Recentemente, foram publicadas diversas notícias dando conta da instauração de ação de improbidade administrativa em desfavor de ex-Senador da República e três ex-gestores do sistema penitenciário do DF, por serem supostamente os responsáveis pela realização de reforma no bloco onde o primeiro está preso, na Ala dos Vulneráveis, do complexo penitenciário da “Papuda”, Brasília/DF.
As celas reformadas seriam maiores, com vasos sanitários, chuveiro elétrico, televisão, antena parabólica e ventilador de teto. As supostas regalias seriam ilegais?
A respeito do assunto, a Lei de Execuções Penais (nº 7.210/1984) estabelece:
Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00 m2 (seis metros quadrados).
Nesse sentido, a Constituição da República de 1988, ao arrolar, em seu art. 5º, os direitos e garantias fundamentais titularizados pelos presos, dispôs que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (III) e que não haverá penas cruéis (XLVII, “e”); sendo assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (XLIX).
No âmbito internacional, o tratamento não é diferente. A Organização das Nações Unidas, ao definir as “Regras de Mandela”1, com a participação do Estado brasileiro, sobre as regras mínimas para o tratamento de presos, além de determinar que o encarcerado será tratado com a dignidade inerente ao ser humano, não sendo submetido a tratamento degradante (Regra 1), assim tratou sobre as acomodações nos estabelecimentos penais:
Regra 12
1. As celas ou quartos destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um preso. Se, por razões especiais, tais como superlotação temporária, for necessário que a administração prisional central faça uma exceção à regra, não é recomendável que dois presos sejam alojados em uma mesma cela ou quarto.
(...)
Regra 13
Todas os ambientes de uso dos presos e, em particular, todos os quartos, celas e dormitórios, devem satisfazer as exigências de higiene e saúde, levando‑se em conta as condições climáticas e, particularmente, o conteúdo volumétrico de ar, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.
Regra 14
Em todos os locais onde os presos deverão viver ou trabalhar: (a) As janelas devem ser grandes o suficiente para que os presos possam ler ou trabalhar com luz natural e devem ser construídas de forma a permitir a entrada de ar fresco mesmo quando haja ventilação artificial; (b) Luz artificial deverá ser suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão.
Regra 15
As instalações sanitárias devem ser adequadas para possibilitar que todos os presos façam suas necessidades fisiológicas quando necessário e com higiene e decência.
Regra 16
Devem ser fornecidas instalações adequadas para banho, a fim de que todo preso possa tomar banho, e assim possa ser exigido, na temperatura apropriada ao clima, com a frequência necessária para a higiene geral de acordo com a estação do ano e a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana em clima temperado.
Regra 17
Todos os locais de um estabelecimento prisional frequentados regularmente pelos presos deverão ser sempre mantidos e conservados minuciosamente limpos.
Daí que, o desejo do preso/ser humano – independente de ex-Senador ou quem seja – de estar alocado em cela individual, com área mínima, contendo dormitório, aparelho sanitário e lavatório condignos, com salubridade, higiene e decência, não nos parece ilegal e ilegítimo, mas, em verdade, uma imposição não cumprida, a rigor, pelo próprio Estado brasileiro.
De fato, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347 MC, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em julgamento de 09 de setembro de 2015, reconheceu o “Estado de Coisas Inconstitucionais”, considerando as condições desumanas de custódia, violação massiva de direitos fundamentais e falhas estruturais no sistema carcerário brasileiro.
No ano corrente, ao comentar os massacres de presos ocorridos no Amazonas e em Roraima em janeiro, o Min. Gilmar Mendes insistiu no despreparo e na desarticulação do Estado brasileiro para lidar com a crise do sistema carcerário, in verbis:
Nós temos 360 mil vagas e quase 700 mil presos, uma superlotação. As condições dos presídios são péssimas. (...)
