RESUMO: Pretende o presente trabalho abordar, a partir da concepção do Novo Código Civil, os atos processuais praticados pelas partes, por seus procuradores, ou por todos aqueles que, direta ou indiretamente participam da relação jurídica processual, que se constituem como atos atentatórios à dignidade da Justiça. Para tanto, ter-se-á uma breve análise acerca da necessária credibilidade social do sistema de Justiça, seus órgãos e a manutenção do poder de coerção do Estado e, não menos importante, tecer-se-ão comentários aos dispositivos normativos presentes no novel diploma processual. As medidas à disposição do juiz para coibir e reprimir tais atos também serão apontadas, bem como as vias recursais que se mostrem cabíveis e a forma de execução das penalidades impostas.
II. INTRODUÇÃO
O processo judicial, segundo a doutrina instrumentalista, é um meio a serviço da paz social[1] (GRINOVER, 2009). Falar da instrumentalidade nesse sentido positivo, pois, é alertar para a necessária efetividade do processo, ou seja, para a necessidade de ter-se um sistema processual capaz de servir de eficiente caminho à "ordem jurídica justa".
Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade dos indivíduos que compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídico. A consciência dos escopos da jurisdição e, sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social, constitui um fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político.[2]
Dessa feita, o processo possui relevante papel de manutenção da ordem jurídica e social, constituindo-se como meio basilar na solução de controvérsias, reconhecendo-se a repercussão de seus resultados em esferas transponíveis à jurídica.
Todavia, não fora o Estado, por intermédio unicamente do processo, capaz de prover satisfatoriamente aos litigantes a dicção jurídica do acolhimento, ou não, da pretensão resistida pela parte contraposta. Questões como o a dificuldade em compor relações jurídicas processuais (admissão ao processo), o modo-de-ser do processo, a justiça e a efetividade das decisões, objeto de insatisfações e críticas da doutrina e da sociedade, exigem que o legislador, diante da progressiva queda de credibilidade acerca da tutela de direitos através do processo, dote o sistema jurídico-processual de instrumentos, capazes de inibir e sancionar aquele que, seja por ação ou omissão, crie embaraços para que o processo atinja o seu fim e que garantam a concretização da intentio legis.
Sabidamente, a relação jurídico-processual emerge como consequência de uma relação de direito material anteposta ao processo propriamente dito. Tais relações jurídicas podem ser de pronto identificadas, quando constituídas obedecendo ou observando mecanismos e requisitos presentes nas normas de direito material que as regulam, ou, na carência de tais elementos, de forma ulterior em sede de sentença judicial declaratória ou constitutiva, após da regular tramitação do feito.
III. BOA-FÉ COMO PRINCÍPIO PROCESSUAL
Na práxis processual, porém, quando aperfeiçoada a relação processual, a parte demandada, naturalmente, vale-se de todos os elementos jurídicos possíveis para a defesa de sua tese, com fins de convencer o juiz da improcedência da alegação contrária. Porém, por vezes, há a adoção de instrumentos nocivos à marcha natural do processo, valendo-se, não raramente, uma das partes - ou ambas - de mecanismos processuais sabidamente incabíveis e de cunho manifestamente protelatórios, com fins de postergar a decisão – que a depender do momento processual, e das provas colhidas durante o juízo de cognição, já se presume condenatória – ou almeja tornar o provimento jurisdicional inócuo - quando já superada a fase decisória e preclusa a recursal -, em sede de execução de sentença ou de procedimento executório.
Tais atos constituem uma afronta ao princípio da boa-fé processual (NCPC, art. 5º), carreando, direta ou indiretamente, danos de ordens variadas à parte (interesse individual) que teve flagelada sua esfera jurídica e à ordem jurídica (interesse social ou coletivo). O sobredito princípio estende-se, por expressa manifestação na redação legal, à todo “aquele que de qualquer forma participa do processo”, e estrutura-se no art. 77, elencando que:
“Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
I - expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II - não formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento;
III - não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito;
IV - cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;
V - declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional onde receberão intimações, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva;
VI - não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litígio.” (grifo nosso)
Decorre daí, da ruptura com o pacto benévolo entre os atores do processo, o ensejo e o interesse estatal e social na coibição de sua ofensa e na reparação de seu dano.
Ao magistrado, em especial, incumbe a árdua missão de “prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias” (NCPC, art. 139, III). Nota-se da redação do dispositivo, que ao magistrado é vedado manter-se inerte quando restar claro que qualquer das partes tomará caminho ou estratégia processual que enseje violação à dignidade da justiça. Esse dever-poder de prevenção e repressão, todavia, não pode ser utilizado para perseguições com qualquer das partes, sob pena de responder o juiz por perdas e danos quando, “no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude” (NCPC, art. 143, I), sem prejuízo das medidas administrativas corretivas e sancionatórias exercidas pelas corregedorias e pelo CNJ.
