Resumo: O Direito não se resolve no a priori, extraindo-se do puro intelecto humano. Daí que a razão do Juiz não pode se sobrepor ao caso decidendo. Tampouco pode abdicar dos pressupostos legais previstos para dar respostas definitivas aos jurisdicionados. Igualmente, não pode dispor livremente do modo de agir que elas impõem. Assim, pressupondo que fato e direito estão imbricados, o presente empreendimento é demonstrar o papel fundamental da prova enquanto sua função de validar as pretensões normativas em jogo.
Palavras-chave: discricionariedade; fato; direito; prova.
Se antes havia dúvidas, a nova codificação processual civil pôs fim a qualquer celeuma a respeito da não recepção do “livre convencimento motivado” pelo ordenamento após a constitucionalização do Direito brasileiro. Como, por aqui, princípios só são normas quando servem para confirmarem convicções íntimas, mister se fez a positivação via texto, tendo o legislador suprimido intencionalmente o vocábulo ‘livre’ da redação do art.371 do CPC. Daí uma pergunta retórica: quantas vezes o termo ‘discricionariedade’ é citado no NOVO (frisa-se) Código de Processo Civil? Nem uma!! Logo, o juiz, muito embora não esteja amarrado na boca da lei, deve se conter na e pela normatividade, própria da autonomização do sistema jurídico. E nem se diga que a possibilidade de o Juiz produzir prova de ofício (art.370) confira, implicitamente, discricionariedade, pois, repita-se, sua aplicação está condicionada pelo princípio do devido processo legal, razão pela qual sua incidência está limitada às hipóteses de preservação do equilíbrio entre as partes[1].
A chamada emenda STRECK, portanto, não pode ser desconsiderada ou feita tabula rasa, mas entendida como uma alteração paradigmática[2], revisora da visão que se tinha sobre o papel e modo de produção da prova dentro do contraditório processual. Pois ela reforça, ainda mais, uma interpretação conforme a Constituição, e confere ganho (atribuição) de sentido[3] ao princípio do devido processo legal, cada vez mais ajustado à intersubjetividade[4].
O excurso desse impacto será conduzido pelo padrão de exigência da Integridade e Coerência, agora, positivada. Isso, por impor um padrão decisório holístico, chamando a atenção “para como, na interpretação de elementos do ordenamento jurídico, o sentido das partes é dependente do sentido do todo”[5], será essencial na verificação da interdependência entre os sentidos dos institutos e normas legais possivelmente aplicáveis, das quais de antemão devem ser afastadas aquelas atribuições de significado com carga autoritária, capazes de tolherem injustificadamente a autorrealização do indivíduo. Nesse sentido, parte-se de inferências que deem adequada aplicação aos direitos fundamentais, máxime o devido processo legal, eis que condições de possibilidade de qualquer debate sob a égide do constitucionalismo moderno[6]. Assim, uma vez que as normas processuais lhes devem obediência no momento de concreção (=aplicação), será realizada uma defesa irrestrita de uma interpretação que lhes levem em consideração de forma coerente e unitária, sob pena de enfraquecimento da força normativa da Constituição e dos princípios que preservam a autonomia do Direito[7].
Ao compreender o processo enquanto (ou quase) discurso, com pretensão de correção (ao menos jurídica), não pode prescindir-se de ferramentas que confiram aos participantes meios efetivos de demonstrarem as justezas de suas razões. E isso constitui um princípio que pode ser aceito por todos (inclusos os virtualmente afetados) que estejam de boa fé, em um sentido universal-recíproco. Isso porque a Constituição, à qual estamos todos submetidos, para além de sufragar um estado Democrático de Direito, prioriza liberdades frente às intervenções estatais (no caso do processo, o poder coercitivo da jurisdição).
Antes que trivial, a proposta é de que, se o devido processo legal foi erigido a direito fundamental do indivíduo, não há processo devido sem sua participação. E ao reconhecer a dignidade da pessoa humana como fundamento da Constituição, defere-se ao sujeito a responsabilidade de integrar (ou ser tomado em consideração) e influir nos processos de formação de normas que lhes digam respeito, tendo as provas papel primordial nesse mister.
Se, ao invocar um direito, precisa-se demonstrar que à hipótese há uma gama de elementos caracterizadores a ensejar a incidência normativa, e estes só o são após provados (daí a intersecção e interdependência entre fato e Direito), não há como afastar ou cindir o direito probatório – e em nenhum de seus estágios (ou acepções) dentro do processo, i.é, o ato de provar, meio de prova e sua valoração – , do direito material, nem lhe negligenciar o devido processo legal subjacente.
