MP do Maranhão aponta a necessária atuação conjunta de profissionais do direito das varas de família, infância e violência doméstica de um mesmo conflito raiz

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Estudo de caso do parecer do Ministério Público do Maranhão, nos autos do Processo nº 11.437-60.2015.8.10.0001. A proposta visa a explorar a necessidade de atuação afinada de operadores do Direito em conflitos advindos de uma mesma raiz.

INTRODUÇÃO

Observa-se a complexidade da relação agressor-agredida em todos os tipos de violência, mas em especial no que tange à violência psicológica e ou moral, fortemente atrelada às demais modalidades de violência ou mesmo considerada a porta de entrada para o início das demais modalidades de violação de direitos de mulheres (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007, p. 99).

Intensamente articulada às relações de poder criadas pelas assujeitações dos indivíduos e pelos consequentes papeis sociais que passam a ocupar, é a violência doméstica e familiar a mulheres uma expressão de violência pautada no gênero, representativa de quão imbrincado e naturalizado na e pela sociedade está o sentimento de posse e controle do masculino em relação ao feminino. (SAFFIOTI, 2004, p. 71)

Não raro, nas complexas relações advindas da conjugalidade, surgem conflitos cujas demandas irradiar-se-ão para uma variedade de especialidades no Poder Judiciário, exigindo dos profissionais de cada uma delas não apenas conhecimentos transdisciplinares, como também a percepção de interligação das causas a um mesmo conflito raiz.

É nesse sentido que se utilizou como estratégia de pesquisa para a proposição do presente estudo a análise do Parecer do Ministério Público do Maranhão nos autos do Processo nº 11437-60.2015.8.100001 – Ação de Cumprimento de Ação de Fazer e Obrigação de Não Fazer –, no qual, diante do descumprimento de acordo homologado no Processo nº 30722.10.2013.8.10.0001, em que o executado comprometera-se a uma série de responsabilidades parentais às quais vinha descumprindo, o Ministério Público entendeu, consubstanciada a violência psicológica contra a filha de ambas as partes, proferida em sentença de mérito exarada pela Vara Especializada em Violência Doméstica de São Luís-MA, pugnar pela inserção do agressor em grupo reflexivo de responsabilização e reeducação, prevista no artigo 45 da Lei Maria da Penha.


1 DA IMPORTÂNCIA E DA PERICULOSIDADE DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA COMO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A Organização Mundial de Saúde define violência como uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática contra si, outrem, um grupo ou comunidade, resultando em “[...]sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação.” (DAHLBERG; KRUG, 2007, p. 1.165).

Perceba-se que o uso da expressão “poder”, na definição da Organização Mundial de Saúde, é revelador quanto à potencialidade da violência em relações de assimetria social, quando uma das partes se vê vulnerabilizada, tal qual ocorre nos casos de violência pautados no gênero.

Prevê o artigo 7º da Lei nº 11.340/2006, Maria da Penha, dentre as formas de violência doméstica e familiar, as modalidades física, sexual, patrimonial, moral e psicológica. Esta última é compreendida como qualquer conduta que cause dano emocional ou diminuição da autoestima da vítima, prejudicando seu pleno desenvolvimento ou degradando suas ações.

Sua inserção no plano da violência doméstica e familiar é de extrema importância, uma vez que, para além de sua alta incidência – representando 31,10% das denúncias de violência à Central de Atendimento à Mulher no primeiro semestre de 2016 (COMPROMISSO E ATITUDE, 2017, p.1), é a mais frequente entre as jurisdicionadas da Vara Especializada em Violência Doméstica de São Luís-MA (2016, p. 24), locus do presente estudo de caso.

A prática da violência psicológica ainda é invisibilizada e minimizada no Sistema de Justiça, ainda atrelada a arraigadas concepções patriarcais da sociedade em que os sujeitos estão inseridos, incluindo-se os operadores do direito.

Destaque-se que, em modalidade doméstica e ou intrafamiliar, a violência psicológica ocorre de modo cíclico, repetitivo e cronificado, comprometendo a autoestima e poder de reação da vítima, visando predominantemente seu controle, constrangimento e humilhação.

