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A teoria da separação de poderes na concepção kelseniana

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"Se é sempre outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... deixa-os tombar..."

(Florbela Espanca, RUINAS)
 


 

INTRODUÇÃO

O tema da separação de poderes foi objeto de considerações dos maiores vultos do pensamento na história. Já em Platão tem-se uma primeira alusão à divisão de funções na sua Pólis perfeita, quando menciona os afazeres dos que devem proteger a cidade, dos que devem governá-la e daqueles que devem produzir e comerciar os bens. (1) Em Aristóteles, vê-se mais nitidamente uma concepção da tripartição das funções, que são, segundo ele, as três partes constitutivas do "Estado", designadas pelo nome de "dos corpos deliberativos", "dos magistrados" e "dos juízes". (2) Contudo, o grande sistematizador da teoria da separação de poderes foi Montesquieu, que, em célebre obra, no capítulo dedicado a análise da Constituição inglesa, desenvolve a doutrina de que quando numa só pessoa, ou num mesmo corpo, reúnem-se mais de um dos três poderes (funções) do Estado, a liberdade estaria ameaçada, em face da concentração de poder. (3) A história é a mais fiel testemunha da repercussão da sobredita doutrina, que granjeou foros de princípio insofismável do constitucionalismo ocidental, merecendo a detida atenção de todos que militam no campo da teoria do Estado. (4)

Ao falar-se em gênios do pensamento humano, a figura de Hans Kelsen não poderia ficar de fora dessa categoria. Ele que, indisputavelmente, é o maior jurista, na restritíssima acepção da palavra, deste século; verdadeiro "divisor de águas" no estudo do Direito. Kelsen enfrentou o tema da separação de poderes com a acuidade do rigoroso cientista, dando-lhe uma luz própria, que só iluminados como ele poderiam fazer.

A produção jurídica de Kelsen é para muitos um claustro. Tratam-no como se fosse um sábio hermético, de quem se fala bastante, no entanto poucos lêem-no. O mergulho na profunda e ao mesmo tempo transparente obra kelseniana requer, além de disposição e fôlego, bastante humildade, posto que para entendê-la, e, se for o caso, combatê-la, deve-se aceitar as premissas iniciais do seu pensamento, que é exaustivamente lógico. (5)

Neste trabalho, dividiu-se em duas partes (O Estado e A Separação de Poderes) a descrição das idéias kelsenianas em torno do tema supracitado, sendo que na primeira - o Estado - optou-se por crítica alguma, posto que era o assentamento das premissas de seu pensamento sobre o Estado e seus órgãos, indispensável para a compreensão de suas idéias sobre o tema sob exame. Já na segunda parte - a Separação de Poderes - fez-se, arriscadamente, algumas críticas à doutrina kelseniana. Diz-se arriscadamente, porque é bastante perigoso atacar o rigoroso e científico pensamento de Kelsen, pois se até mesmo no sol tem manchas, então no gênio brilhante de Kelsen elas poderiam surgir também.

Espera-se, com esta breve e despretensiosa análise, contribuir para uma melhor compreensão do magnífico pensamento kelseniano, demonstrando seu posicionamento frente a um dos mais palpitantes temas da teoria do Estado, que até hoje desafia a argúcia dos cientistas sociais.


I. O ESTADO

1. ENTIDADE JURÍDICA

Logo no início de sua abordagem, Kelsen chama a atenção para a dificuldade em definir o "Estado", sobretudo em face do caráter polissêmico da palavra, usada em vários sentidos (ora para designar a "sociedade", num sentido amplo, ora para designar um órgão particular da sociedade: o governo, os sujeitos do governo, uma "nação", ou o território habitado, num sentido mais restrito), seja por diversos autores ou muitas vezes pelo mesmo autor, de modo inconsciente. Criando uma situação insatisfatória na teoria política, que é essencialmente uma teoria do Estado. (6)

