4. DIREITO PENAL DO INIMIGO X ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.1. O prejudicial discurso da emergência e as medidas excepcionais
Dentre as medidas que são peculiares ao Direito Penal do Inimigo e que surgem para atender ao anseio social e imediatista por punição, têm-se aquelas de caráter penal, como a proliferação de crimes de risco sem lesividade, o aumento da incriminação de atos preparatórios (não se espera que o inimigo aja para poder puni-lo), a agravação das penas (sem proporcionalidade entre o ato e a punição, o que é bem comum no Brasil), e numerosas leis que são denominadas como “de luta” ou “de combate”, a exemplo da Lei de Combate ao Crime Organizado e da Lei de Combate ao Terrorismo.
Nesse contexto, perde-se a essência do Direito Penal, que existe para proteger o cidadão dos excessos do Estado, garantindo a proteção de seus direitos fundamentais (o que ocasionalmente pode ensejar penalidades àqueles que agridem estes direitos); não é meio de combate algum.
O processo penal também fica desestabilizado com o surgimento de institutos incompatíveis com os seus princípios basilares. São estes: as restrições de direitos e garantias processuais ao acusado, normas de direito penitenciário que limitam a concessão de benefícios (a Lei de Crimes Hediondos ampliou os requisitos para a obtenção do livramento condicional), o alargamento dos prazos da prisão preventiva, a ampliação dos prazos de detenção policial para fins investigatórios (a prisão temporária passa para trinta dias na Lei de Crimes Hediondos), a previsão de crimes sem motivo, os métodos especiais de investigação (interceptação telefônica, colaboração premiada e agente infiltrado, por exemplo) e até mesmo o absurdo da inversão do ônus da prova, que é tendência em países europeus. Por meio desta, a acusação exibe um grau probatório mínimo e o réu é que tem que provar que a origem dos bens é lícita, ocorrendo a previsão de ilicitude. Segundo Jakobs,
Os institutos das “penas de suspeita”, “leis de fuga”, escutas indiscriminadas, utilização de agentes disfarçados e muitos outros instrumentos, além da pena para fundação de associação terrorista medida exclusivamente conforme o quantum delitivo contra a ordem pública, esvaziam de conteúdo o direito do cidadão e sua segurança, afastando a vigência real do Direito (JAKOBS, 2008, p. 6)
Até mesmo em tratados internacionais há previsão de medidas extremistas, que se convertem em obrigação para os países que assinam o acordo, visando combater crimes de difícil solução como o terrorismo. O artigo 20 da Convenção de Palermo, por exemplo, dispõe sobre técnicas especiais de investigação:
[...] Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada [...]
A grande questão objeto deste trabalho, que é inclusive suscitada no trecho da Convenção de Palermo acima transcrito, é se essas medidas excepcionais que são tomadas no âmbito do Direito Penal do Inimigo (sendo este uma vertente do expansionismo do Direito Penal em sua terceira velocidade) [9] são constitucionais e observam os princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico. Poderia mesmo o inimigo se “despedir” do contexto social?
4.2. O persistente dilema da legitimação do Direito Penal do Inimigo no marco democrático
O Direito penal atual e especificamente o aplicado contra terroristas tem o objetivo de garantir segurança e não o de manter a vigência do ordenamento jurídico, como se infere da finalidade hodierna da pena e dos tipos penais correspondentes. É o Direito Penal do Inimigo em defesa ao mero risco, é a “luta contra o terrorismo” (termo já utilizado inclusive em leis positivadas), uma empreitada contra inimigos, uma verdadeira “guerra ao terror”.
Alguns podem alegar que “se nosso inimigo não cumpre as regras, devemos adotar o mesmo nível de brutalidade”. No entanto, em nenhuma hipótese devemos abandonar a decência e admitir o colapso do império da lei, a violação dos direitos humanos fundamentais ou dos princípios que regem o Direito Internacional. Além disso, lembra Zaffaroni que nunca na história da humanidade um conflito foi resolvido definitivamente pela violência já que só existem dois tipos de soluções definitivas: o genocídio (arrasa os direitos humanos) ou a negociação (conserva os direitos humanos) (ZAFFARONI, 2007).
Conforme explica Jakobs, um Estado de Direito que abarque a todos não pode conduzir uma guerra ao terror, pois deve tratar seus inimigos também como pessoas (e não como fontes de perigo). Isso inclusive o impede de ser destruído por ataques de seus rivais. O Direito Penal do Inimigo (e o risco como seu fundamento) tem uma força sistemática explosiva e consequências drásticas para o próprio ordenamento jurídico; contamina o Direito Penal do cidadão. E é por isso que o terrorismo nunca tem fim: há uma minimização do Estado, que utiliza a prática outrora proposta por Carl Schmitt de limitar-se em designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência. Assim, o poder mundial impede as negociações e caminha rumo as genocídios. Essa lógica é ainda mais forte onde as experiências de terrorismo de Estado permanecem na memória coletiva, como na Europa e na América Latina (JAKOBS, 2008).
