Muito se tem escrito sobre o “aumento” de alíquotas levada a efeito pelo Decreto nº 9.101, de 20 de julho de 2017. Alguns estudiosos acoimam de inconstitucional o aludido Decreto por violação dos princípios da legalidade tributária e da nonagesimidade, além de implicar desvio de finalidade, tendo em vista o caráter nitidamente arrecadatório da alteração de alíquotas.
Essa contribuição de intervenção no domínio econômico tem duplo fundamento constitucional: arts. 149 e 177, § 4º da CF. Vejamos o que diz o referido § 4º:
“§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos:
I - a alíquota da contribuição poderá ser:
a)-diferenciada por produto ou uso;
b)reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b;
II – os recursos arrecadados serão destinados serão destinados:
a) ao pagamento de subsídio a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo;
b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás;
c) ao financiamento de programas de infraestrutura de transportes”.
Como toda contribuição social a CIDE, também tem o produto de sua arrecadação vinculada à finalidade que ensejou sua criação. No caso sob análise o produto da arrecadação da CIDE somente pode ser utilizado para as três finalidades previstas no inciso II, do § 4º, do art. 177 da CF retro transcrito. Ao contrário das contribuições sociais para a seguridade social, referidas no art. 195 da CF, a CIDE é um tributo que “tem nítido caráter de intervenção na atividade econômica, especificamente voltada para o setor de importação e comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível, conforme assinalamos em nossa obra [1]. É própria de tributos de natureza interventiva ou ordinatória a alteração de alíquotas por ato do Executivo. No II, IE, IPI e no IOF o Poder Executivo pode majorar as alíquotas nos limites e condições fixadas em lei. As alíquotas do IOF são frequentemente majoradas para fins meramente arrecadatórios, divorciadas de qualquer finalidade regulatória. Os Decretos ns. 6.339/08 e 6.345/08 que elevaram as alíquotas do IOF foram objetos de impugnação pelo DEM e pelo PSDB que geraram as ADIs nºs 4002 e 4004, respectivamente, distribuídas em 7-1-2008 e 10-1-2008. Quase uma década se passou sem que o STF julgasse o mérito da ação, pois a medida cautelar não foi apreciada porque se optou pela aplicação do art. 12 da lei de regência da matéria. A morosidade do Judiciário propiciou novos aumentos por meio do Decreto nº 8.392/15 que dobrou as alíquotas em vigor.
No caso da CIDE não há autorização constitucional para aumentar a alíquota, nem há lei prescrevendo limites e condições para sua majoração, a exemplo da Lei nº 8.894/94 que fixa as alíquotas máximas para a majoração do IOF, bem como define as condições para essa majoração.
Contudo, a Constituição outorgou ao Executivo o poder de reduzir a alíquota da CIDE, bem como o de reconduzir à alíquota originalmente fixada por lei (letra b, do inciso I, do § 4º do art. 177 da CF). Reduzir e restabelecer a alíquota, - reduzida e restabelecida – na dicção constitucional, é diferente de aumento de alíquota fixada por lei. O Executivo poderá reduzir até zerar a alíquota e reconduzi-la, parcial ou totalmente, à alíquota fixada por lei.
No governo Lula a alíquota da CIDE foi inexplicavelmente [2] zerada, prejudicando bastante o setor produtivo de álcool combustível. E o preço do etanol passou a ser desinteressante para o consumidor que retornou ao uso da gasolina, contribuindo para o aumento da poluição ambiental, além da elevação periódica do preço da gasolina que deixou de ser subsidiado, variando o seu preço de conformidade com o mercado internacional do petróleo e seus derivados. Lembro-me da época em que o preço da gasolina e do álcool combustível variava toda semana!
O Decreto nº 9.101/17 não promoveu majoração da alíquota da CIDE como se depreende de sua ementa:
“DECRETO Nº 9.101, DE 20 DE JULHO DE 2017
Altera o Decreto n
º5.059, de 30 de abril de 2004, e o Decreto nº6.573, de 19 de setembro de 2008, que reduzem as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool”.
Com se verifica, houve alteração dos Decretos que haviam reduzido a alíquota da CIDE. E a supressão da redução não foi total. Houve, na realidade, recondução parcial às alíquotas originalmente fixadas. Juridicamente não houve aumento de alíquotas. Houve, isto sim, aumento de receita tributária global em relação aos períodos anteriores ao Decreto em tela.
Assim, não houve violação dos princípios da legalidade tributária e da nonagesimidade aplicáveis apenas à hipótese de majoração tributária, quer pela elevação de alíquotas, quer pela adoção da base de cálculo que torne o tributo mais oneroso.
Quanto ao desvio de finalidade, embora seja público e notório que o governo deu uma remexida nas alíquotas da CIDE para diminuir o tamanho do rombo nas contas públicas, não se pode concluir a priori que o produto de sua arrecadação será destinado ao custeio das despesas correntes.
Na hipótese de abertura de crédito adicional suplementar para finalidades diversas das que constam no inciso II, do § 4º do art. 177 da CF poderá o instrumento normativo respectivo (Lei ordinária, ou Decreto, conforme o caso) ser impugnado por meio de ADI conforme já ocorreu no passado em duas oportunidades, segundo noticiado em nossa obra citada.
Concluindo, o Decreto nº 9.101/17 não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade, sendo correta tecnicamente a decisão do Presidente do TRF1 que cassou a liminar concedida por decisão do juiz Federal.
Mas, uma coisa é certa: o aumento da receita pública constitui-se em matéria prima para expansão das despesas públicas, exatamente na contramão da política financeira do Estado traduzida pela Emenda nº 95/16 que praticamente congela as despesas públicas por vinte anos consecutivos, permitindo-se apenas em cada exercício financeiro a correção monetária do montante das despesas primárias do exercício anterior. O certo seria promover corte seletivo das despesas públicas: cortar as gorduras e poupar a carne. Mas, governo algum fez isso. O atual não é diferente. Aumenta-se mais e mais as gorduras enquanto se vai cortando a carne para justificar o aumento da imposição tributária: sem elevar os impostos os serviços essenciais ficarão paralisados [3]. É o discurso padrão dos governantes das últimas décadas. O governo grita de um lado, e o Judiciário ouve do outro lado ao pé da letra! Foi assim que chegamos ao nível de imposição tributária que atingiu 36% do PIB, um dos percentuais mais altos do Planeta se comparados com a contrapartida representada pela prestação de serviços públicos essenciais. A única forma de conter as despesas públicas é reduzindo a carga tributária. Congelar despesas por meio de uma Emenda por 20 anos não é razoável, como já escrevemos por ocasião da tramitação da PEC 241.
Tenho a convicção de que essa escalada de tributos não é culpa exclusiva deste ou daquele governo. O atual governante, por exemplo, acusado de abrir as torneiras do Tesouro, está simplesmente procurando preservar o seu mandato ameaçado de forma não usual: essa ameaça resultou do emprego do eticamente condenável “instituto” da delação premiada feita pelo chefe da maior organização criminosa de que se tem notícia, cujo conteúdo foi criminosa e impunemente vazado para a grande mídia, tornando letra morta o disposto no art. 154 do Código Penal. A culpa, em última análise, é do sistema presidencial de governo denominado eufemisticamente de “presidencialismo de coalizão” que conduz à ruptura das normas éticas, transformando o Congresso Nacional em um balcão de negócios, bons e ruins.
Mas, o nosso artigo versa sobre matéria jurídica e nessa matéria nada há de ilegal ou inconstitucional o Decreto sob exame.
EM TEMPO:
Tendo em vista os pedidos de esclarecimento por parte de alguns leitores estudiosos da matéria prestamos as seguintes informações:
O título está abreviado devido à sua extensão, mas o meu texto versa sobre a CIDE, isto é, contribuição de natureza extrafiscal prevista no § 4º, do art. 177 da CF e instituída pela Lei nº 10.336, de 19-12-2001 que elegeu como fato gerador “a importação e comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível” (art. 1º). O § 4º, do art. 177 da CF permite que o Executivo reduza a alíquota legalmente fixada e reconduza ao patamar anterior. Idêntica faculdade está prevista no art. 9º da Lei nº 10.336/01, in verbis:
“Art. 9o O Poder Executivo poderá reduzir as alíquotas específicas de cada produto, bem assim restabelecê-las até o valor fixado no art. 5o.
§ 1o O Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer os limites de dedução referidos no art. 8o.