Outra dificuldade em se lidar com a violência doméstica na modalidade psicológica é que, conforme apontam estudos na área, esta geralmente se vê interseccionada pelas demais modalidades (SCHRAIBER et al, 2007, p. 802), sendo, portanto, subnotificada quando ocorre de modo exclusivo ou ignorada quando complementada por outra violência menos naturalizada.

No presente estudo de caso, percebeu-se uma prática duplicada de violência psicológica. O Parecer do Ministério Público do Maranhão, analisado nos autos da Ação de Cumprimento de Obrigação de Fazer e Obrigação de Não Fazer, Processo nº 11.437-60.2015.8.10.0001, refere-se à intenção da exequente em ver cumprido o acordo homologado nos autos do Processo nº 30722.10.2013.8.10001 pelo executado, nomeadamente em relação a algumas responsabilidades parentais deste em relação à filha de ambas as partes.

No mesmo parecer, a promotora de Justiça, MARUSCHKA DE MELLO E SILVA BRAHUNA, evidencia o reconhecimento da prática de violência doméstica psicológica por parte do exequente em relação à filha de ambas as partes, nos autos do Processo nº 140-53.2015.8.10.0002, sentenciado na Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de São Luís-Maranhão.


2 ESTUDO DE CASO: ATUAÇÃO CONJUNTA DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO EM DEMANDAS ADVINDAS DE UM MESMO CONFLITO RAIZ

As demandas levadas às varas de família são indubitavelmente complexas e multifacetadas, vez que as partes se veem relacionadas por vínculos de afeto, ainda que negativos (SAUAIA; CARVALHO; VIANA, 2011, p. 205). Mesmo quando encerrada a conjugalidade, os vínculos de parentalidade serão positiva ou negativamente mantidos até nas situações de mais conflituosidade, a exemplo da violência doméstica.

 A desconsideração de existência de uma relação entre ações de varas de família, infância e violência doméstica pode definir prática de violência institucional, potencializando conflitos ao invés de resolvê-los ou minimizá-los, o que se concebe evidente quando analisados casos concretos.

Não é incomum o assédio processual referido no parecer do presente estudo de caso, exarado pelo Ministério Público do Maranhão nos autos do Processo nº 11.437-60.2015.8.10.0001, quando do deferimento de uma Medida Protetiva de Urgência ou mesmo quando do ingresso de uma ação penal na Vara Especializada da Mulher e da Violência Doméstica.  Tanto o Ministério Público quanto o Poder Judiciário devem atentar para o fato de que o abuso do direito de petição caracteriza-se pela prática do agente que, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desmedidamente e de modo manipulatório, causa dano a outrem e embaraça a atuação do próprio Sistema de Justiça. Logo, constitui ato ilícito e deve ser combatido a fim de que não se estimule o uso doloso do Sistema de Justiça para violar direitos ao invés de para garanti-los.

É comum que o agressor intente a alteração de guarda em uma Vara de Família como forma de retaliação e de intimidação da mulher em prol de fazê-la recuar das denúncias judicializadas. Caso a atuação dos operadores do direito veja-se alijada das análises e percepções afetas à violência doméstica e ou intrafamiliar de gênero, corre-se o risco de tomadas de decisões imperitas, mesmo que estas, comprovadamente, atentem contra a dignidade ou mesmo contra a integridade física ou psicológica da criança ou adolescente em questão.

É diante desse contexto que a Promotora de Justiça MARUSCHKA DE MELLO E SILVA BRAHUNA pugna no parecer dos autos do Processo nº 11.437-60.2015.8.10.0001 pela inserção do executado em Grupo Reflexivo de Responsabilização e Reeducação para Homens Autores de Violência, em funcionamento na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme previsão do artigo 45 da Lei Maria da Penha. O que a atuação da promotoria se propõe é que, diante da inclusão do agressor em grupo de reeducação, se consiga sanar o conflito raiz identificado na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar que acabou por irradiar-se às varas de infância e família.