No processo, portanto, a premissa sobre a prova deve ser que o fato passado já foi e não volta mais. O que se tem é interpretação deles (e não sem eles), transmitida na e pela linguagem, em constante (re)construção[8]. No entremeio do turbilhão desses eventos, segundo as argumentações das partes, sempre com a pretensão de demonstrar o encontro com a norma (também interpretada) invocada, a prova assume o papel de reconectá-los. Soma-se a isso um complicador próprio da natureza do processo, qual seja, a tensão de se manter os olhos no passado, lidar com a fluidez e movimento contínuo para o futuro (ou do presente que se torna passado) e, por fim, a necessidade de se decidir um caso à luz do Direito. Resume-se essa implicação: assim como os fatos não só são puros neles mesmos, os direitos não estão pré-dados (ou incrustados) na Lei, antes, ambos, pressupõem-se mutuamente e têm no processo sua condição de possibilidade[9].
Por isso, tão curial é a delimitação do objeto litigioso, o (in)deferimento das provas que se fazem imprescindíveis a tal mister e o respeito às regras (materiais e processuais) probatórias pertinentes, sempre com o protagonismo das partes, confiando no Juiz o papel de árbitro, para exercer, fundamentadamente, o controle daquilo que seja relevante à luz das argumentações deduzidas pelos utentes.
Sob essa perspectiva, a célebre (e infeliz) (des)assertiva que o juiz é o verdadeiro destinatário da prova não pode ser compreendida como uma carta coringa, que lhe confira a possibilidade de distorcer fato e regras legais, para fazer valer seu livre convencimento. Afinal de contas, aquilo que o Direito e os remetentes (partes) dizem importa (e muito).
Ao revés, a defesa irrestrita da discricionariedade na seleção, modus operandi e valoração da prova dizem respeito ao próprio pré-juízo ou pré-conceito que o Magistrado já possui e pode nele se enclausurar. Isto é, está encartado naquele ranço "decido primeiro e fundamento depois" (STRECK), no sentido de que a pré-compreensão havida a respeito do caso já é a própria resposta a ser dada, independentemente do contraditório dos autos, tendo as provas mero caráter retórico (ou ilusório – LUHMAN[10]) de corroborar aquilo já pré-julgado e sendo relevantes somente aqueles elementos confirmadores de convicções íntimas.
(Nessa altura, registra-se, aos alarmistas de plantão, isso não implica paralisia cerebral do Magistrado, pois, como se disse, inexiste neutralidade, isto é, antes de tudo há sempre um pré-compreendido condicionante, e o interpretar é próprio do modo de ser, limitado, porém, pela e na linguagem (e tempo) jurídica.)
Daí advém a responsabilidade de o Juiz não se cegar pelos seus preconceitos (GUNTHER[11]), porquanto, mesmo diante de um problema que lhe seja familiar (ou que se identifique), cada caso é único, cujos elementos fáticos diferenciadores podem ensejar, igualmente, aplicação de norma distinta ou, ainda, uma norma inicialmente cogitada, mas com atribuição de sentido não antevista. Ou seja, esses preconceitos devem servir, tão somente, como condição de possibilidade para compreensão do caso decidendo, os quais deverão estar submetidos e predispostos para, no transcurso do processo, sofrerem (re)ajustes segundo as pretensões normativas que vão se formando. E como isso se dá em virtude do mencionado entrelaçamento (inevitável) entre fato e norma, é imperioso se conter na antecipação de respostas definitivas, embora provisoriamente sempre estejam presentes quando da seleção desses elementos relevantes, ainda que inconscientemente. Do contrário, a má condução na colheita pode conduzir na injusta derrocada para uma das partes.
Nisso, reside a importância de o Juiz colocar-se como um terceiro[12] que quer compreender o que as partes dizem (sempre em confronto com seu incessante modo de ver no mundo), no sentido de “considerar os diferentes pontos de vista ou os sinais característicos relevantes da situação, ou seja, deixa valer contra mim (ou contra a minha interpretação situacional de necessidade)”[13]. Do contrário, “confiando aos julgadores liberdade para decidirem conforme pensam e segundo a prova que melhor se amolde ao seu pensamento, desde que depois se justifiquem, como se o dever de fundamentação (por mais oneroso que se apresente) impermeabilizasse sozinho o livre atribuir de sentidos”[14] chancelará a possibilidade de os Juízes não assumirem uma verdadeira função jurisdicional, pois, sob essa perspectiva, estarão fazendo qualquer outra coisa que não decidindo o caso à luz do direito aplicável.