IV. OS ATOS QUE ATENTAM CONTRA A DIGNIDADE DA JUSTIÇA
Os atos praticados pelos sujeitos do processo que são incondizentes com a dignidade da justiça, encontram-se esparramados por todo o Código e pode ocorrer em qualquer momento do trâmite processual.
Inicialmente, constitui-se como ato nocivo à dignidade da justiça a inobservância em “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação”, bem como deverá, não só o autor da demanda como também o réu e seus procuradores, abster-se de “praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso” (art. 77, IV e VI). As transgressões ensejarão, pelo juiz da causa, aplicação “ao responsável, multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta”(art.77,§ 2º). Na iminência de descumprimento, ou modificação injusta ou desautorizada na situação de fato ou de direito que implique em prejuízo ao processo, tem por obrigação o magistrado de advertir às partes quanto a consequência que de ali possa emergir. Possui o magistrado, portanto, dever-poder de agir, promovendo ex offício os atos adequados para propulsionar o feito e sempre “velar pela duração razoável do processo” (art. 139, II).
Eventuais recusas infundadas e omissões serão passíveis de responsabilização cível (art. 143, II) e apuração funcional (art. 43 e 44 da LOMAN), assistindo legitimidade de representação, por qualquer das partes que se sintam prejudicadas, ao órgão competente, nos termos dos regimentos internos dos tribunais (art. 48, LOMAN) e das resoluções expedidas pelo CNJ.
O depositário, ou o administrador, “responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte, perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada, mas tem o direito a haver o que legitimamente despendeu no exercício do encargo” (art. 161, NCPC). Tal responsabilidade, no concernente ao artigo em questão, trata-se notoriamente aos danos materiais ou morais que estes derem causa à parte, devendo qualquer reparação restringir-se e satisfazer-se no âmbito da esfera patrimonial do administrador ou depositário, inadmitindo constrangimento em sua esfera de locomoção[3].
Relativo à subtração patrimonial, o depositário infiel “responde civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo de sua responsabilidade penal e da imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da justiça”[4].
O dever de boa-fé para com a solução do litígio também surte efeito na intransigência das partes em frustrar as tentativas de conciliação promovidas no curso processo. A ausência injustificada “do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado” (NCPC, art. 334,§ 8º). Isso demonstra o quão enraizado encontra-se a conciliação no espírito do novo Código. A sanção, sem correspondência no Código de 1973, visa dar status de compromisso à conciliação, mostrando-se esta como manifestação clara do princípio constitucional da fraternidade social (CF, art. 3º, I).
Promotores, Advogados públicos ou privados e membros da Defensoria Pública não estão à margem do dever de concurso para que o processo tenha resultado justo e em tempo hábil. Sempre identificada falta de natureza ética ou de dever funcional, deverá o juiz oficiar o respectivo órgão de classe ou corregedoria para adoção das medidas adequadas (NCPC, art. 77, § 6º). Resta claro que o objetivo da norma é vedar qualquer responsabilidade pessoal sobre os patronos das partes por atos praticados por seus clientes ou representados.
V. ATOS QUE ATENTAM À DIGNIDADE DA JUSTIÇA EM SEDE DE EXECUÇÃO
Ao juiz é permito advertir o réu, em qualquer momento do processo, que sua ação poderá constituir-se em ato atentatório à dignidade da justiça (NCPC, art. 772, II; CPC/73, art. 559, II). Entendemos, porém, que é lícito ao magistrado advertir não só o réu, como também ao autor, haja vista as hipóteses presentes no Código não serem numerus clausus, e desde que a conduta mostre-se severamente incompatível com o prestígio do órgão jurisdicional.
Em assim sendo, em sede de execução, seja de título executivo judicial ou de título executivo extrajudicial, diz o Códex que:
Art. 774. Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que:
I - frauda a execução;
II - se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos;
III - dificulta ou embaraça a realização da penhora;
IV - resiste injustificadamente às ordens judiciais;
V - intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus.
Praticando o executado qualquer das condutas previstas no sobredito artigo, “o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material” (NCPC, art. 774, par. único).
O processamento da cobrança de multas e/ou indenizações decorrentes de atos atentatórios à dignidade da justiça e litigância de má-fé, que compitam à parte – diga-se, far-se-á nos próprios autos do processo (NCPC, art. 777). Àqueles que devam ser revertidos em favor dos Estados ou da União deverão ser inscritos na dívida ativa do respectivo ente após o trânsito em julgado da decisão que a fixou. Sua execução reger-se-á pela legislação fiscal (Lei 6.830/80) e seus frutos impreterivelmente revertidos em favor dos fundos de modernização e reaparelhamento do judiciário estadual ou federal (NCPC, art. 77, § 3º).
