A pergunta formulada é bastante atual e, a meu ver, não comporta resposta única. Minha tendência inicial de conceituar o UBER como serviço privado confirmou-se após o aprofundamento no tema, posição esta que será fundamentada a seguir.
Nos termos do artigo 175, da Constituição da República Federativa do Brasil, a prestação de serviços públicos, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, cabe ao Poder Público.
Celso Antônio Bandeira de Mello[1] conceitua serviço público como
toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.
Não obstante os diversos autores e a infinidade de conceituações possíveis, consegue-se aferir alguns elementos comuns que apontam as características fundamentais do serviço público:
1) É uma atividade material;
2) De natureza ampliativa;
3) Prestada diretamente pelo Estado ou por seus delegados;
4) Sob regime de direito público; e
5) Com vistas à satisfação de necessidades essenciais ou secundárias da coletividade (grifou-se) [2].
No caso do UBER, não cabem muitas delongas quanto ao preenchimento dos dois primeiros requisitos, pois é um serviço oferecido no plano concreto e que amplia a esfera de interesses do particular – ao contrário do serviço de polícia, por exemplo, cuja natureza é restritiva.
Também não há dúvidas no que concerne ao quinto ponto do conceito. Diferentemente do que ocorre com o serviço de transporte coletivo de passageiros, o transporte individual não consiste em uma necessidade essencial, que mereça ser universalizado, mas pode ser considerado como satisfativo de uma necessidade secundária da coletividade – o que comporta controvérsias, tanto a fim de classificá-lo como essencial ou sem qualquer essencialidade, ainda que secundária.
Ocorre que, não obstante determinada atividade ser considerada uma necessidade essencial ou secundária da coletividade, ressalta-se que “a relevância social não é condição suficiente ou necessária para a transformação de certa atividade em serviço público” [3].
Se assim o fosse, deveriam ser caracterizadas como serviço público as atividades econômicas desenvolvidas por farmácias, supermercados e outros inúmeros exemplos, tão somente por serem essenciais – ou de necessidade secundária – à coletividade.
Embora alguns autores, como Alexandre Mazza afirmem que, “observados certos parâmetros constitucionais, a definição de quais são os serviços públicos depende exclusivamente da vontade do legislador” ³, mostra-se mais aprofundada a colocação de Daniel Sarmento[4], no sentido de que
o legislador não desfruta de liberdade irrestrita para instituir serviços públicos, pois, não fosse assim, ele poderia instituir novos monopólios e suprimir a iniciativa privada ao seu talante, passando por cima dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. Daí porque, e na linha da jurisprudência do STF, a criação de serviços públicos além daqueles já previstos na Constituição só é legítima se eles se voltarem ao atendimento de necessidades essenciais da população. Não é o caso do transporte individual de passageiros, que, pela sua própria natureza, não apresenta vocação para a universalização, ao contrário do transporte coletivo. Por isso, nem mesmo o legislador federal pode converter em serviço público toda a atividade de transporte individual de passageiros (grifou-se).
Desse modo, mesmo cabendo considerar o transporte individual de passageiros como uma satisfação de necessidades secundárias da coletividade, repise-se, tal critério não é suficiente para colocar o UBER no rol dos serviços públicos.
A controvérsia reside, de fato, nos dois elementos ainda não citados do conceito de serviço público: o regime jurídico e a forma de prestação do serviço.
Com efeito, não caberia ao Estado apropriar-se da inovação trazida pelo aplicativo, de forma a prestar diretamente o serviço. Tratar-se-ia o UBER, portanto, na hipótese de ser considerado serviço público, de serviço delegado pelo Estado, por meio de permissão, assim como o serviço de táxi.
Ocorre que, ao passo em que o transporte público individual de passageiros é atividade privativa dos taxistas[5], não há o monopólio por parte do Estado de toda e qualquer atividade de transporte individual de passageiros.
O transporte privado individual de passageiros, nesse aspecto, é melhor conceituado como uma atividade econômica em sentido estrito, e não como serviço público.
Nesse contexto, cabe colacionar a norma básica de regência do transporte urbano, que é a Lei n. 12.587, de 03/01/2012, a qual dispõe no § 2º de seu artigo 3º:
§ 2º Os serviços de transporte urbano são classificados:
I - quanto ao objeto:
a) de passageiros;
b) de cargas;
II - quanto à característica do serviço:
a) coletivo;
b) individual;
III - quanto à natureza do serviço:
a) público;
b) privado.
Assim, seja público ou privado, o transporte individual de passageiros é regido pela Lei supracitada, a qual não é dotada de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais de um em relação ao outro, nem individualmente ao serviço público de transporte individual de passageiros, de forma a estabelecer, indistintamente, um regime jurídico de direito público ao transporte individual de passageiros, ainda que privado.
No caso do UBER, outros elementos também são óbices à conceituação como serviço público. Não há obrigatoriedade de sua prestação pelo Estado, tendo em vista não ser um serviço essencial. Também não incide o princípio da continuidade e regularidade – de forma a impedir a interrupção do serviço –, o que iria de encontro à liberdade intencionada pelo UBER aos seus motoristas. Ademais,
não há prévia licitação, seguida de concessão ou permissão aos taxistas, como impõe a Constituição para os serviços públicos (art. 175, CF). Não bastasse, o título que enseja o exercício da atividade em questão pode ser alienado ou transmitido causa mortis (art. 12-A, §§ 1º e 2º da Lei nº 12.587/2012), o que é absolutamente inconciliável com a lógica do serviço público. O prestador do serviço – o taxista – não é obrigado a assegurar a sua continuidade: nada o impede de deixar o seu táxi parado, por longos períodos, se assim preferir[6].
No comparativo das características do transporte individual de passageiros com as do conceito de serviço público, portanto, tem-se que o UBER é uma atividade material, de natureza ampliativa e que visa à satisfação de uma necessidade secundária – no máximo – da coletividade. Por outro lado, não é dotado de um regime jurídico de direito público, de forma que não cabe sua prestação diretamente ou mediante delegação por parte do Estado.
Em recentíssima decisão, datada de 10 de março de 2016, concedeu-se em primeira instância medida liminar em mandado de segurança coletivo permitindo a prestação de serviços de transporte individual de passageiros pelo UBER no município de Belo Horizonte/MG. Invocando o princípio dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como da liberdade de exercício profissional, o Magistrado considerou como privado o serviço de transporte individual de passageiros prestado pelo UBER, “não se confundindo com o serviço público de transporte prestado por taxistas, mediante permissão do Poder Público” [7].
Este também foi o posicionamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, na decisão que segue:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIÇO DE TRANPORTE INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS. UBER. REGULARIDADE DO SERVIÇO PRESTADO. FALTA DE VEROSSIMILHANÇA NAS ALEGAÇÕES DO AGRAVANTE. RISCO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO NÃO CONFIGURADOS. 1. O serviço prestado pelo Uber configura-se como transporte de passageiros individual privado, não se confundindo com o serviço prestado pelos taxistas que se configura como um transporte de passageiros individual público, nos termos da Lei n. 12.468/2011. 2. Não há verossimilhança nas alegações do agravante que pretende a suspensão do aplicativo Uber, tendo em vista a diferença da natureza dos serviços prestados. 3. A manutenção do serviço prestado pelo Uber não gera risco de dano irreparável ou de difícil reparação aos taxistas, tendo em vista a grande demanda de serviço de transporte individual não atendida diante da defasagem da frota de táxis. 4. Negou-se provimento ao agravo de instrumento (AI n. 20150020202844, Relator Des. Sérgio Rocha, DJE de 14/10/2015) (grifou-se).
Em outra oportunidade, porém, o mesmo Tribunal considerou ilegal o serviço prestado pelo aplicativo UBER, o que ressalta a controvérsia que existe atualmente acerca do tema, senão vejamos:
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS COLETIVO. IDENTIFICAÇÃO DE PACIENTES. EXERCÍCIO ILEGAL DE PROFISSÃO OU ATIVIDADE. APLICATIVO UBER. TAXI. 1 - Habeas Corpus Coletivo. Inviabilidade. O habeas corpus se destina a proteger a liberdade individual e exige a identificação do paciente (Art. 654 , § 1º. , a, do CPP ) de modo que não se admite a sua concessão de forma genérica (STJ, AgRg no RHC 41627 / SP, 2013/0341267-0, Relator Ministro GURGEL DE FARIA) 2 - Aplicativo Uber. A utilização de aplicativo de telefonia móvel para angariar passageiros, mediante remuneração, para quem não seja permissionário, caracteriza, em tese, violação à Lei n. 5.323/2014, do Distrito Federal, que institui o serviço de taxi como atividade de interesse público explorado pelo Estado. Via de conseqüência tipifica-se a conduta prevista no art. 47 da Lei de Contravencoes Penais. 3 - De regra, o habeas corpus não se presta para impedir o exercício da persecução penal. Excepcionalmente pode ser assim utilizado nas hipóteses de manifesta atipicidade da conduta, de falta de justa causa ou de ausência de elementos mínimos de materialidade e de autoria, não caracterizado no caso em exame. 4 - Recurso conhecido, mas não provido. Custas pela recorrente (APJ n. 20150110887593, Relator Des. Aiston Henrique de Souza, DJE de 26/10/2015) (grifou-se).
A despeito da última decisão citada, considerada a fundamentação exposta acima, não há como enquadrar o serviço prestado pelo UBER no rol dos serviços públicos.
O transporte individual de passageiros realizado pelos motoristas do UBER caracteriza-se como atividade econômica em sentido estrito, a qual não deve depender de regulamentação estatal, em respeito à livre iniciativa e à livre concorrência, de forma a não avalizar o monopólio do exercício da atividade de transporte individual de passageiros, até então exercido pelos taxistas.
Nesse contexto, o estudo sobre o tema trouxe a reflexão acerca da necessidade de regulação estatal não só para o transporte privado individual de passageiros, como também para muitos outros serviços não essenciais à coletividade.
Por fim, os avanços tecnológicos trazidos pelo UBER e outros aplicativos inovadores tendem a marcar a nossa sociedade de forma significativa. O Ministério da Fazenda, inclusive, “concluiu que o aplicativo UBER gera efeitos benéficos para a concorrência no setor e recomendou que as prefeituras desregulem os serviços de táxi” [8]. Isso demonstra a importância e a necessidade, ainda hoje, de debate acerca do tema.
Notas
[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 671.
[2] MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 600-601.
[3] MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 601.
[4]SARMENTO, Daniel. Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e transporte individual de passageiros: O “caso Uber”. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2016. p. 41.
[5] Lei n. 12.468/2011. Art. 2º. É atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros.
[6] SARMENTO, Daniel. Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e transporte individual de passageiros: O “caso Uber”. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2016. p. 28.
[7] MIGALHAS. Poder público não pode impedir funcionamento do Uber em BH. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI235876,41046-Poder+publico+nao+pode+impedir+funcionamento+do+Uber+em+BH>. Acesso em 17 mar. 2016.
[8] VALOR ECONÔMICO. Em estudo sobre Uber, Fazenda sugere que municípios desregulem táxis. Disponível em: < http://www.valor.com.br/empresas/4480678/em-estudo-sobre-uber-fazenda-sugere-que-municipios-desregulem-taxis >. Acesso em 18 mar. 2016.