 53, 61, §1º e 73 da Lei nº 11.101/05).

Ora, se a empresa transcende a pessoa do empresário, nada mais justo que, uma vez que ela se encontre em crise, sujeite-se a um escrutínio de todos os interesses que a circundam. Nesse sentido, destaca-se a clareza do entendimento proferido por ocasião do julgamento do Agravo regimental no Conflito de Competência nº 110.250-DF, no qual a Ministra Nancy Andrighi assentou que: “[a] função social da empresa exige sua preservação, mas não a todo custo. A sociedade empresária deve demonstrar ter meios de cumprir eficazmente tal função, gerando empregos, honrando seus compromissos e colaborando com o desenvolvimento da economia, tudo nos termos do art. 47 da Lei nº 11.101/05[33]”.

É verdade que em seu voto, a relatora impugnava a não perpetuidade do stay period. Contudo, ao contrário do que se poderia pensar, isso não significa a inaplicabilidade da asserção para o debate da função social. Ao contrário, a conclusão se reafirma, eis que o raciocínio acordado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça consiste em dizer que as benesses permitidas em razão da situação de crise empresarial devem ser balizadas e atender à função social da empresa e, não menos importante, servir de estímulo à atividade econômica (parte final do art. 47).

Frise-se: não é de interesse de nenhum dos credores – imagina-se – que um devedor venha a falir, eis que isso muito provavelmente o conduziria a uma situação de insolvabilidade e dificultaria a recuperação do crédito. De igual modo, não atende à premissa de estímulo à atividade econômica a adoção de plano que, na prática, significa a desconsideração das premissas jurídico-econômicas em que se assenta o sistema de crédito da ordem econômica.

Uma vez que a premissa colocada para que uma empresa tenha sua recuperação judicial viável foi que esta cumpra sua função social, há de se avançar um pouco mais no que se compreende por função social da empresa.

A primeira diferenciação que deve ser feita é que preservação da empresa não significa preservação da pessoa jurídica. Preservar a empresa significa preservar, no todo ou em parte, o negócio. Isto é, o exame de se uma empresa é ou não passível de preservação, e que se liga visceralmente à função social da empresa, decorre de sua viabilidade atendendo a todos os caracteres do art. 47 e 53, II e III, da Lei nº 11.101/05.

E, para que se possa atender a todos esses caracteres a premissa que deve ser obedecida é que a empresa em crise possua patrimônio líquido positivo: só assim ela interessa aos seus acionistas ou a possíveis compradores.

2.2 Instabilidade das relações jurídicas e preservação da empresa

Não é nenhuma inovação dizer que a estabilidade das relações jurídicas, entre elas a de crédito, é de interesse nuclear da atividade empresarial.

Fixada essa premissa, parece razoável dizer que qualquer instabilidade não decorrente das regras que as partes tomaram entre si ao ajustar suas relações creditícias (o que inclui a possibilidade de sua alteração nos estritos limites da Lei nº 11.101/05, modifica não só a relação jurídica em espécie, como também a própria atividade da parte concedente de recursos, impactando, evidentemente, aquele que os toma.

Nesse sentido, Marcos Cavalcante de OLIVEIRA[34] explica: “a insegurança jurídica quanto ao adimplemento das obrigações [inclusive as obrigações decorrentes da aplicação da lei] também afeta o mercado de crédito por uma retração na oferta. (...) [Os fornecedores de crédito] se tornam mais seletiv[os] na concessão de novos créditos. (...). O risco de inadimplemento no mercado fica tão elevado que não há preço que o remunere. Nessas situações, o mercado se equilibra não pelo preço, mas pelo racionamento de quantidade. Em outras palavras, não adianta elevar o preço, a solução que protege adequadamente [os fornecedores de crédito] (...) é simplesmente não emprestar. Tal como quase todas as externalidades negativas, não se trata de uma ação mal-intencionada ou ilegal de quem quer que seja. A rigor, na maioria das vezes, nem mesmo há consciência dos efeitos externos que aquela decisão está produzindo. Entretanto, sempre que uma decisão judicial é tomada de forma que uma ou mais partes envolvidas terão suas ações futuras afetadas perante terceiros, o efeito da externalidade ocorreu”.

Ora, é natural que, em cenário de instabilidade, a parte acabe alterando o custo da operação, normalmente, elevando-o (mesmo que isso não vá, per se, resolver a externalidade negativa criada por uma decisão judicial que não tenha, porventura, observado o rigor do art. 47 da Lei nº 11.101/05, em toda sua extensão).

E o faz pelos mais variados meios, exemplificativamente: subordina a contratação à possibilidade de exercício de uma taxa de juros maior, exige um maior número de garantias, reestrutura a cadeia operacional envolvida, entre outros.

Assim, existem razões não só jurídicas, mas de cunho pragmático, para que se defenda que a preservação da empresa deve ser aplicada nos limites em que desenhada pelo legislador. Isso porque, caso assim não seja, a consequência para os credores de uma empresa em crise é a assunção forçada de um risco com o qual não se contava.

A todo risco corresponde um custo. Na ânsia de atender à preservação da empresa como máxima, o Judiciário, ao prestigiar o objetivo da preservação da empresa a qualquer custo, muitas vezes acaba por atingir – direta ou indiretamente, mas de modo negativo – todo o mercado. A manutenção de uma empresa não viável sob essa ótica de proteção acaba por encarecer os custos do sistema de crédito não apenas para o empresário envolvido no caso concreto, mas sobretudo para os que perante ele se mantêm adimplentes.

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Sobre o autor
Bruno Marques Bensal

Doutorando e Mestre (2016) em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP), na qual também se graduou (2012).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMA, Bruno Marques Bensal. A função social da preservação da empresa: utopia nas recuperações judiciais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5131, 19 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58914. Acesso em: 26 abr. 2024.

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