1 INTRODUÇÃO
O presente artigo visa discutir a inconstitucionalidade da separação de processos penais nos crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de agentes, em que um dos agentes possua foro privilegiado, através da análise dos diversos manuais de processo penal e da jurisprudência.
O objeto do presente trabalho é causa de assíduas discussões doutrinárias e jurisprudenciais entre aqueles que defendem a cisão dos processos, em razão da garantia do Tribunal do Júri possuir respaldo constitucional e a lei que estabelece a conexão e continência ser uma norma infraconstitucional, razão pela qual não poderia prevalecer.
Por outro lado, outros juristas entendem que não deve haver a cisão dos processos em razão da regra da continência e conexão. A presente monografia pretende aumentar o campo de discussão através de uma análise mais pormenorizada do assunto com enfoque principalmente na garantia do Tribunal do Júri, no princípio do Juiz Natural, da Isonomia, da Uniformidade das Decisões Judiciais e o princípio hermenêutico da ponderação.
2 PRINCÍPIOS E REGRAS DO PROCESSO PENAL
O artigo irá discutir a inconstitucionalidade ou constitucionalidade da cisão dos julgamentos dos processos penais dos crimes cometidos em concurso de agentes, em que um dos participantes goze de foro por prerrogativa de função.
Antes de adentrarmos a discussão propriamente dita, delimitaremos alguns pontos indispensáveis ao deslinde da questão como os princípios do Juiz Natural, da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais, a garantia do Tribunal do Júri, as definições de competência, conexão e continência, além de regras de interpretação da Constituição em caso de conflitos de princípios constitucionais.
Um dos princípios que norteiam o devido processo penal é o Princípio do Juiz Natural que consiste segundo Eugênio Pacelli, em duas vertentes fundamentais, a da vedação do tribunal de exceção e a do juiz cuja competência seja definida anteriormente á prática do fato de modo a garantir a imparcialidade do magistrado.
O Princípio do Juiz Natural é uma garantia individual de todo aquele que sofre uma persecução penal de ter um julgador previamente constituído e imparcial, sendo tal princípio assegurado constitucionalmente e definido pelo STF nos seguintes termos:
O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível, assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando instaurada perante a Justiça Militar da União. (...). O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004). No mesmo sentido: HC 79.865, DJ 06/04/2001.(BRASIL, 2004a)
No que concerne ainda ao princípio do juiz natural a súmula 704 do STF, explicitou o entendimento, segundo o qual, não existe afronta a garantia do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou por conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de uns dos acusados.
A delimitação de qual órgão detém a competência na esfera penal é de extrema importância para garantir que não existam entre nós os chamados tribunais de exceção, que não passavam de meras encenações aptas a legitimar uma decisão preexistente.
Como meio de efetivação do Princípio do Juiz Natural o poder judiciário foi objeto de repartição de competência. A competência é definida pela doutrina como a delimitação da medida da jurisdição, assim sendo, a competência se consubstancia na distribuição de parcelas da jurisdição de modo a garantir a existência de um órgão investido de jurisdição prévio e imparcial para o julgamento do fato, efetivando assim o direito fundamental ao devido processo legal reunido sob a proteção de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente." (art.5°, LIII, CF) (BRASIL, 2016). Vicente Greco Filho em seu livro apresenta um conceito de competência, nos seguintes termos:
É o poder de fazer atuar a jurisdição que tem um órgão jurisdicional diante de um caso concreto. Decorre esse poder de uma delimitação prévia, constitucional e legal, estabelecida segundo critérios de especialização da justiça, distribuição territorial e divisão de serviço. A exigência dessa distribuição decorre da evidente impossibilidade de um juiz único decidir toda a massa de lides existente no universo e, também, da necessidade de que as lides sejam decididas pelo órgão jurisdicional adequado, mais apto a melhor resolvê-las. (GRECO, 2012, p. 157)
O jurista Aury Lopes Júnior ensina que a competência além de limitar o poder garante a efetivação do devido processo legal sendo, portanto, indispensável à efetivação da garantia da jurisdição. Veja:
A competência, ao mesmo tempo em que limita o poder, cria condições de eficácia para a garantia da jurisdição (juiz natural e imparcial). Como explica TAORMINA, a disciplina da competência deriva do fato de que a jurisdição penal ordinária se articula em uma multiplicidade de órgãos, devendo se verificar a repartição das tarefas judiciárias. Resultaria extremamente perigoso se não fossem previstos rígidos mecanismos de identificação prévia do juiz competente, pois, antes de tudo, está a garantia da precostituzione per legge del giudice que deverá ser prima del fatto commesso. A competência impõe severos limites ao poder jurisdicional (es la medida de la jurisdicción, sintetiza LEONE e, por sua vez, está estreitamente disciplinada por regras que, em última análise, asseguram a própria qualidade e legitimidade da jurisdição. Ao final de tudo, está a garantia de ter um juiz natural, imparcial e cuja competência está claramente definida por lei anterior ao fato criminoso. (LOPES JÚNIOR, 2016, p. 258)
No que concerne à competência por prerrogativa de função trata-se de um foro especial concedido pela Constituição a certas pessoas em função do exercício de certos cargos, sendo previsto no Brasil desde a primeira Constituição brasileira em 1824.