Contudo, para Kelsen, a situação se torna mais simples quando a discussão é a partir de um ponto de vista puramente (grifo nosso) jurídico. Ou seja, no momento em que o Estado é tomado em consideração apenas como um fenômeno jurídico, como uma pessoa jurídica, uma corporação. (7) A corporação, para ele, é a representação típica de pessoa jurídica (num sentido técnico, mais restrito), cuja definição usual é a de um grupo de indivíduos tratados pelo Direito como uma unidade, ou seja, como uma pessoa que tem direitos e deveres distintos dos indivíduos que a compõem. (8)

Uma corporação, continua o autor, é considerada uma pessoa porque nela a ordem jurídica estipula certos direitos e deveres jurídicos que dizem respeito aos interesses dos membros da corporação, mas que não parecem ser direitos e deveres dos membros e são, portanto, interpretados como direitos e deveres da própria corporação. Tais direitos e deveres são, em particular, criados por atos dos órgãos da corporação. (9)

A diferença entre o Estado e as demais corporações reside na ordem normativa que constitui a corporação do Estado. O Estado é a comunidade criada por uma ordem jurídica nacional (distinguindo-se da internacional). O Estado como pessoa jurídica é uma personificação dessa comunidade ou a ordem jurídica nacional que constitui essa comunidade. Daí porque, o problema do Estado, na idiossincrasia jurídica kelseniana, surge como um problema da ordem jurídica nacional. (10)

O significado da expressão ordem normativa, para o autor, requer o conhecimento do que seja a "norma" e o que é a "ordem". O termo norma, para Kelsen, designa um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Contudo, mandamento não é a única função de uma norma, eis que conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas. (11) Quanto à "ordem", para ele, é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é, para o autor, uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. (12)

A norma fundamental, cujo significado gerou e ainda gera algumas polêmicas, é definida de um modo diferente por Kelsen em sua obra póstuma(13).

Para Kelsen, a norma fundamental de uma ordem jurídica não é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, não no sentido de um real ato de vontade, mas sim de um ato meramente pensado. Como tal, ela é uma pura ou "verdadeira" ficção no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se, que é caracterizada pelo fato de que ela não somente contradiz a realidade, como também é contraditória em sim mesma. Por conseguinte, continua o autor, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se não é hipótese - como eu mesmo, acidentalmente a qualifiquei -, diz ele, e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou então, deve ser acompanhada, porque ela não corresponde a realidade. (14)

O autor explica o significado das expressões tomadas de empréstimo de Hans Vaihinger, quando diz que, segundo este, uma ficção é um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente. Ademais, expõe-se outra passagem da filosofia do autor supracitado, quando diz que "como funções verdadeiras, no mais rigoroso sentido da palavra, obtêm-se tais formas de representação, que apenas não contradizem a realidade, como também são contraditórias em si mesma. Delas devem-se diferenciar tais formas de representação que só contradizem em si mesma... Podem-se indicar as últimas como pseudo-ficções, semificções". (15)

Feitas essas digressões explicativas, retornemos ao objeto sob exame, qual seja, o Estado como ordem e como comunidade constituída pela ordem. (16)

Diz o autor que, segundo a teoria tradicional, não é possível compreender a essência de uma ordem jurídica nacional, o seu principium individuationis, a menos que o Estado seja pressuposto como uma realidade social subjacente. Só há o que se falar em sistema de normas, unitário e indivisível, denominado de ordem jurídica nacional, porque está relacionado a um Estado como fato social concreto, por ser criado por um Estado ou válido para um Estado. Por conseguinte, considera-se que, v. g., o Direito francês se baseia na existência de um Estado francês como uma entidade social, não-jurídica. Utiliza-se a relação entre o Direito e o Estado como análoga à existente entre o Direito e o indivíduo. Ou seja, que o Direito, não obstante criado pelo Estado, regula a conduta deste, concebido como um tipo de homem ou supra-homem, assim como o Direito regula a conduta do homem. E, assim como existe o conceito jurídico de pessoa e o biofisiológico de homem, acredita-se que existe um conceito sociológico de Estado ao lado de seu conceito jurídico, enfatizando-se que aquele seja lógica e historicamente anterior a este. (17)

