Com o advento da Lei 12.015/09, que revogou o art. 224 do CP e introduziu o art. 217 - A, muita polêmica se estabeleceu nos Tribunais, sobretudo quanto ao viés da presunção de violência.
Para muitos, com a inovação legislativa, tornou-se inócua a discussão sobre a existência da “presunção”, porquanto o tipo penal se mostrava completo, objetivo e exauriente ao criminalizar a prática de todo e qualquer ato de cunho sexual em face de vulnerável.
Segundo aludida corrente, o critério etário, elegido pelo legislador em termos absolutos, não comporta temperamentos.
Em 2015, então, o colendo Superior Tribunal de Justiça, quando convocado para conferir sua interpretação ao tema, foi enfático ao fixar a premissa, em sede de recurso repetitivo, de que “para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime”.
A partir de então, com os olhos voltados à literalidade da mencionada tese, as Cortes de Justiça passaram a centralizar o exame das respectivas lides penais ao critério da idade, repelindo toda e qualquer discussão em torno de especificidades e/ou exceções.
Ignorando-se o fato de ser o direito dinâmico e dependente dos anseios sociais do momento, Magistrados Brasil afora entabularam uma autêntica, indiscriminada e cruel caça a pseudos estupradores, causando e provocando prejuízos bem maiores aos protagonistas envolvidos, como adiante se exporá.
Conquanto árduo defensor do respeito e obediência à jurisprudência vinculante, não se pode negar que nalgumas situações as teses fixadas pelas Cortes Superiores pecam na sua base. Há situações influenciadas por fatores culturais, geográficos, religiosos e até econômicos, sobretudo quando cotejadas num território de dimensões continentais, que retiram dos Tribunais de Brasília a possibilidade de “uniformização hermenêutica”, devendo ser pensada e analisada casuisticamente.
Com efeito, não se pode e nem se deve generalizar o específico.
Em casos desse jaez, é evidente, a permanecer o silêncio e inércia dos Tribunais comuns, jamais se instigará o STJ a uma revisão dos seus entendimentos. Esse engessamento, frise-se, não é salutar e tampouco útil ao verdadeiro escopo da justiça penal.
Não se quer aqui mitigar ou vulgarizar o princípio da máxima proteção à criança e ao adolescente. Longe disso, quer-se, através da presente reflexão, reforça-lo.
Afinal, são vários os casos citados na jurisprudência nos quais adolescentes, ao adentrarem na sua maturidade sexual, entabulam “namoricos” com outros jovens da mesma faixa etária, alheios, como não poderia deixar de sê-los, ao perigo de que tais condutas podem, absurda e hipocritamente, configurar atos infracionais equiparados a estupro, com a viabilidade de sancionamento por internação.
Isso, por si só, antes de corresponder a um método de tutela, soa muito mais como um exemplo de violação à dignidade e incolumidade do menor, sujeitando-lhes a indevidos, senão injustos, castigos estatais.
Outras situações de igual relevância podem ser visualizadas naqueles casos, comumente ocorridos no interior do Estado e cuja tradição remonta ao século XIX, nos quais “adolescentes-adultas” consensualmente constituem família, sobrevindo-lhe desse episódio vários filhos, e o seu arrimo, após um considerável interregno, pela simples de ter se relacionado com sua companheira antes dos 14 anos, é abrupta e violentamente retirado do seu lar e lançado numa penitenciária, deixando sem pão ou afeto uma legião de rebentos.
Tal episódio pode ser contextualizado num quadro ainda mais caótico e preocupante se pensada a figura do estupro sob sua modalidade omissiva (art. 13, § 2º do CP), cujo resultado fatalmente será a transformação em réus dos pais da vítima.
E, em assim sendo, como afirmado alhures, a pretexto de se conferir absoluta proteção ao menor, estar-se-á em verdade “destruindo” a instituição família, cuja tutela talqualmente possui civilizatórias raízes constitucionais.
Difícil, muito difícil, de se ver o destino promissor de um jovem casal, excelentes pais e companheiros, ele trabalhador e responsável único pelos sustento dos seus rebentos, sendo desviado do seu prumo tragicamente por uma condenação nada pedagógica ou teleológica.
Não por outra razão, acredito, o TJRS tem se insurgido contra o caráter absoluto do entendimento firmado pelo Tribunal da Cidadania, conferindo-lhe “interpretação conforme a Constituição”.
Em 18 de maio do corrente ano, na Apelação 70064354988, ao ter a matéria devolvida por força do § 2º do art. 543-C do CPC, a Corte Gaúcha deu um passo importantíssimo ao mister ora proposto, destacando ser “bem verdade que a nova legislação que introduziu o artigo 217-A em nosso Código Penal, aliás, na esteira de legislações alienígenas, veio a agravar a conduta de quem, em termos gerais, pratica ato sexual com menores de 14 anos. O legislador buscou afastar a brecha legislativa que oferecia interpretação "dúbia" (?) que se instalava com a expressão presunção a que se referia o antigo 224 do CP brasileiro, ou, mais precisamente, se a presunção seria absoluta ou relativa, optando, com a reforma, pela fórmula mais rígida de que o consenso do menor não é válido tamquam non esset, isto é, a presunção é absoluta. Nada obstante, o direito penal não tem caráter absoluto e deve sempre ser visto em sua conformidade constitucional, portanto sob os auspícios dos princípios do Estado democrático de direito, da dignidade da pessoa humana e da intervenção mínima (ultima ratio)”.
Mais adiante, o ilustre Desembargador José Conrado, com inegável sensibilidade jurídica, desfechou destacando que “se por um lado houve agravamento pelo legislador de condutas como a que ora está sob análise, de outro positivou-se o entendimento, já de longo presente na doutrina e jurisprudência, de que a tutela sobre os crimes sexuais não se insere na órbita de uma mutável, relativa e abstrata moralidade pública, sob a fórmula "crimes contra os costumes", mas, diversamente, na da autodeterminação sexual, que está diretamente relacionada à dignidade da pessoa humana. O direito à autodeterminação sexual, em sentido penal, deve, contrariamente, ser entendido como um direito de defesa do indivíduo. Contém, na verdade, a liberdade contra a "determinação" que venha de fora (externa) sobre o âmbito (pessoal) sexual. Assim, apesar de a vítima ter menos de 14 anos de idade na data do fato, revela a prova a sua evidente maturidade sexual e liberdade escolha, o que, como já referido, impõe a flexibilização do rigor legal, afastando-se a tipicidade da conduta do apelado”.
E é imbuído desse espírito altaneiro e corajoso que os Tribunais, ao meu singelo sentir, devem, a despeito da orientação emanada do STJ, despir-se dos seus conceitos ortodoxos e conservadores, ousando aplicar o entendimento que mais se coadune com o desenvolvimento social insculpido no espírito da Constituinte.