Não é a primeira vez que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), faz menção à expressão “rabo abanando o cachorro” acerca de situações que entende refletirem uma quebra na hierarquia ou algo similar. Ele não está se referindo a relações de comando, como entre chefe e subordinado, empregado e empregador ou comandante e comandado. O ministro já fez isso, em sessões do STF e em declarações à imprensa, dirigindo-se a colega magistrado de primeiro grau e à Procuradoria Geral da República.
Em 2 de maio de 2017, o ministro Gilmar usou a expressão ao falar à imprensa sobre uma nova denúncia contra o ex-ministro José Dirceu, que estaria sendo antecipada pelo Ministério Público Federal após a concessão de um habeas corpus. Afirmou que o ato não poderia constituir uma forma de pressão porque isto seria “o rabo abanando o cachorro”. Mais que isso, disse que se fosse assim “o Supremo deixava de ser Supremo”.
Em 28 de junho de 2017, abrindo a sessão do STF que trataria das delações da JBS, Mendes disse outra vez: “O rabo começa a balançar o cachorro, ora bolas...”, fazendo referência aos atos do procurador-geral Rodrigo Janot.
Mais recentemente, em 18 de agosto de 2017, depois de mandar soltar o empresário Jacob Barata Filho, de cuja filha Gilmar foi padrinho de casamento, ele fala aos jornalistas: “Em geral o rabo não abana o cachorro, é o cachorro que abana o rabo”.
Estas falas do ministro por si só o desqualificam como agente público que tem importantes funções institucionais. Exige-se de um ministro da mais alta Corte conduta ilibada, o que compreende lhaneza no trato, discrição, urbanidade, respeito aos pares e às instituições. Mas aqui o problema vai além, muito além.
O ministro Gilmar agride os membros do Ministério Público, ou seus próprios colegas, ou até a advocacia (em 2015 se retirou do plenário por não admitir que um advogado pudesse usar a tribuna). Todavia, a gravidade da expressão “rabo abanando o cachorro” está não na agressão em si, mas na visão de mundo que revela.
Gilmar Mendes demonstra pensar que existe uma hierarquia entre o Supremo Tribunal Federal e o restante da população. Como se qualquer juiz, fora dos limites processuais, tivesse que se submeter às vontades de um ministro. Como se qualquer representante do Ministério Público ou qualquer advogado estivesse um degrau abaixo de qualquer representante da magistratura.
Ele chega a dizer que, se não resistir a pressões, “o Supremo deixaria de ser supremo”, dando à expressão uma conotação que a lei e a Constituição repelem. É preciso entender que vivemos num Estado Democrático de Direito, com uma Constituição Federal que bem ou mal nos dá instrumentos – e, digo mais, dá-nos forças – para manter as instituições funcionando. Isto é o que nos distingue da Venezuela, por exemplo.
De acordo com os princípios constitucionais, não há primazia alguma em relação a pessoas que ocupam cargos públicos. Há, é certo, salvaguardas aos cargos, às autoridades em exercício, no que diz respeito às funções, não às pessoas que as exercem.
Um ministro tem tratamento protocolar específico, tem prerrogativas de segurança, tem foro especial, e presta, certamente, relevante serviço, mas não é nada mais que um gari, por exemplo, que igualmente presta relevante serviço. Não há dúvida da especialidade que se exige para uma e outra função, mas, do ponto de vista constitucional, são igualmente relacionadas com o serviço público. Basta dizer que durante uma sessão do STF um ministro não pode ser interrompido em sua fala, mas do mesmo modo não pode um ministro do STF interromper uma sessão de uma comissão disciplinar municipal qualquer, por exemplo, ou mesmo dar uma ordem a um agente de trânsito, para ficar nas hipóteses mais banais. Um ministro é um agente público, a serviço do país, e ponto.
Aliás, àqueles que honram a toga rendo minhas sinceras homenagens, porque de fato o trabalho é árduo, a tarefa aprisiona e a missão é praticamente um sacerdócio. Gilmar Mendes, contudo, vai na contramão. Verborrágico, protagonista impulsivo, ativista político, o ministro há muito deixou de atender aos requisitos da função. E parece estar muito seguro de que é intocável, por conta das prerrogativas do cargo. Só que tempus fugit.
Em tempo: o Conselho Federal de Medicina Veterinária proíbe a caudectomia estética, ou seja, o corte do rabo do cachorro. Isto é assim para coibir a ação das pessoas que acham que podem fazer o que quiser com o bicho, como se fossem deuses. Na verdade quem faz isso não entende nada de cachorro e de amor aos animais, porque, se entendesse, compreenderia que o valor desta vida está nas coisas simples, quiçá um rabo de cachorro abanando de felicidade.