O foro privilegiado, embora seja conhecido por esse nome não é um privilégio concedido a determinadas pessoas, o que violaria o princípio da Isonomia, mas uma garantia, para que essas pessoas que ocupam certas funções sejam julgadas por órgãos menos sujeitos a pressões externas. Veja a lição de Tourinho Filho:
Não se trata (...) de um privilégio, o que seria odioso, mas de uma garantia, de elementar cautela, para amparar, a um só tempo, o responsável e a Justiça, evitando, por exemplo, a subversão da hierarquia, e para cercar o seu processo e julgamento de especiais garantias, protegendo-os contra eventuais pressões que os supostos responsáveis pudessem exercer sobre os órgãos jurisdicionais inferiores. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 180)
O referido doutrinador ressalta ainda que a garantia do foro por prerrogativa de função não é concedido à pessoa, mas em atenção à importância ou relevância do cargo ou função que exerça e enquanto perdurar o exercício de tal função, que uma vez cessada, acaba o foro por prerrogativa de função devendo os autos retornarem ao juiz competente. Veja:
Não é concedido à pessoa, mas lhe é dispensado em atenção à importância do cargo ou função que exerça. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 180)
Com o foro por prerrogativa de função busca-se garantir que as pessoas ocupantes de certas funções de relevância nacional possam, quando acusadas da pratica de alguma infração penal, ter o devido processo penal, atribuindo os julgamentos de tais pessoas a órgãos sujeitos a menos pressões externas e cujas decisões são passíveis de um maior controle de sua legalidade, pois em todos os casos de foro privilegiado haverá o julgamento pelos tribunais onde vigora o princípio do Livre Convencimento Motivado. Veja a lição de Eugênio Pacelli:
Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (PACELLI, 2015, p. 203-204)
As regras de conexão e continência, por sua vez, não são critérios de fixação de competência, mas sim de alteração de competência. A conexão de crimes ocorre quando dois ou mais delitos estiverem ligados por um vínculo que aconselhe a união dos processos, tudo para que o julgador possua uma perfeita visão do quadro probatório, como modo de evitar decisões conflitantes e de economia processual. Veja o ensinamento de Paulo Rangel:
O importante é saber que tanto em uma hipótese como em outra (conexão ou continência) haverá um só processo e julgamento, pois por economia processual e diante da possibilidade de julgamentos conflitantes o efeito primordial da conexão e da continência é a unidade de processo e julgamento (cf. art. 79 do CPP). (RANGEL, 2016, p. 372)
O artigo 77, I do CPP por sua vez estabelece que a continência ocorre quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração. (BRASIL, 2016, p. 619).
Porém há outros casos como o concurso formal de crimes art. 70 do CP, a aberractio ictus do art. 73 do CP e a aberratio criminis do art. 74 do CP (BRASIL, 2106, p. 534-535), conforme o disposto no art. 77, II do CPP. (BRASIL, 2016, p. 619)
Enfrentadas as questões preliminares necessárias à compreensão das questões aqui colocadas, adentraremos à questão principal do presente trabalho, qual seja, a inconstitucionalidade da separação de processos nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida, quando um dos coautores goze de foro privilegiado.
