A arbitrariedade da invasão de domicílio como método de obtenção de provas

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O presente estudo visa entender quais os critérios que devem balizar a conduta investigativa que se utiliza da invasão do domicílio do investigado para a obtenção de provas capazes de gerar a incriminação deste.

RESUMO: O presente estudo visa entender quais os critérios que devem balizar a conduta investigativa que se utiliza da invasão do domicílio do investigado para a obtenção de  provas capazes de gerar a incriminação deste, bem como qual a posição dos Tribunais Superiores acerca do tema.

Palavras chave: Busca e apreensão - invasão de domicílio - arbitrariedade policial - princípio da proporcionalidade - encontro fortuito de provas - direito à intimidade                                      


INTRODUÇÃO

            Vivemos hodiernamente um período caótico tanto no aspecto social quanto no econômico, situação que nos faz refletir acerca das reais bases que sustentam o nosso ordenamento jurídico.

            Em um passado recente, o país foi palco de inúmeras atrocidades no que se refere à violação de direitos humanos, mormente durante o período da Ditadura Militar, no qual ações subumanas, tais como a tortura e a invasão ilegal de domicílio, eram legitimadas e protegidas pelo sistema legal da época.

            Após o aludido período, entramos em uma "democracia" extremamente fragilizada, marcada por um processo de corrupção sistêmico e repulsivo, situação que gera uma total instabilidade social. Destarte, o Estado atual não goza de prestígio perante seus cidadãos, o que estimula, em muitos casos, o pensamento de que faz-se necessário um regime de governo rígido, capaz de reprimir toda a desordem social, em um modelo tal como o período ditatorial antecedente. Neste diapasão, verifica-se a ascensão de vários "revolucionários" no cenário político, os quais prometem instituir os ditos sistemas repressores de controle dos atos ilegais.

          Diante de tal situação, verifica-se nos noticiários, quase diariamente, inúmeros casos que rememoram o passado histórico ditatorial, sendo, exemplo comum, a invasão de domicílio em situações não permitidas constitucionalmente.

            Nesta senda, o presente artigo visa esclarecer as bases que devem nortear a busca das provas processuais em domicílio, bem como pretende ressaltar os princípios constitucionais que não devem ser esquecidos pelos órgãos policiais em tais situações.   


CONCEITO DE CASA

            O conceito de "casa" é extraído pela doutrina e pela jurisprudência do artigo 150, §4º, do Código Penal. A expressão compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva, ainda que se destine à permanência por poucas horas; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

            Destarte, percebe-se nitidamente que encontram-se inseridos dentro do conceito de "casa" não somente a casa ou habitação, mas também o escritório de advocacia, o consultório médico, o quarto de hotel, o quarto de hospital, entre outros casos.

            Por fim, resta dizer que os veículos também poderão ser considerados como "casa" dos indivíduos no caso de se prestarem ao fim de habitação, sendo exemplos os trailers e as cabines de caminhão.       


PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO DOMICÍLIO

            Consoante expõe o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal, "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".

            Conforme texto do referido dispositivo constitucional, resta evidente que existem hipóteses permissivas da invasão de domicílio, mesmo sem o consentimento do morador, quais sejam:

            - Flagrante delito ou desastre;

            - Para prestar socorro;

            - Durante o dia, por determinação judicial.

            Neste lume, imperioso destacar que as duas primeiras hipóteses podem ocorrer tanto durante o dia, quanto durante a noite.

            O conceito de dia é divergente na doutrina. Vale destacar a posição de José Afonso da Silva, o qual entende que dia é o período compreendido entre 6:00 horas e 18:00. Contudo, na jurisprudência, prevalece o critério físico-astronômico, considerando como dia o período compreendido entre o nascimento (aurora) e o pôr do sol (crepúsculo).

            Imperioso destacar que, iniciado o cumprimento de uma busca domiciliar no interior da casa durante o dia, é possível que a diligência perdure durante o período da noite, quando o adiamento prejudicar o ato ou causar grave dano à diligência.

            Por fim, vale mencionar que o Supremo Tribunal Federal entende ser válida a instalação de escuta telefônica à noite em escritório de advocacia, uma vez que, neste período, o local não estaria habitado, o que prejudicaria a sua inclusão dentro do conceito de "casa", explanado anteriormente neste artigo.


MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO

            Nos termos do artigo 243 do Código de Processo Penal, temos que o mandado de busca e apreensão deverá indicar o mais precisamente possível a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador.

            Ainda, o aludido dispositivo expõe que o motivo e os fins da diligência devem ser mencionados no mandado, bem como que este deve ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade competente.

            Assim sendo, percebe-se que o mandado não pode ter conteúdo genérico, sendo imprescindível a especificação do indivíduo e do local que serão alvos da conduta estatal invasiva.

            Vale trazer à baila um caso concreto envolvendo o cumprimento de mandado de busca que teria como alvo o endereço profissional de investigado localizado no 28º andar de determinado andar. A 2º Turma do Supremo Tribunal Federal concluiu ser ilegal a apreensão de equipamentos de informática no endereço de instituição financeira localizada no 3º andar, uma vez que inexistia mandado judicial para esta localidade.

            Neste lume, verifica-se uma série de requisitos formais que balizam a conduta policial e asseguram o respeito ao princípio constitucional da intimidade (artigo 5º, X, CF/88), o qual somente pode ser violado em hipóteses predeterminadas e com as devidas formalidades, de modo a resguardar o cidadão de condutas arbitrárias.     


CASO JULGADO PELA 6ª TURMA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (INFORMATIVO 606)

            De acordo com o Informativo 606 do Superior Tribunal de Justiça, a 6ª Turma decidiu que o ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior da residência.

            Ademais, foi ressaltado que a mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.

            Para entender melhor o caso concreto que foi analisado pela Suprema Corte, vale trazer o teor do artigo 33 da Lei 11343/06, in verbis:

            Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

            Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

            Nesta senda, tem-se que no caso de flagrante do delito de tráfico de drogas, conforme explanado anteriormente, pode o policial ingressar no domicílio de um indivíduo, mesmo sem o seu consentimento.

            Ainda, importante dizer que, mesmo sem mandado, poderá ocorrer o ingresso na casa de um indivíduo se existirem "fundadas suspeitas" de que naquele local está sendo cometido o crime de tráfico de entorpecentes.

            Contudo, o que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça repudiou foi a mera "intuição" dos policiais de que determinado indivíduo exercia a mercancia de drogas como sendo o principal motivo para o ingresso em seu domicílio. Conforme bem esclarecido no referido julgado, pode-se utilizar de tal argumentação para uma eventual abordagem em via pública, mas nunca para autorizar o ingresso na "casa" de uma pessoa, local constitucionalmente protegido e guardião da intimidade do ser humano.

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            Com isso, tendo por base a Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada, expressa no artigo 5º, LVI, da Constituição de 1988, o Superior Tribunal de Justiça decidiu serem nulas as provas obtidas pela invasão ilegal de domicílio pelos policiais, mesmo que, de fato, evidenciassem a prática do tráfico de drogas. No caso concreto, foram encontradas dezoito pedras de crack em posse do indivíduo "investigado".

             Destarte, agiu bem o Tribunal da Cidadania ao entender que a busca da verdade não pode ferir de morte princípios constitucionais, tais como o devido processo legal e contraditório. Por mais que seja repugnante a mercancia de drogas, não há como tornar lícitas condutas arbitrárias, sob pena de voltarmos há um tempo em que os direitos individuais eram simplesmente descartados sob a justificativa simplista da "ordem e progresso".       


CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE

            A conduta de policiais que não respeitam os ditames constitucionais acerca da inviolabilidade domiciliar podem dar azo ao crime de abuso de autoridade, expresso na Lei 4.898/65.

            Nos termos do artigo 3º, "b", da Lei 4.898/65, temos que:

            "Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

            b) à inviolabilidade de domicílio;".

            O abuso de autoridade sujeitará o autor a uma sanção administrativa, civil e penal (artigo 6º).

            No âmbito administrativo, o agente poderá ser sancionado com advertência, repreensão, suspensão do cargo, função ou posto por prazo de cinco a cento e oitenta dias, destituição de função, demissão e demissão a bem do serviço público (artigo 6º, §1º).

            No âmbito civil, a vítima do abuso de autoridade deverá, através de um advogado, devidamente constituído, ajuizar a ação de indenização contra a autoridade acusada de abuso ou, também, contra a pessoa jurídica de direito público em relação à qual a autoridade está vinculada, ou mesmo contra ambos (artigo 6º, §2º).

            No âmbito penal, tal atentado poderá ser sancionado com detenção de dez dias a seis meses, bem como poderá gerar a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos (artigo 6º, §3º).

            Ademais, imperioso destacar que quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma ou acessória de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no Município da culpa, por prazo de um a cinco anos (artigo 6º, §5º).

            Vale dizer, a título de complemento, que tal crime é de menor potencial ofensivo, devendo ser julgado pelos Juizados Especiais Criminais Federais ou Estaduais. Ainda, importante mencionar que o abuso de autoridade praticado por policial militar deverá ser julgado pelo Juizado Especial Criminal, uma vez que tal delito não é configura crime militar.           


CONCLUSÃO

Ante os argumentos acima articulados, afigura-se que não há como tolerar que em um verdadeiro Estado Democrático de Direito seja validada qualquer conduta que despreze os direitos fundamentais propostos pela Carta Constitucional. Não há como tolerar que barbáries sejam cometidas sob o argumento simplório de intolerância com a desordem. É preciso conciliar a busca pela paz social com mecanismos capazes de fornecê-la, sem invadir ilegalmente os valores mais prezados pelas pessoas que integram a sociedade. Assim, caminharemos para um futuro promissor, sem olhar para trás com saudade de tempos inglórios.         


 REFERÊNCIAS

          LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm.

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Viana Cavalcanti

Advogado civilista e criminalista. Graduado pela Faculdade de Direito Milton Campos e pós-graduado pela Faculdade Damásio em Direito Processual Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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