Segundo essa concepção, diz Kelsen, o Estado como realidade social está incluído na categoria de sociedade; ele é uma comunidade. O Direito está incluído na categoria de normas; ele é um sistema de normas, uma ordem normativa. Assim posto, Estado e Direito são dois objetos diferentes. (18)

Esse dualismo, para Kelsen, é teoricamente indefensável. Uma vez que o Estado como comunidade jurídica não é algo separado de sua ordem jurídica, não mais do que a corporação é distinta de sua ordem constitutiva. O termo comunidade designa o fato de que a conduta recíproca de certos indivíduos é regulamentada por uma ordem normativa. Assim sendo, não há motivos para supor que existam duas ordens normativas, a ordem do Estado e a sua ordem jurídica, deve-se admitir que a comunidade chamada de "Estado" é a sua "ordem jurídica". (19)

Desse modo, ao se distinguir determinado Direito positivo, v. g., o Direito francês de outro Direito positivo, v. g., o Direito suíço, não é necessário recorrer à hipótese de que um Estado francês ou suíço existam como realidades sociais independentes. (20)

O Estado, segundo este autor, como comunidade em sua relação com o Direito não é uma realidade natural, ou uma realidade social análoga a uma natural, tal como o homem é em relação ao Direito. Se existe uma realidade social relacionada ao fenômeno que chamamos de "Estado" e, portanto, um conceito sociológico distinto do conceito jurídico, então a prioridade pertence a este. O conceito sociológico pressupõe o conceito jurídico. (21)

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A idéia de Estado como unidade sociológica, distinta e independente de sua ordem jurídica, impõe uma busca de razões fundamentadoras para tal asserção, passível de comprovação se se demonstrar que os indivíduos que pertencem ao mesmo Estado forma uma unidade e que essa unidade não é forjada pela ordem jurídica, mas por um elemento estranho ao Direito. Contudo, para Kelsen, tal elemento que constitui o "uno entre os muitos" não pode ser encontrado. (22)

As teorias ensejadoras de uma unidade sociológica que foram analisadas por Kelsen, não são suficientes para cumprir com os seus desideratos. Ele expôs quatro fundamentos. O primeiro é o da unidade (corpo) social constituída por interação. De acordo com essa idéia, a interação que, presume-se, tem lugar entre indivíduos pertencentes ao mesmo Estado foi declarada como sendo tal elemento sociológico, independente do Direito, que constitui a unidade dos indivíduos pertencentes a um mesmo Estado e que, portanto, constitui o Estado como uma realidade social. (23)

Assim, um número de pessoas forma uma unidade real quando um influencia o outro e é, por sua, vez por ele influenciado. Kelsen aponta para a obviedade desta concepção, uma vez que todos os seres humanos e todos e quaisquer fenômenos interagem de tal modo. Sendo de natureza psicológica, a interação não se restringe a pessoas que vivem juntas no mesmo espaço. Tal concepção é destruída em face da realidade mundial, sobretudo devido ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Não há como se demonstrar que indivíduos ou grupos que mesmo separados por fronteiras jurídicas não se interagem muito mais do que com os que estão no mesmo espaço. Dizer que a interação entre os que estão dentro do mesmo Estado é superior aos que não estão, é uma ficção política, segundo Kelsen. (24)

A segunda abordagem é da unidade (corpo) social constituída por vontade ou interesse comum. Fala-se, segundo Kelsen, num "sentimento coletivo", numa "alma coletiva", numa "consciência coletiva". Estes termos, segundo o autor, podem significar, apenas, que vários indivíduos querem, sentem ou pensam de uma certa maneira e estão unidos por sua consciência desse querer, sentir e pensar comuns. Dessorte que, uma unidade real existe, então, apenas entre os que efetivamente têm um estado mental idêntico e apenas nos momentos em que essa identificação de fato prevalece. Outrossim, com arrimo nesta concepção, diz-se que o Estado é ou tem um vontade coletiva, acima e além das vontades de seus sujeitos, (25) o que para Kelsen é uma visão fictícia, sendo válida apenas no sentido figurado de robustecer a força normativa da ordem jurídica sobre os indivíduos. (26)