3 A DISCUSSÃO SOBRE A CISÃO DE PROCESSOS PENAIS
No HC 69.325/GO surgiu uma discussão sobre a separação obrigatória de processos penais, nos crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de pessoas, em que um dos coautores possua foro privilegiado e, em que ambos são acusados de um único e mesmo fato.
A discussão em comento surgiu em virtude do suposto cometimento do crime de homicídio qualificado por João Felipe, a época Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás, em coautoria com seu filho, pois a Corte Especial do STJ afirmou sua competência para processar e julgar o filho do conselheiro por força da regra da continência.
O acusado impretou habeas corpus ao STF, sustentando, em suma, que o STJ ao estender sua competência ao corréu, violou dispositivos constitucionais dentre os quais a Garantia do Tribunal do Júri e o Princípio do Devido Processo Legal.
O STF decidiu no presente caso, HC 69325/GO (BRASIL, 1992a), pela separação obrigatória de processos em razão da regra constitucional que instituiu como garantia individual o julgamento pelo Tribunal do Júri nos crimes dolosos contra a vida, o que segundo esse acórdão do STF deve prevalecer sobre a regra instrumental que institui as regras de conexão e continência previstas na lei ordinária. Veja o referido acórdão:
Competência - crime doloso contra a vida - co-autoria - prerrogativa de foro de um dos acusados - inexistência de atração - prevalência do juiz natural - tribunal do júri - separação dos processos.1. A competência do tribunal do júri não e absoluta. Afasta-a a própria constituição federal, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o estado, a competência de tribunais - artigos 29, inciso viii; 96, inciso iii; 108, inciso i, alínea a; 105, inciso i, alínea a e 102, inciso i, alínea b e c. 2. A conexão e a continência - artigos 76 e 77 do código de processo penal - não consubstanciam formas de fixação da competência, mas de alteração, sendo que nem sempre resultam na unidade de julgamentos - artigos 79, incisos i, ii e parágrafos 1. E 2. E 80 do código de processo penal. 3. O envolvimento de co-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro como tal definida constitucionalmente, não afasta, quanto ao outro, o juiz natural revelado pela alínea d do inciso xxxviii do artigo 5. Da carta federal. A continência, porque disciplinada mediante normas de índole instrumental comum, não e conducente, no caso, a reunião dos processos. A atuação de órgãos diversos integrantes do judiciário, com duplicidade de julgamento, decorre do próprio texto constitucional, isto por não se lhe poder sobrepor preceito de natureza estritamente legal. 4. Envolvidos em crime doloso contra a vida conselheiro de tribunal de contas de município e cidadão comum, biparte-se a competência, processando e julgando o primeiro o superior tribunal de justiça e o segundo o tribunal do júri. Conflito aparente entre as normas dos artigos 5., inciso xxxviii, alínea d,105,inciso i, alínea a da lei básica federal e 76, 77 e 78do Código de Processo Penal. 5. A avocação do processo relativo ao co-réu despojado da prerrogativa de foro, elidindo o crivo do juiz natural que lhe e assegurado, implica constrangimento ilegal, corrigível na via do habeas-corpus. (Habeas Corpus 69325/GO, julgamento em 17 de junho de 1992, publicado no DJ em 04 de dezembro de 1992, BRASIL, 1992b)
Todavia não se trata de uma questão pacífica, pois o mesmo STF já decidiu em momento posterior, ao acórdão acima referido, que haveria a atração dos processos por força do princípio da conexão. Veja o HC 83.583/PE:
COMPETÊNCIA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. ATRAÇÃO POR CONEXÃO DO CORRÉU AO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. 1. Tendo em vista que um dos denunciados por crime doloso contra a vida é desembargador, detentor de foro por prerrogativa de função (CF, art. 105, I, a), todos os demais coautores serão processados e julgados perante o Superior Tribunal de Justiça, por força do princípio da conexão. Incidência da Súmula 704/STF. A competência do Tribunal do Júri é mitigada pela própria Carta da República. Precedentes. 2. HC indeferido. (Habeas Corpus 83.583/PE, julgamento em 20 de abril de 2004, publicado no DJ em 07 de maio de 2004, BRASIL, 2004c)
Nesse contexto, Eugênio Pacelli diz concordar com a decisão do STF proferida no HC 69325/GO, mas que a fundamentação merece maior extensão e profundidade, pois segundo ele a jurisdição exercida pelo Conselho de Sentença é uma jurisdição popular em que o agente é julgado pelos seus pares e por essa razão deve prevalecer a cisão de processos. Veja:
A solução, a nosso aviso, passa pelo reconhecimento de uma jurisdição absolutamente singular, que é exercida pelo Tribunal do Júri. Ao contrário das demais, eminentemente técnicas, pode-se afirmar que a jurisdição exercida pelo Conselho de Sentença é, na realidade, uma jurisdição popular, em que um homem é julgado pelos seus pares. Por essa razão preponderante, e não por uma necessidade de afirmação da prevalência do juiz natural, é que entendemos conveniente e mesmo necessária a separação dos processos, ainda que haja prejuízo para a unidade e coerência das decisões judiciais. (PACELLI, 2015, p. 228).
No mesmo sentido Fernando da Costa Tourinho Filho defende a cisão obrigatória de processos, pois não há na Constituição permissivo legal para que os tribunais julguem outras pessoas além da enumeradas em seus artigos, não podendo a lei ordinária alterar a competência constitucionalmente outorgada, embora ressalte que a decisão talvez não seja a mais justa diante dos possíveis inconvenientes. Veja a posição do ilustre jurista:
E se houver conexão ou continência envolvendo pessoas que devam ser processadas e julgadas pelo STF, ou STJ, ou Tribunal Regional Federal, e outras não elencadas nos arts. 102, 105 e 108 da CF? A competência desses Tribunais vem fixada na Lei Maior. Como nesta não existe nenhuma regra explícita, ou implícita, permitindo-lhes o julgamento de outras pessoas além daquelas ali elencadas, e não podendo a lei ordinária alterar-lhes a competência, segue-se deva haver a disjunção dos processos. Na verdade, se a Constituição não permite a esses Tribunais o julgamento de outras pessoas, como poderia ocorrer o simultaneus processus? Não se pode alterar a competência por prerrogativa de foro fixada na Constituição a não ser por meio de emenda constitucional. É possível que a Supremo Tribunal Federal solução não seja justa, em face das inconveniências resultantes da cisão dos processos; contudo é legal, e, além do mais, parece-nos um não senso dar ao texto constitucional interpretação extensiva... Malgrado a observação o STF decidiu em sentido contrário (cf. RTJ, 84/713). Assim também no inquérito n. 184-8/DF, envolvendo um Deputado Federal e outra pessoa sem foro privativo. Vejam-se, ainda, as v. decisões publicadas na RTJ, 51/1, 112/964, 114/1022, 102/1; RDA, 162/159; RTFR, 102/361, 102/295; DJU, 23-6-1981, p. 6128; DJU, 27-8-1981, p. 8188; DJU, 14-10-1982, p. 10359; Inquérito n. 11/RJ, DJU, 25—9-1986. E tantas forma suas decisões nesse sentido que se cristalizaram na Súmula 704: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. Se assim procedeu a Suprema Corte, fê-lo por entender que a disjunção dos processos poderia acarretar decisões antagônicas com reflexos bem acentuados na seriedade da Justiça. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 271-272).