Mendes - Porque, surpreendentemente, esse tema não entrou na agenda política. Esse tema é negligenciado. É tratado topicamente. Quando você fala de segurança pública no Brasil, o sujeito pensa que tem que colocar mais polícia na rua. Claro que tem que colocar mais polícia na rua, mas não é isso que basta. 2
Nós deveríamos discutir essa questão de uma maneira muito aberta e franca para superarmos realmente esse quadro caótico que é o das prisões. Não faz sentido que, num país como o Brasil, nós tenhamos presídios sem as mínimas condições para um tratamento digno das pessoas. Deveríamos chamar a atenção para a responsabilidade de todos os setores.3
Sucessivamente, em 16 fevereiro de 2017, em sede de repercussão geral (RE 580252/MS, relatoria originária do Min. Teori Zavascki, redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes), à unanimidade, o Plenário do STF considerou que o Estado é responsável por danos morais decorrentes da superlotação carcerária. Em seu voto vista, o Min. Celso de Mello foi categórico ao reiterar a precária situação do sistema carcerário brasileiro e a deliberada e permanente omissão estatal:
Há, efetivamente, no Brasil, um claro e indisfarçável “estado de coisas inconstitucional” resultante da omissão do Poder Público em implementar medidas eficazes de ordem estrutural que neutralizem a situação de absurda patologia constitucional gerada, incompreensivelmente, pela inércia do Estado que descumpre a Constituição Federal, que ofende a Lei de Execução Penal e que fere o sentimento de decência dos cidadãos desta República.
O quadro de distorções revelado pelo clamoroso estado de anomalia de nosso sistema penitenciário desfigura, compromete e subverte, de modo grave, a própria função de que se acha impregnada a execução da pena, que se destina – segundo determinação da Lei de Execução Penal – “a proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (art. 1o).
O sentenciado, ao ingressar no sistema prisional, sofre uma punição que a própria Constituição da República proíbe e repudia, pois a omissão estatal na adoção de providências que viabilizem a justa execução da pena cria situações anômalas e lesivas à integridade de direitos fundamentais do condenado, culminando por subtrair ao apenado o direito – de que não pode ser despojado – ao tratamento digno.
Sem embargo disto, quer-nos parecer que ainda há casos em que o Estado brasileiro permanece não somente imiscuindo-se do cumprimento de fazer cessar tal situação, como atuando de maneira que nos leva a crer que o encarceramento em condições humilhantes e degradantes fizesse parte da pena privativa de liberdade, como se celas condignas, ventiladas e higiênicas fossem “regalias”.
Aqui, em nenhum momento se busca defender a criminalidade ou a impunidade. Muito pelo contrário, o transgressor deve sim ser apenado, entretanto, nos termos da legislação brasileira, e nada além.
Eventuais insatisfações com a legislação vigente devem ser debatidas nas vias adequadas – v.g., no Poder Legislativo, como pretende fazer o Ministério Público Federal, com as 10 medidas de combate à corrupção4, no intuito do recrudescimento do ordenamento penal e processual penal brasileiro –, sem deixar de observar, no entanto, o princípio da vedação do retrocesso social, quanto aos mínimos direitos fundamentais alcançados pelos presos. 5
Do contrário, a partir do momento que o Estado pratica o “Direito Penal Subterrâneo”6, ele se iguala à condição do transgressor.
Se o Estado quer defender a legalidade, também deve assim agir, começando por assumir e garantir o cumprimento da Lei de Execuções Penais, da Constituição da República de 1988 e das “Regras de Mandela”, tudo conforme reiteradamente determinado pelo Pretório Excelso.
1 Conselho Nacional de Justiça. Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos. “Regras de Mandela”. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos: < http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/05/39ae8bd2085fdbc4a1b02fa6e3944ba2.pdf >.
2 “A questão não se resolve com construção de presídios”, diz Gilmar Mendes sobre crise penitenciária < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38492779 >.
3 "Há pouco caso da sociedade com sistema carcerário" < http://www.conjur.com.br/2013-dez-08/gilmar-mendes-todos-setores-responsabilidade-questao-carceraria >.
4 http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/
5 “[…] A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS.
– O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive.
– A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculos a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de terná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.”
(ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125).
6 Terminologias e teorias inusitadas / João Biffe Junior, Joaquim Leitão Junior. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017: “ (...) o direito penal subterrâneo é o exercido pelas agências que compõem o sistema punitivo formal do Estado, mas que passam a atuar de forma arbitrária, à margem da lei, contando, muitas vezes, com a complacência dos demais órgãos que compõem o sistema punitivo. Nesta atuação subterrânea, as agências de controle institucionalizam a pena de morte, desaparecimentos, torturas, sequestros, entre outros delitos. Tal fenômeno é uma manifestação da ineficácia dos órgãos estatais e do controle social, já que muitas vezes a população manifesta-se de forma favorável aos abusos cometidos, conferindo legitimidade social a tais atos lamentáveis, vendo naquele que infringe a lei um salvador, um protetor, sob o discurso de que tais pessoas são necessárias para corrigir eventuais injustiças e distorções do sistema. Registre-se que, gradativamente, a concepção social tem mudado, passando a população a demonstrar intolerância com os abusos cometidos.”