A produção da prova pericial é um exemplo importante. Há elementos que dependem de experts, sobre os quais a ciência, segundo seus padrões, pode constar (prováveis) ocorrências e circunstâncias. Pressupondo o seu deferimento inicial, normalmente serão despendidas custas. Após, as partes poderão apresentar quesitos. Ao final disso, todavia, poderia, o Juiz, simplesmente desconsiderá-la por entender que fosse prescindível a comprovar os fatos narrados? A toda evidência, inexiste esse poder, eis que se trata de puro arbítrio capaz de surpreender as partes, à revelia do procedimento previsto no CPC que confere prerrogativas de controle prévio e concomitante, tais como “indeferir quesitos impertinentes” e/ou “formular os quesitos que entender necessários ao esclarecimento da causa (art.465, §5º[15] c.c art. 470, I e II, do NCPC)[16]. Afigura-se relevante essa questão, porquanto, conforme visto, prejulgamento todos possuem, todavia, apresentar-se-á como estorvo a partir do momento que obnubilar seu confronto com o caso atual. E o sintoma dessa doença é exatamente a relativização do conjunto probatório, dialeticamente produzido nos autos, sem que se arque com quaisquer ônus[17]. Afinal de contas, motivo se ajeita para tudo, especialmente quando se pretende confirmar a própria convicção.
Outro exemplo prático é a produção prova testemunhal realizada em audiência. Um cuidado especial a mais se exige, uma vez sua (maior) suscetibilidade inerente a fatores de caráter motivacional, cognitiva etc. Igualmente embaraçosa a situação, quando o teor da prova testemunhal é ignorada em sua plenitude, para, em seu lugar, dá-se mais valor a um trecho específico e descontextualizado[18]. Mais uma vez, para além do provável prognóstico da patológica contaminação da imparcialidade, deflui-se a violação ao procedimento previsto, que preveem um modus de neutralização dessas sequelas às quais esse tipo de prova está sujeita (v.g., artigo 459 do NCPC[19]).
Por esse relevante papel da prova dentro do contraditório, a comunidade jurídica deve atentar-se (e lutar para) que o “Princípio” (sic) do livre convencimento (em todas as fases do processo), outorgado pelos (veja, e não “aos”, pois a constituição prevê a separação de poderes e delimita as áreas de atuação) “juízes-deuses”, está morto. Inclusive, práticas performáticas que visam disfarçá-lo sorrateiramente, mediante escroques ou álibis retóricos não controláveis. De outro modo, estando a questão intimamente ligada à temática da verdade, sob a perspectiva paradigmática (STRECK[20]), urge revistar a crença em técnicas de extração ou acoplamento de verdades, as quais pretensamente poderiam demonstrá-la antecipada e rapidamente (o que não é sinônimo de efetiva), para passar a se atentar ao caso concreto que deve ser decido.
Na linha defendida por STRECK em sua quatrologia[21], é preciso que os Tribunais, especialmente o STJ[22], percebam (e revejam) que pouco importa fosse/seja essa (execrável) postura avalizada no passado sobre o Direito Probatório (em toda sua extensão). Não é mais possível dar continuidade a práticas passadas, quando estas estão fundadas em premissas ditatoriais, uma vez que uma mentira (precedente) contada diversas vezes (jurisprudência) não se torna verdade (sob a ótica da resposta adequada ao Direito).
Igualmente, na linha de autorresponsabilização das partes (STRECK[23]), por implicação da diretriz da Constituição, necessário apostar nelas como condutoras de seu destino, e no Juiz como guardião da Lei. Sob outro giro, o papel do Juiz não é teorizar sobre o direito deduzido[24], em termos abstratos e metalinguisticamente, mas decidir quem tem ou não direito de acordo com as regras de direito material e processual aplicáveis. E como a própria "lei" não representa um ente onipresente e onipotente, e nem questões de fato podem ser cindidas das de direito, a individualidade do caso decidendo, reconectado ou reconstruída pelas provas, não podem ser prescindidos.
Ao final, reforça-se: sem fatos não há Direito. Sem processo também não. E não há só fatos para o Direito. Mas há, também, Direito para os fatos. Assim, metaforicamente conclui-se: o bater de asas de uma borboleta na produção probatória pode produzir um furacão na aplicação das regras relativas ao contraditório, fundamentação da decisão e, especialmente, ao direito material aplicável[25].