O jurista Aury Lopes também concorda com a decisão proferida pelo STF no HC 69325/GO, pois segundo ele a regra de conexão é prevista em lei ordinária não podendo prevalecer sobre a competência constitucional do Júri, embora reconheça que a questão não se encontra pacificada. Veja:
O STF, no HC 69325-3/GO, decidiu que se um particular praticar um crime de competência do Tribunal do Júri, juntamente com alguém que tenha prerrogativa de foro, haverá́ uma cisão processual. Por exemplo: se um particular comete um crime doloso contra a vida, a mando de um juiz de direito, haverá́ uma continência, nos termos do art. 77, I, do CPP. A prerrogativa do juiz de ser julgado pelo Tribunal de Justiça do seu estado é constitucional, como também o é a do Júri. Contudo, havendo essa igualdade de tratamento constitucional, prevalece a competência do TJ por ser o Tribunal um órgão de jurisdição superior (art. 78, III, do CPP). Então, o juiz será́ julgado no TJ. E o particular? Haverá́ uma cisão, sendo ele julgado pelo Tribunal do Júri. Isso porque a regra da conexão decorre de lei ordinária, que não pode prevalecer sobre a competência do Júri, que é constitucional. Mas a matéria não é pacifica, e o STF também já decidiu que valem as regras da conexão mesmo em se tratando de crime de competência do Júri, e que todos os agentes devem ser julgados no tribunal daquele que ostenta a prerrogativa de foro. (LOPES JÚNIOR, 2016, p.304)
Em sentido contrário, a decisão proferida pelo STF, Fernando Capez defende que deveria haver a reunião de processos penais com a prevalência do órgão de maior jurisdição o que não ofenderia o princípio do Juiz Natural, conforme a súmula 704 do STF. Veja um excerto retirado da obra do referido autor:
Na hipótese de crime cometido por juiz de direito em concurso com outros agentes que não gozam de foro privilegiado, ao Tribunal de Justiça com competência para julgar o magistrado, nos termos do art. 98, III, da CF, incumbirá julgar os demais acusados, tendo em vista os princípios da conexão e da continência e em razão da jurisdição de maior graduação, ante o disposto no art. 78, III, do CPP (STF, HC 74.573-RJ, 2a Turma, rel. Min. Carlos Velloso). Tal entendimento está consubstanciado na Súmula 704 do STF, segundo a qual: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. (CAPEZ, 2015, p. 115-116).
O doutrinador Paulo Rangel também é contrário à cisão do julgamento dos processos penais sob o fundamento que poderia haver decisões conflitantes e nesse caso acarretaria a perda da credibilidade do Poder Judiciário.
O referido autor acrescenta que não convence a tese que o Tribunal do Júri tem previsão constitucional e por isso deve haver a separação dos processos, pois segundo ele, tanto a competência do Tribunal do Júri quanto a do Tribunal de Justiça são constitucionais, porém a do Tribunal de Justiça é de maior grau de jurisdição, aplicando a regra processual do art. 78, III, do CPP. Veja a lição de Paulo Rangel:
Pode acontecer, ainda, de um magistrado cometer um crime doloso contra a vida em concurso com uma pessoa, digamos Tício, que não tenha prerrogativa de função. Nesse caso, a regra seria o magistrado ser julgado pelo Tribunal de Justiça e Tício ser julgado pelo Tribunal do Júri. Porém, como há continência (cf. art. 77, I, do CPP), ou seja, o magistrado e Tício serão acusados pela mesma infração, e o efeito da continência é a unidade de processo e julgamento (cf. art. 79 do CPP), prevalecerá a competência do Tribunal de Justiça, por força do art. 78, III, do CPP. Não se diga que a competência do Tribunal do Júri é constitucional e por isso devesse haver separação do processo. Não. Ambas são constitucionais, porém a do Tribunal de Justiça é de maior grau de jurisdição, aplicando-se a regra, processual, do art. 78, III, do CPP. Assim, evitaremos decisões conflitantes, pois pode acontecer de o juiz ser absolvido e Tício condenado, ou vice-versa, e, nesse caso, a sociedade ficaria desacreditada. Nada impede que no julgamento pelo Tribunal de Justiça isso possa acontecer, porém será pelo mesmo órgão jurisdicional. Deve-se levar em linha de conta, ainda, que o principal efeito da continência é a unidade de processo e julgamento. O mestre Frederico Marques ensina, quanto à conexão, que: É que a conexão, além de contribuir para a economia processual, evita decisões divergentes ou contraditórias, e, por possibilitar uma visão mais completa dos fatos e da causa, constitui fator de melhor aplicação jurisdicional do direito (MARQUES, Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Millennium, 2000. p. 363). Há quem defenda que o júri é direito e garantia individual que não pode ser negado a Tício, e, portanto, a separação do processo seria inevitável. Discordamos dessa tese. Para nós, ambos devem ser levados ao Tribunal de Justiça. (RANGEL, 2011, p. 382)
Ante o exposto, verifica-se que a matéria ainda se encontra controvertida com posições doutrinárias e jurisprudências contrárias e favoráveis a referida cisão no julgamento dos processos penais, sobretudo pelo conflito de princípios de envergadura constitucional, prevalecendo a tese da cisão obrigatória dos processos penais, embora os defensores de tal tese reconheçam os inconvenientes da referida separação dos julgamentos dos processos.