VI. DA FRAUDE À EXECUÇÃO
Humberto Theodoro Jr.(2014, p.296) adverte, inicialmente, a não confusão entre fraude à execução e fraude contra credores. “Na primeira, são atingidos apenas interesses privados dos credores (CC, arts. 158 e 159). Na última, o ato do devedor executado viola a própria atividade jurisdicional do Estado”. Portanto, há evidente preocupação com o interesse público de que os meios de satisfação e reparação de direitos mantenham-se íntegros e dotados de eficiência.
A execução é o momento em que serão efetivamente promovidos os efeitos extrínsecos (sociais) do processo, tornando o direito “concreto e palpável”. Sua frustação dolosamente traz consequências práticas de inexistência de direito, e assim,
“a fraude à execução é disciplinada como matéria de direito material e processual, por isto, compreendida no seio do direito penal e direito civil. O ato atentatório à dignidade da justiça pela fraude à execução provoca prejuízo ao credor, é principalmente o Poder Jurisdicional que se vê impossibilitado de desenvolver sua atividade de obrigar a satisfação do credor. Considera-se fraude à execução a alienação ou oneração de bem quando sobre o mesmo pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver. Enfim, a fraude à execução depende de ação do devedor em alienar ou onerar determinado bem quando está pendente processo judicial.”[5]
Ou seja, a fraude à execução exige do devedor a intenção de frustrar pretensão tida por legítima do credor, dilapidando ou gravando seu patrimônio com fins de impedir a penhora dos bens em satisfação do débito.
Sendo assim, estará mitigada a disponibilidade do seu patrimônio pelo devedor, podendo dispor livremente daquilo que não atingir a segurança real tida pelo credor. Essa ação, que serve especificamente para os casos de fraude contra credores, comumente denominada ação pauliana, funda-se no duplo pressuposto do eventus damni e do consilium fraudis.
“É, porém, muito mais grave a fraude quando cometida no curso do processo de condenação ou de execução. Além de ser mais evidente o intuito de lesar o credor, em tal situação, a alienação dos bens do devedor vem constituir verdadeiro atentado contra o eficaz desenvolvimento da função jurisdicional já em curso, porque lhe subtrai o objeto sobre o qual a execução deverá recair”.[6]
A doutrina majoritária encontra consenso quanto à validade da alienação realizada, restringindo, porém, os efeitos quanto ao exequente. Não é necessário o ingresso de qualquer ação judicial por parte do credor, bastando uma mera petição no processo já pendente para que o juiz reconheça a fraude (ASSUMPÇÃO, 2015).
“Importante característica da fraude à execução é a dispensa de prova do elemento subjetivo do consilium fraudis, pouco importando se havia ciência ou não de que o ato levaria o devedor à insolvência. A intenção fraudulenta nesse caso é presumida, sendo irrelevante para os fins de configuração da fraude se o ato é real ou simulado, de boa ou má-fé. A prova do eventus damni, evidentemente, é indispensável.”[7](grifo nosso)
Todavia, entende o STJ que o terceiro que adquire o bem, de boa-fé, deve ser protegido, sendo reconhecida a eficácia do negócio, porém, cabendo a ele a prova de sua contratação de boa-fé com o executado.
VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Vol. II.47ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
LIVRAMENTO, Geraldo Aparecido do. Execução no Novo CPC: Cumprimento de sentença. 1ª Ed. Leme: JH Mizuno, 2016.
MEDINA, J. M. Garcia. NOVO CPC: QUADRO COMPARATIVO – CPC/2015 - CPC/1973, Porto Alegre, 2016.
Notas
[1] A pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por consequência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício).
A doutrina moderna aponta outros escopos do processo, a saber: a) educação para o exercício dos próprios direitos e respeito aos direitos alheios (escopo social); b) a preservação do valor liberdade, a oferta de meios de participação nos destinos da nação e dos Estados e a preservação do ordenamento jurídico e da própria autoridade destes (escopos políticos); c) a atuação da vontade concreta do direito(escopo jurídico).
[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, A.C de Araujo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 25ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 47.
[3] Pacto de São José da Costa Rica, art. 7,7.
[4] A responsabilidade penal ensejadora de constrição de locomoção ao depositário infiel poderá ser analisada sob o prisma da apropriação indébita, prevista no art. 168 do Código Penal, devendo o magistrado remeter cópia dos autos à autoridade ministerial para apuração de infração de natureza penal e providências.
[5] LIVRAMENTO, Geraldo Aparecido do. Execução no Novo CPC: Cumprimento de sentença. 1ª Ed. Leme: JH Mizuno, 2016, p.123.
[6] THEODORO JR. ob. Cit. p, 297.
[7] Manual de Direito Processual Civil, 2015, São Paulo: