1 - INTRODUÇÃO
Ao final de 2016, mais precisamente no dia 05/12/2016, foi enviado para a Câmara Federal o projeto para a mais ampla reforma no Sistema Previdenciário nacional. Sob a alegação de um suposto deficit nas contas da Previdência, a proposta que ficou conhecida como PEC-287 visa, entre outras mudanças, ao estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria.
O texto encaminhado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados sofreu diversas alterações na Comissão Especial que analisa a reforma previdenciária, tendo sido aprovado, naquela Comissão, o substitutivo elaborado pelo Deputado Federal Arthur Maia, que deverá ser submetido à apreciação do Congresso Nacional.
Neste prisma, trabalhadores urbanos, homens e mulheres, servidores públicos ou funcionários da iniciativa privada só teriam acesso à sua aposentadoria a partir dos 65 anos de idade para homens e 62 anos de idade para mulheres, inicialmente – e desde que, a esta altura de suas vidas tenham contribuído por, pelo menos, 25 anos, ou tenham contabilizado 300 contribuições mensais. Os trabalhadores rurais, que na proposta inicial deveriam preencher os mesmos requisitos dos trabalhadores urbanos supramencionados, tiveram sua proposta abrandada e terão como idade mínima 60 anos para homem e 57 anos para mulher com 15 anos de contribuição.
Atualmente, existem três tipos de aposentadoria no sistema previdenciário brasileiro: por idade, por tempo de contribuição e por invalidez. Além desses, há a aposentadoria especial (para trabalhadores que laboram sob condições prejudiciais à saúde ou à sua integridade física), que é um caso específico da aposentadoria por tempo de contribuição.
Este artigo pretende analisar esta proposta de Reforma especificamente sobre a fixação da idade mínima para aposentadoria, refletindo sobre as enormes diferenças regionais que encontramos dentro do território nacional, utilizando o Direito comparado para analisar as diferenças sociais entre o Brasil e os demais que possuem pré-requisitos similares àqueles apresentados na PEC 287. Ao final, há de se mencionar sobre a quebra da expectativa de direito dos trabalhadores que já contribuem para a previdência social e, ainda, uma análise sobre a possibilidade de uma transição menos traumática para os contribuintes.
2–CONTRASTES SOCIAIS BRASILEIROS
O cálculo adotado é a média entre a expectativa de todos os estados brasileiros, não levando em conta a diferença entre cada região do país. Porém, há de se destacar que o Brasil é um país continental, que possui desigualdades regionais latentes e temos que nos atentar para essas desigualdades.
Dados como a expectativa de vida de homens e mulheres nos diferentes estados da federação deveriam ser melhor estudados além de outros números percentuais importantes como taxa de urbanização, taxa de informalidade etc. Há regiões brasileiras ainda predominantemente rurais em contraste com demais regiões amplamente industrializadas.
Segundo dados do IBGE, a expectativa de vida ao nascer no Brasil (para ambos os sexos) é de 75 anos. Mas, em 18 estados, ela é menor do que a média nacional. A de Santa Catarina (78,4 anos) é muito maior que a do Piauí (70,9). Para os homens nascidos em Alagoas, Maranhão e Piauí a expectativa de vida é de 66,5, 66,6 e 66,8 anos de idade, respectivamente. No estado de Santa Catarina a expectativa de vida de mulheres nascidas em 2015 é de 82,1 anos de idade. [1]
A taxa de urbanização no Distrito Federal (95,3%) contrasta com a encontrada no Piauí (67,1%). A taxa de mortalidade infantil no Espírito Santo (9,2) é mais de 12 anos inferior à do Amapá (23,5) ou à do Maranhão (22,4). As diferenças dos graus de informalidade apresentadas pelas 27 Unidades da Federação são muito elevadas. De um lado, São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal apresentam graus de informalidade iguais ou inferiores a 40,0%. De outro lado, Maranhão, Piauí e Paraíba exibem informalidade no mercado de trabalho superior a 65,0%.[2]
Todos estes dados percentuais deveriam influenciar na adoção de reforma tão profunda e impactante aos trabalhadores. Em um país com enorme heterogeneidade regional, qualquer proposta de política pública federal deveria levar em consideração as distintas realidades existentes nos diferentes territórios nacionais.
Dentro de nosso próprio país há diferenças sociais clamorosas e, se nos basearmos apenas nas regiões mais ricas para a tomada de decisão, sufocaremos os menos favorecidos economicamente. Não restam dúvidas, portanto, que milhões de brasileiros serão excluídos da proteção previdenciária e assistencial por se encontrarem em estados da federação cuja expectativa de vida é inferior aos estados financeiramente mais abastados.
3 - DIREITO COMPARADO
A sigla OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) aparece com muita frequência nos argumentos explicativos da PEC-287. Este grupo é composto por países como França, Itália, Inglaterra, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Japão, Dinamarca, Finlândia. Alguns países da OCDE já adotam a idade de 65 anos como a mínima para aposentadoria. Convém, por oportuno, esclarecer que alguns países que têm como exigência de idade mínima de 65 anos para a aposentadoria possuem a expectativa de vida alguns anos a mais do que a expectativa nacional. No Brasil, a expectativa de vida ao nascer é mais de seis anos inferior à verificada nos países desenvolvidos. Nossa realidade demográfica está mais próxima de sociedades como México, Argentina, China, Peru, Colômbia e Paraguai, por exemplo.
Sob a ótica do índice de Gini, medida de concentração muito utilizada para comparar o grau de desigualdade na renda dos países (quanto mais próximo de 1, maior é o grau de concentração da renda), nos países mais igualitários é inferior a 0,4.
Nos países europeus, os jovens entram no mercado de trabalho por volta de 23 anos (França) e 26,2 anos (Itália). No Brasil, 45,9% dos homens urbanos e 78,2% dos rurais começam a trabalhar com até 14 anos; este número se eleva para 76,9% e 92,3%, respectivamente, se considerarmos os jovens que entram no mercado de trabalho com 17 anos ou menos.
No caso dos homens, a expectativa de vida ao nascer no Brasil é quase dez anos inferior à de muitos países europeus. No caso das mulheres, ela também é muito inferior à registrada nesses países. Projeções do IBGE indicam que somente em 2060 o brasileiro terá expectativa de vida ao nascer semelhante às nações desenvolvidas.
A “expectativa de duração da aposentadoria” no Brasil é cerca de oito anos inferior à verificada em alguns países da comunidade europeia. Em termos médios, a expectativa de duração da aposentadoria na OCDE é de 17,6 anos, contra 13,4 anos no Brasil.
No concernente à educação, Bélgica, Dinamarca, Finlândia e França, mesmo com sistemas de educação e saúde universalizados e de conhecida qualidade, apresentaram gasto superior, em relação ao PIB, em comparação ao Brasil. Mas é no gasto com a saúde que a situação é mais dramática. Enquanto na França e na Bélgica os gastos com saúde representaram, respectivamente, 11,7% e 11,2% do PIB, no Brasil o percentual atingiu 9,7%.[3] Novamente, o que impressiona no padrão de destinação do gasto público é que nos países da OCDE existe uma tradição de financiamento amadurecido que resultou na ampliação das redes de proteção social, fundamentalmente a educação, a saúde e a assistência social.
Países com melhor qualidade de vida, atestada pela maior expectativa de vida, continuam a investir, comparativamente, mais que o Brasil, que ainda não universalizou as redes de proteção social, quer seja na saúde, quer seja na educação.
4 - QUEBRA DA EXPECTATIVA DO DIREITO
A realização de mudanças bruscas na legislação previdenciária e a criação de regras de transição sem qualquer razoabilidade acabam por retirar a credibilidade do sistema previdenciário nacional.
Dois princípios jurídicos são elementares ao desenvolvimento de estados democráticos de direito, como o Brasil: o não retrocesso e reserva do possível. Pelo primeiro, estabelece-se que conquistas sociais devem ser protegidas e preservadas. A vedação de retrocesso social não se limita à simples manutenção do estado atual das coisas, mas, sobretudo, na obrigação de avanço social.
Celso Antônio Bandeira de Mello acrescenta: “O princípio da segurança jurídica, o qual, se acaso não é o maior de todos os princípios gerais de direito, como acreditamos que efetivamente o seja, por certo é um dos maiores dentre eles. Por força do sobredito princípio cuida-se de evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos administradores e de minorar os efeitos traumáticos que resultem de novas disposições jurídicas que alcançariam situações em curso. A prescrição, o direito adquirido, são exemplos de institutos prestigiadores da segurança jurídica.” (MELLO, 2004, p.77)
Gustavo Binenbojm complementa: “O certo é que o princípio da proteção à segurança jurídica encontra respaldo em diversos enunciados normativos inscritos na Constituição brasileira. Ele está implícito na cláusula do Estado Democrático de Direito (art. 1º), figura no elenco de direitos fundamentais (art. 5º, caput) e sociais (art. 6º), e pode ser extraído do princípio da legalidade (art. 5º, II), da proteção ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (art. 5º, XXXVI), e das garantias da irretroatividade e da anterioridade fiscal (art. 150, III, alíneas “a” e “b”).”. (BINENBOJM, 2008, P.180)
O Princípio da Reserva do Possível defende que o Estado está limitado a fazer aquilo que lhe for possível materialmente. Nesse sentido, para justificar corte de investimentos sociais, recursos são desviados. A desoneração da folha de pagamentos e a Desvinculação das Receitas da União (DRU), por exemplo, resultam na diminuição da capacidade financeira do sistema de Seguridade Social – Saúde, Assistência e Previdência Social. A desoneração diminui a arrecadação direta da Previdência Social, na medida em que a tributação da folha de pagamentos é receita exclusiva da Previdência Pública.
O renomado jurista Marcelo Barroso contribui: “O agente do Direito, no entanto, não deve, ter a pretensão positivista de querer encerrar um rol definitivo do significado que encontrou para a segurança, pois este possível significado encontrado é apenas um espectro da real dimensão da segurança.” (BARROSO p. 95/96).
Deixar que emendas constitucionais ou outras normas suprimam, diminuam ou neutralizem direitos sociais, conquistados a duras penas, é um retrocesso social. Aumentar o requisito de idade dos benefícios assistenciais, dentre outras proposições da Reforma, é retroceder socialmente.
5–A NECESSIDADE DE UMA TRANSIÇÃO MAIS AMPLA
Todos esperam que o Ordenamento Jurídico se desenvolva, isto é, torne-se melhor para que melhores condições de vida sejam possíveis. Isso geralmente acontece de modo vagaroso e gradativo, pois é feito com necessidade de discussão aberta entre os envolvidos e outros fatores diretamente interligados ao tema.
Contudo, como mencionado alhures, uma mudança tão profunda e significativa quanto a que pretende a PEC-287 deve ser amplamente estudada e debatida sob o risco de gerar dificuldades aos pequenos produtores rurais; colocar em risco a segurança de idosos; aumento da migração do campo para a cidade; descapitalização dos sistemas produtivos, com efeito direto na queda do volume da produção agrícola e pecuária; aumento da pobreza no campo e na cidade, o que demandará maior destinação de recursos para assistência social, com aumento da demanda, por exemplo, pelos Benefícios de Prestação Continuada e do Programa Bolsa Família; Crescimento das Desigualdades sociais.
Um mundo em que tudo muda muito rápido, em que informações circulam em alta velocidade e em grande quantidade, em que as relações sociais são extremamente cambiantes, não se pode ter apenas na certeza e na imutabilidade a razão de ser da segurança jurídica. A mobilidade inerente à sociedade da modernidade avançada, também deve ser experimentada pelo Direito e pelo Estado, com segurança. Por isso, a preocupação com a busca pela segurança do e no movimento. (BARROSO p. 257)
Pode-se concluir facilmente que a reforma no sistema previdenciário nacional resultará em um inequívoco empobrecimento da população brasileira e afetará, sobretudo, aquelas pessoas que se encontram em maior situação de vulnerabilidade, tais como o trabalhador rural, os deficientes, os idosos, pessoas que não possuem capacidade laboral, segurados que trabalham em áreas insalubres e perigosas, professores do ensino médio, infantil e fundamental, trabalhadores da segurança pública expostos a riscos à sua integridade física e pessoas que se encontram em situação de extrema miserabilidade.
A PEC n. 287/16, em vez de fazer menção à realidade demográfica de países europeus, deveria ter sido acompanhada de um estudo atuarial que fosse aderente à realidade nacional para que o sistema previdenciário brasileiro mantenha seu caráter distributivo e solidário, mas seja compatível com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial.
7 - REFERÊNCIAS
ARRAIS, Tadeu Alencar. Risco Social no Espaço Rural: A Reforma Previdenciária e o fim da aposentadoria Rural. Disponível em: <https://www.cegraf.ufg.br/up/688/o/book_risco_social.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2017.
BARROSO, Marcelo. Direitos Previdenciários Expectados: A Segurança na relação Jurídica Previdenciária dos Servidores Públicos. 1. ed. Curitiba:Juruá Editora, 2012.
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia de constitucionalização. 2. Ed. Rio de janeiro: Renovar, 2008.
DIEESE. PEC n. 241/2016: o novo regime fiscal e seus possíveis impactos. São Paulo: DIEESE, set. 2016. (Nota Técnica, 161). Disponível em: <www.dieese.org.br/notatecnica/2016/notaTec161novoRegimeFiscal.pdf>.Acesso em: 23 fev. 2017.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. AepsInfologo: base de dados históricos da Previdência Social. Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www3.dataprev.gov.br/infologo/>.Acesso em: 23 fev. 2017.
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Regime geral: RGPS. Brasília, DF: MPS, 20 dez. 2016. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/08/AEPS-2015-FINAL.pdf>.Acesso em: 23 fev. 2017.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Monica. Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
PREVIDÊNCIA: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira - Brasília: DIEESE/ ANFIP; 2017. 48p. (Documento síntese)
REFORMA DA PREVIDÊNCIA:Princípio do não Retrocesso e da Reserva do Possível. Disponível em:< http://www.previdenciacomentada.com/nao-retrocesso-reserva-do-possivel/>.Acesso em: 24 fev. 2017.
REFORMA da Previdência tem mecanismo para jovens que hoje tem 20 anos só se aposentem aos 77. Disponível em:< http://www.ieprev.com.br/conteudo/categoria/4/3164/reforma_da_previdencia_tem_mecanismo_para_jovens_qu_hoje_tem_20_anos_so_se_aposentarem_aos_77>.Acesso em: 23 fev. 2017.
Notas
[1] Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e estatística – IBGE.
[2] Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e estatística – IBGE.
[3]PIKETTY, Thomas