Por possuírem, muitas vezes, convergência não apenas em relação às partes – integrantes de lides nas varas de família e especializadas em violência doméstica –, como compartilharem a mesma raiz dos problemas que as levaram a serem judicializadas, é comum que as demandas em ambas as varas tenham relações de interdependência, ao ponto de decisões ou posicionamentos em uma ação definirem o cumprimento de decisões em outra ação. Ou seja, há que se observar se as lides levadas às varas de família não possuem fator etiológico na violência doméstica ou vice versa.

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É desse modo que se vislumbra como fator preventivo de decisões conflitantes, que por sua vez podem potencializar os conflitos judicializados ao invés de minimizá-los, a capacitação de juízes, promotores de justiça, defensores públicos e advogados atuantes nas varas de família quanto às interfaces dessas lides e possíveis práticas de violência doméstica ou intrafamiliar, principalmente quanto àquelas referentes à aplicação da Lei Maria da Penha.


 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 É diante da análise do presente estudo de caso, Parecer do Ministério Público do Maranhão, nos autos do Processo nº 11.437-60.2015.8.10.0001, e do delineamento da violência psicológica como nociva à vítima e importante de ser valorizada pelo Sistema de Justiça, que se compreendeu a necessidade de atuação cautelosa e afinada de magistrados, advogados e promotores de justiça em conflitos advindos de uma mesma raiz e irradiantes em varas de família, infância e violência doméstica, a fim de que se iniba a possibilidade de  sobrecarregar desnecessariamente o próprio Sistema de Justiça, devendo-se considerar, ainda,  com maior rigor, a prática de litigância de má fé em ações que tramitam nas referidas varas, como desestímulo de se fazer uso de ações judiciais como a única forma de relacionamento entre um ex casal, cuja a interação afetiva mantida era abusiva e violenta, pautada predominantemente no exercício do poder, controle e humilhação.


REFERÊNCIAS

COMPROMISSO E ATITUDE. Dados estatísticos sobre violência contra mulheres. Disponível em: < http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-mulheres/ >. Acesso em: 30 de mai. de 2017.

DALHBERG, Linda L.; KRUG, Etienne G. Violência: um problema global de saúde pública. Ciância & Saúde Coletiva, ano 11, 2007, p. 1163-1178.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado, violência. Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2004.

SAUAIA, Artenira da Silva e Silva; CARVALHO, Márcia Haydée Porto de; VIANA, Lucian da Silva. Expectativas dos Jurisdicionados em relação à atuação dos magistrados nas varas de família: conciliação em foco. In: CHAI, Cássius Guimarães (org.); BAHIA, Alexandre Gustavo de Melo Franco et al. (coord.).  Mediação familiar, infância, idoso e gênero. Rio de Janeiro: Global Mediation, 2014, p. 150-163.

SCHRAIBER, Lilia Blima et al. Prevalência da violência contra a mulher por parceiro íntimo em regiões do Brasil. Revista Saúde Pública, n. 41, 2007, p. 797-807.

SILVA, Luciene Lemos da; COELHO, Elza Berger Salema; CAPONI, Sandra Noemi Cucurullo de. Violência silenciosa: violência psicológica como condição da violência física doméstica. Revista Interface, vol. 11, n. 21, Botucatu, jan./abr. 2007, p. 92-104.

VARA ESPECIAL DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. Violência Doméstica contra a Mulher: Dados estatísticos da Vara Especializada da Comarca de São Luís. 2016.

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Sobre os autores
Gabriella Sousa da Silva Barbosa

Advogada. Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão - UFMA.

Edith Maria Barbosa Ramos

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1997). Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (2012). Professora da Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Direito Sanitário (NEDISA/UFMA). Professora e Pesquisadora da Universidade CEUMA. Professora do IMEC. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Sociologia do Direito, Direito Constitucional e Direito Administrativo, atuando principalmente nos seguintes temas: direito sanitário, propriedade intelectual, inovação e políticas públicas. Professora do Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

Delmo Mattos

Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor colaborador no Programa de Pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela UFMA. Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Mestrado em Meio Ambiente da Universidade CEUMA. Líder do grupo de pesquisa Justiça, poder e relações éticas na contemporaneidade (CNPq) Pesquisador FAPEMA/CNPq

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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