Assim, segundo Kelsen, declarar a vontade do Estado como uma realidade psicológica ou sociológica é hipostatizar uma abstração em força real, atribuindo caráter substancial ou pessoal a uma relação normativa entre indivíduos, típico do pensamento primitivo, bastante comum no pensamento político. (27)

O fundo eminentemente ideológico desta concepção é claramente percebido, posto que o Estado é constituído de uma população dividida em vários grupos de interesses mais ou menos opostos entre si. Portanto, afirma Kelsen, a ideologia de um interesse coletivo de Estado é usada para ocultar esse inevitável conflito de interesses. Mesmo que a ordem jurídica fosse realmente a expressão dos interesses comuns de todos, em completa harmonia com os desejos de todos os indivíduos sujeitos à ordem, então essa ordem poderia contar com a obediência voluntária de todos os seus sujeitos, dispensando a coercibilidade, sendo completamente "justa", não precisaria nem mesmo ter o caráter de Direito, assinala Kelsen. (28)

A terceira das concepções em torno do problema suscitado, é aquela segundo a qual o Estado é um organismo natural. Com essa teoria, a sociologia do Estado torna-se uma biologia social. Conquanto pudesse ser rejeitada de imediato, por ser absurda, tem uma enorme importância política, segundo Kelsen. Para este, o objetivo real da teoria orgânica, desconhecido por muitos de seus expositores, não é explicar cientificamente o fenômeno do Estado, mas resguardar o valor do Estado como instituição, ou de algum Estado particular, confirmar a autoridade dos órgãos do Estado e aumentar a obediência dos cidadãos. (29)

Extraindo das lições de Otto Gierke, um dos eminentes expoentes dessa doutrina, Kelsen aponta a sua significação ética, quando se diz que o discernimento do caráter orgânico do Estado é a única fonte para a idéia de que a comunidade é algo valioso em si mesmo. E apenas do valor superior do todo em relação às suas partes é que se pode originar a obrigação do cidadão de viver e, se necessário, de morrer pelo todo. A obrigação moral e jurídica de um indivíduo, sob certas circunstâncias, de dar sua própria vida é indubitável. Mas, contrapõe Kelsen, no mesmo grau, não é, indubitavelmente, tarefa da ciência assegurar o cumprimento desta ou daquela obrigação - muito menos modelando uma teoria cuja única justificativa residiria no fato de que as pessoas cumprirão melhor seus deveres para com o Estado se forem induzidas a acreditar na teoria. (30)

A quarta concepção, que Kelsen diz ter sido a tentativa melhor sucedida, é que tem o Estado ou a interpretação da realidade social em termos de "dominação". Para essa teoria, o Estado é definido como um relacionamento em que alguns comandam e governam e outros obedecem e são governados. Essa teoria é forjada pelo fato de um indivíduo expressar sua vontade de que outro indivíduo se conduza de certo modo e essa expressão de sua vontade motivar o outro indivíduo a se conduzir do modo correspondente. Contudo, demonstra Kelsen, na vida social concreta, verifica-se uma infinidade de tais relações de motivação, inclusive no sentimento denominado de amor, já que mesmo nesse caso sempre há alguém que domina e outrem que é dominado. Tomando em consideração um governo tirânico, Kelsen demonstra que mesmo nesse Estado há vários "tiranos", que impõem sua vontade aos demais. No entanto, somente uma é essencial para a existência do Estado, qual seja a daquele que governa tiranicamente, a do tirano. Portanto, distingue-se os comandos do Estado daqueles que não o são através da ordem jurídica. Comandos "em nome do Estado", diz Kelsen, são aqueles emitidos em conformidade com uma ordem cuja validade o sociólogo deve pressupor quando distingue comandos que são atos do Estado e comandos que não têm esse caráter. (31)

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De mais a mais, leciona Kelsen, que a descrição sociológica do Estado como um fenômeno de dominação não é completa se for estabelecido apenas o fato de que homens forçam outros homens a certa conduta. Mesmo o sociólogo, segundo este autor, reconhece a diferença entre um Estado e uma quadrilha de ladrões. Portanto, a dominação que caracteriza o Estado tem a pretensão de ser legítima e deve ser efetivamente considerada como tal por governantes e governados. Considera-se a dominação legítima, de acordo com Kelsen, apenas se ocorrer em concordância com uma ordem jurídica cuja validade é pressuposta pelos indivíduos atuantes; e essa ordem é a ordem jurídica da comunidade cujo órgão é o "governante do Estado". (32)

Para dar o conceito jurídico do Estado, Kelsen faz concomitantemente uma análise da sociologia jurídica, tecendo considerações em torno das palavras de Max Weber. (33) Combatendo as idéias deste no concernente ao objeto da sociologia jurídica, que é o Estado sociológico, que tem na interpretação do "processo de conduta social efetiva", um complexo de ações orientadas a uma ordem normativa, a jurídica. O Estado, para Kelsen, é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta. Existe apenas, assevera Kelsen, um conceito jurídico de Estado: o Estado como ordem jurídica centralizada. (34) Kelsen não nega nem ignora os fatos que a terminologia pré-científica designa pela palavra "Estado". Tais fatos não são desnaturados caso se afirme que sua qualidade de "Estado" nada mais é que o resultado de uma interpretação. Esses fatos são ações de seres humanos, que são atos do Estado apenas na medida em que sejam interpretadas de acordo com uma ordem normativa cuja validade tem de ser pressuposta. (35)

A unidade entre Estado e ordem jurídica, que para Kelsen é óbvia, é reforçada mesmo por aqueles - os sociólogos - que caracterizam o Estado como uma "sociedade politicamente organizada". Organizada implica ordenada. O jaez político é a coercibilidade. Portanto, conclui Kelsen, o Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força. Tais caracteres também são comuns ao Direito, daí dizer-se que a ordem coercitiva que constitui o Estado é o Direito. (36)

2. OS ÓRGÃOS DO ESTADO

O Estado não é um corpo visível ou tangível. Inclusive os adeptos da teoria orgânica reconhecem que o Estado não é um objeto apreensível pelos sentidos, leciona Kelsen. Como então se manifesta na vida social esse ser invisível e intangível? Pergunta Kelsen, que responde dizendo que certas ações de seres humanos são consideradas como ações do Estado. De que modo então distingue-se ações humanas que são ações do Estado daquelas que não o são? Novamente interroga este autor. A solução, segundo o mesmo, é que o julgamento por meio do qual atribuímos uma ação humana ao Estado, com a pessoa invisível, significa uma imputação de uma ação humana ao Estado. O problema do Estado, continua o autor, é um problema de imputação. O Estado é, por assim dizer, um ponto comum no qual se projetam ações humanas, um ponto comum de imputação de diferentes ações humanas. Os indivíduos cujas ações são consideradas atos do Estado, cujas ações são imputadas ao Estado, são designados órgãos do Estado, finaliza o autor. (37)

A questão que conduz à essência do Estado, segundo Kelsen, é saber qual o critério dessa imputação. A imputação de uma ação humana ao Estado é possível apenas sob a condição de que essa ação seja determinada de um modo específico por uma ordem jurídica pressuposta. Assim, continua o autor, imputar uma ação humana ao Estado, como uma pessoa invisível, é relacionar uma ação humana como ação de um órgão do Estado à unidade da ordem que estipula essa ação. O Estado como pessoa nada mais é que a personificação dessa unidade. Isto posto, assinala Kelsen, um órgão do Estado eqüivale a um órgão do Direito. (38)

Por órgão do Estado, entende Kelsen, é qualquer um que cumpra uma função determinada pela ordem jurídica. Nessa linha, um órgão é um indivíduo que cumpre uma função específica, seja uma função criadora ou aplicadora do Direito, ocupando uma posição jurídica específica, que lhe dá o caráter de órgão, sendo em regra designado de "funcionário público". Entretanto, ressalta Kelsen, nem todo aquele que funciona como órgão do Estado ocupa a posição de funcionário público, no sentido estrito (o indivíduo que exerce uma função pública profissionalmente, recebendo inclusive numerário oriundo do Erário). Tome-se em consideração, v. g., o cidadão que vota para a eleição do parlamento, não obstante executar uma função pública de criação do órgão legislativo, ele não pode ser considerado como um órgão do Estado, no sentido restrito de funcionário público. (39)

Kelsen também aborda a questão da criação do órgão do Estado, uma vez que, o Estado atua apenas através de seus órgãos. Isto quer significar que a ordem jurídica pode ser criada e aplicada apenas por indivíduos designados pela própria ordem, não bastando que ela declare em linhas gerais quais são os indivíduos qualificados para executar essas funções. Requer-se que a ordem estabeleça um procedimento por meio do qual o indivíduo particular seja tornado um órgão. (40)

De acordo com Kelsen, um órgão pode ser "criado" por nomeação, eleição ou por sorte. Distingue-se a nomeação da eleição pelo caráter e posição jurídica do órgão criador. Um órgão é nomeado, segundo o autor, por um órgão individual superior. É eleito por um órgão colegiado, composto de indivíduos juridicamente subordinados ao órgão eleito. Diz-se que um órgão é superior a outro se for capaz de criar normas obrigando o segundo. A nomeação e a eleição, tal como descritas, são, para Kelsen, tipos ideais, entre os quais existem tipos mistos para os quais inexiste terminologia especial. (41)

Conforme a função seja executada por um ato de um único indivíduo ou pelos atos convergentes de vários indivíduos, os órgãos podem ser divididos, segundo Kelsen, em simples e compostos. Assim, o indivíduo cujo ato, em conjunto com os atos de outros indivíduos, constitui a função total é um órgão parcial. Daí que a função total é composta de funções parciais, que podem ser atuar de dois modos diferentes, tendo ou não o mesmo conteúdo. Vários são os exemplos dados por Kelsen, dentre eles tomemos a função legislativa de um parlamento composto de duas casas, na qual cada uma dessas casas exerce uma função de idêntico conteúdo ao da outra. Para demonstrar a função composta de atos de conteúdos diferentes, Kelsen utiliza o exemplo do processo legislativo em uma monarquia constitucional, cujos estágios típicos, segundo ele são (1) a moção inicial apresentada pelo governo ou pelos membros do parlamento; (2) duas decisões coincidentes das duas casas; (3) aprovação pelo monarca; (4) promulgação, o que significa que o chefe de Estado ou o governo determinam que a decisão do parlamento foi tomada de acordo com a constituição; e, finalmente, (5) publicação da decisão, tal como aprovada pelo monarca, do modo prescrito pela constituição. (42)

Adverte Kelsen, quando uma função é composta de vários atos parciais, torna-se necessário regular a fusão desses atos na sua resultante, daí falar-se em processo ou procedimento. Do acima exposto, extrai-se o caráter altamente relativo da distinção entre ato parcial e total, posto que, na lição de Kelsen, qualquer ato de qualquer órgão pode ser considerado como meramente parcial, já que é apenas em virtude de sua conexão sistemática com outros atos que ele contribui para com aquela função que, sozinha, merece o nome de função total, a saber: a função total do Estado como ordem jurídica. Desse modo, conclui Kelsen, percebemos que todos os órgãos são apenas partes de um único órgão que, nesse sentido, é um "organismo": o Estado. (43)

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A teoria da separação de poderes na concepção kelseniana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. -2138, 24 ago. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Monografia referente à conclusão da disciplina Filosofia do Direito II, ministrada pelo Profª. Drª. Elza Maria Miranda Afonso, no segundo semestre de 1996, nos cursos de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

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