§ 2o Observado o valor limite fixado no art. 5o, o Poder Executivo poderá estabelecer alíquotas específicas diversas para o diesel, conforme o teor de enxofre do produto, de acordo com classificação estabelecida pela ANP”.
A primeira e única redução da alíquota ocorreu pelo Decreto nº 4.565, de 1º de janeiro de 2003.
Acontece que o confuso legislador palaciano editou a MP nº 164/2004 convertida na Lei nº 10.865, de 30-4-2004, criando nova contribuição social do PIS/COFINS-Importação com fundamento no art. 149, § 2º, II, da CF e art. 195, inciso IV da CF acrescido pela EC nº 42/2003. Só que essa contribuição social nada tem de intervenção no domínio econômico, apesar de fundada, também no art. 149, § 2º, II da CF. A única CIDE é a do § 4º, do art. 177 da CF (Lei nº 10.336/01). A contribuição social da Lei nº 10.865/04 tem o fato gerador bem mais amplo consistente na “entrada de bens estrangeiros no território nacional; ou o pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior como contraprestação por serviço prestado” (art. 3º) e sua finalidade é meramente arrecadatória para financiar a seguridade social, tanto é que o valor pago a esse título pode ser creditado na apuração do PIS/COFINS tradicional. A criação de uma falsa “CIDE” só trouxe mais confusão na legislação do PIS/COFINS que já era caótica. Mas, são duas contribuições sociais de natureza diversa, tanto é que na nossa obra [4] cuidamos da CIDE no capítulo 9.2.2.5.1 (e) concernente às contribuições sociais do art. 149 da CF (de intervenção no domínio econômico – p. 365-367), e a contribuição da Lei nº 10.865/04 cuidamos no capítulo 9.2.2.2.5.2 (f) concernente às contribuições sociais do art. 195 da CF (da Seguridade Social – p. 397-399).
Embora o Decreto nº 9.101/17 que se reporta aos Decretos nºs 5.059/04 e 6.573/08 diga respeito aos coeficientes de redução de alíquotas do PIS/COFINS-Importação na forma da autorização contida no § 5º, do art. 23 da Lei nº 10.865/04 [5], a verdade é que do ponto de vista material essas reduções se circunscreveram a importação de combustíveis em geral (gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo e querosene de aviação), ou seja, exatamente os produtos sobre os quais incide a verdadeira CIDE (Lei nº 10.336/01). O certo seria o Decreto nº 9.101/17 ter alterado a redução feita pelo Decreto nº 4.565/03 que implementa a faculdade contida no art. 9º da Lei nº 10.336/01. Mas, do ponto de vista material o efeito é o mesmo. O último Decreto incidiu no mesmo erro formal dos Decretos anteriores. Se consultarmos o site da Petrobrás no sítio que faz alusão à composição do preço da gasolina verificar-se-á que a alíquota da CIDE está zerada [6].
Confesso que a matéria é complexa. Nesse cipoal de confusões de normas, agravadas pela intervenção do legislador palaciano é preciso muito tempo e conhecimento para fazer uma análise criteriosa dentro do sistema jurídico global, a fim de encontrar o verdadeiro sentido que está por trás de cada norma. As interpretações literais conduzem quase sempre a contradições inafastáveis, pois a dubiedade e nebulosidade de normas tributárias faz parte da cultura do legislador brasileiro.
São esses os esclarecimentos que prestamos em respeito aos estudiosos que nos prestigiam com críticas construtivas.
Por fim, respeitamos opiniões em contrário, pois ninguém é dono da verdade.
Notas:
[1] Direito financeiro e tributário. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
[2] “§ 5º Fica o Poder Executivo autorizado a fixar coeficiente para redução das alíquotas previstas neste artigo, os quais poderão ser alterados para mais ou para menos ou extintos em relação aos produtos ou sua utilização, a qualquer tempo”.
[3]http://www.petrobras.com.br/pt/produtos-e-servicos/composicao-de-precos/gasolina, acesso em 20-07-2017.
[4] Direito financeiro e tributário, 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 366.
[5] Não foi para atenuar a carga tributária global cada vez mais crescente.
[6] Lembre-se que o serviço de emissão de passaportes ficou paralisado por algum tempo até receber suplementação de verbas. Em seguida veio a anulação parcial das reduções de alíquotas da CIDE.