Francisco Muñoz Conde defende que não necessitamos de um Direito especial de guerra ou de um Direito penal internacional (ou nacional) especial para castigar satisfatoriamente os ataques massivos às populações civis; apenas precisamos da aplicação do império da lei, seja no Direito penal interno ou no internacional, resguardando princípios e o essencial reconhecimento dos direitos humanos fundamentais estabelecidos nas constituições democráticas e nas convenções internacionais (CONDE, 2013).
Zaffaroni sugere uma reforma na compreensão do direito penal:
Se, na realidade, o direito penal sempre aceitou o conceito de inimigo e este é incompatível com o Estado de direito, o que na verdade seria adequado a ele seria uma renovação da doutrina penal corretora dos componentes autoritários que a acompanharam ao longo de quase todo o seu percurso [...], um ajuste do direito penal que o compatibilize com a teoria política que corresponde ao Estado constitucional de direito, depurando-o dos componentes próprios do Estado de polícia, incompatíveis com seus princípios. (ZAFFARONI, 2007, p. 25)
Um último alerta a ser feito é que a priorização do valor segurança como certeza acerca da conduta futura de alguém (que é uma das consequências da problemática do terrorismo) causa a despersonalização de toda a sociedade, que hoje tem que andar pelo mundo com a “precisão de movimento do gato doméstico em meio aos cristais” para não lesar o Fisco - por esquecer-se de registrar algum rendimento, por exemplo -, para não ser assaltado, para não comprar livros que possam ser vendidos por terroristas (ZAFFARONI, 2007). Os meios de garantir a segurança acabam sendo um pretexto a mais para legitimar o controle social punitivo e fortalecem a sensação de medo (resultado inverso do desejado).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi exposto, chega-se a uma conclusão a respeito do cenário atual no âmbito do combate ao terrorismo: está configurado e impregnado pela macrocriminalização (as leis antiterror tratam, na verdade, de crimes que já são tipificados pelo ordenamento jurídico, como o crime de ameaça), pela utilização extrema do Direito Penal, que em tese deveria ser mínimo, e pelo surgimento de normas penais diferenciadas para certos indivíduos, como é o caso da aplicação do Direito Penal do Inimigo a todos aqueles considerados suspeitos de terrorismo.
A impunidade para aqueles que efetivamente cometem crime contra a paz pública e causam reais danos aos seus pares não pode vigorar. No entanto, deve ser feita através da otimização de medidas que atendam aos princípios e garantias do Estado Democrático de Direito e aos princípios que regem as relações internacionais.
Percebe-se que o Direito Penal do Inimigo, que é um direito penal de exceção, infelizmente, foi incorporado com normalidade ao ordenamento jurídico mundial e, da forma que hoje é aplicado, visa, teoricamente, atender às expectativas da sociedade, como resposta ao medo e à insegurança generalizada.
Contudo, essa sistemática não funciona: as medidas de combate ao terrorismo são cada vez mais radicais, a intromissão na vida privada das pessoas, em maior ou menor grau, é fato já normalizado em diversos países, as respostas a tamanha repressão penal são cada vez mais agressivas, não há restauração social dos condenados, o ódio cresce e o número de atentados é crescente.
É preciso atentar para o fato de que as consequências da aplicação de um direito penal de exceção nunca são favoráveis. Pelo contrário, são negativamente muito profundas, fomentam o preconceito, a guerra e a segregação entre os povos, e ameaçam a democracia e a convivência justa e sadia no âmbito do Estado de Direito.
Além disso, ao se estabelecer a rotulação do inimigo, que é sempre arbitrária, como o liame de separação entre quem o é ou não se torna muito tênue, acaba que todos nós podemos ser considerados inimigos em potencial, o que põe em jogo garantias e direitos fundamentais que tanto nos são caros, como a liberdade.
A sensação é de absoluta ineficiência do sistema penal, do crescimento do sentimento de insegurança e de falha no combate ao terrorismo, que, diante da forte repressão penal em detrimento de um olhar mais humanitário e inteligente sobre suas causas, hoje amedronta toda a humanidade e faz inúmeras vítimas.
REFERÊNCIAS:
- ANDRADE. André Lozano. Os problemas do direito penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade. Revista Liberdades, n. 17, set/dez. 2014. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/214-Artigos. Acesso em: 29 de julho de 2016.
- BARATTA. Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
- BASSIOUNI. M. Cherif. Terrorismo: o persistente dilema da legitimidade. Revista Liberdades, n.06, janeiro/abrill de 2011 Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=75. Acesso em: 29 de julho de 2016.
- BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11. ed., março de 2007.
- BECCARIA. Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Paulo M. Oliveira. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
- BOFF, Leonardo. O que motivou o 11 de setembro. Disponível em: https://leonardoboff.wordpress.com/2011/09/13/o-que-motivou-o-11-de-setembro/. Acesso em: 15 de outubro de 2016.
- CARVALHO, Rafael Boldt de. Mídia, legislação penal especial e direitos fundamentais. Vitória, 2009.
- CONDE, Francisco Muñoz. Direito na guerra contra o terrorismo: o Direito na guerra, o Direito Penal Internacional e o Direito da guerra dentro do Direito penal interno (Direito Penal do Inimigo). Revista Justiça e Sistema Criminal, v.05, n.09, p. 77-100, jul/dez. 2013.
- COSTA, Antonio Luiz M. C. O mundo vive a era dos bisbilhoteiros: Carta Capital. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/853/a-era-dos-bisbilhoteiros-5357.html. Acesso em: 28 de outubro de 2016.
- FELICIANO, Guilherme Guimarães. O terror e a justiça. Revista dos Tribunais, RT 794/2001, dez. 2001.
- FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
- HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Rosina D’ Angina. 8. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.
- JAKOBS, Günter. ¿Terroristas como personas em derecho?. In: MELIÁ, Manuel Cancio/Gómez-Jara Díez [coord.]. Direcho Penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Vol. 02. Madrid: EDISOFER S.L., 2006.
- JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p.8.
- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
- PRADO. Luiz Regis. Delito político e terrorismo: uma aproximação conceitual. Disponível em: http://www.regisprado.com.br/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Delito%20pol%EDtico%20e%20terrorismo.pdf. Acesso em: 04 de abril de 2016.
- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. In: Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1999.
- SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
- SILVA, Rodrigo Lima e. Mídia e a Influência no Sistema Penal. Rio de Janeiro, 2014.
- ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007 (Coleção Pensamento Criminológico).
- ZAZMIERCZACK. Luiz Fernando. Paradigma punitivo: um diálogo com o Direito Penal do inimigo. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=23ef43a8ba7034f8. Acesso em: 04 de abril de 2016.
Notas
[1] A denominação Direito Penal do Inimigo também é conhecida como direito penal de terceira velocidade, expressão adotada por Silva Sanchez, que significa a punição com base no autor e não no ato praticado. Cada vez mais utilizado, o direito penal de terceira velocidade mescla a pena privativa de liberdade (como o faz o Direito Penal de primeira velocidade) com a permissão de que se flexibilizem garantias materiais e processuais (o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade).
[2] “O infrator era um prisioneiro de sua própria patologia (determinismo biológico), ou de processos causais alheios (determinismo social). Ele era um escravo de sua carga hereditária: um animal selvagem e perigoso, que tinha uma regressão atávica e que, em muitas oportunidades, havia nascido criminoso”. (SHECAIRA, 2013, p. 47).
[3] Artigo 1.º da DUDH: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
[4] Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/16/internacional/1442421306_154702.html. Acesso em 13 de julho de 2016.
[5] Disponível em: https://br.sputniknews.com/mundo/201601203346736-policia-terrorista-menino-muculmano-Reino-Unido/ Acesso em 13 de julho de 2016.
[6] Na manhã de 11 de março de 2004, dias antes das eleições gerais espanholas, ocorreram três explosões coordenadas, quase simultâneas, contra o sistema de trens suburbanos da Cercanías, em Madrid, Espanha. 191 pessoas morreram e 2 050 ficaram feridas.
[7] Base naval norte- americana localizada em Cuba que ocupada um território na faixa de 117 km² e, desde 2001, é utilizada para deter “combatentes inimigos” - denominação dada pelo governo dos EUA -, afastando-se assim, dos direitos garantidos pelas Convenções de Genebra, tratados assinados entre 1864 e 1949. Em Guantánamo estão centenas de prisioneiros, advindos em sua maioria do Afeganistão e do Iraque. Além disso, a ONG Centro para os Direitos Constitucionais informa que existem presos com idades que variam de 13 a 80 anos. (Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Base_Naval_da_Ba%C3%ADa_de_Guant%C3%A1namo. Acesso em 13 de setembro de 2016).
[8] Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2013/11/ato-patriotico-americano-ganha-nova-versao-com-barack-obama-4320844.html. Acesso em 13 de setembro de 2016.
[9] A denominação Direito Penal do Inimigo também é conhecida como direito penal de terceira velocidade, expressão adotada por Silva Sanchez, que significa a punição com base no autor e não no ato praticado. Cada vez mais utilizado, o direito penal de terceira velocidade mescla a pena privativa de liberdade (como o faz o Direito Penal de primeira velocidade) com a permissão de que se flexibilizem garantias materiais e processuais (o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade).