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Regime jurídico-constitucional da educação

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13/12/2004 às 00:00
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Ora em sua dimensão subjetiva (direito fundamental à educação), ora em sua dimensão objetiva (prestação estatal obrigatória), observa-se, no texto constitucional, um conjunto lógico e sistematizado de disposições normativas (regras e princípios) sobre educação.

Introdução

Efetuando uma análise predominantemente sincrônica da Constituição Federal de 1988, é possível concluir a especial atenção com que tratou normativamente da educação.

Ora em sua dimensão subjetiva – no que atinente ao direito fundamental à educação, ora em sua dimensão objetiva – no que relacionado à educação como um prestação estatal obrigatória, regulamentando os princípios que devem nortear essa atividade, a repartição de competências nessa matéria, bem ainda o modelo de financiamento dessa atividade, observa-se existir, no texto constitucional, um conjunto lógico e sistematizado de disposições normativas (regras e princípios) sobre educação.

Daí ser possível afirmar a existência de um direito constitucional da educação, na acepção com que Celso Antônio Bandeira de Mello aduz que "... há uma disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e normas que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito" (1997, p. 26).

A tanto, porém – afirmar com segurança a existência de um ramo científico autônomo - não pretende esse artigo, que se contenta em procurar tecer comentários acerca do que entende existir como o regime jurídico-constitucional da educação.


1. Conceito constitucional de educação

É possível deduzir, do texto constitucional, um conceito de educação, a partir de interpretação lógico-sistemática de diversos dos seus dispositivos: processo pluralista de ensino-pesquisa-aprendizagem, de responsabilidade do Estado, da família e da sociedade, tendo como objetivos o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigos 205 e 206).

Nesse sentido, a educação é direito social inafastável, instrumento indispensável para a própria formação plena da pessoa. [1] Sem educação, a personalidade não se mostra plena em seu conteúdo, ficando prejudicado no campo fático - mas também no campo jurídico [2] - o gozo de certos direitos subjetivos por aqueles que a ela não têm acesso.

O preparo para o exercício da cidadania é também fator de extrema importância para a integração social. A cidadania é fundamento da República (artigo 1º, inciso II da Constituição), e diz com a dimensão política do indivíduo - ou seja, o seu poder soberano de decidir os destinos da sociedade politicamente organizada, quer por meio de representantes eleitos, quer diretamente, através de plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular (art. 1º, parágrafo único, art. 44 e seguintes, art. 14 e art. 61, § 2º), o que é mesmo corolário do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (art. 1º, caput) – sendo atributo do nacional em gozo dos direitos políticos. [3]

Cidadania [4] é, no dizer de Càrmem Lúcia Antunes Rocha (1996, p. 116-117):

(...) a liberdade expressa na vida política, na participação política: liberdade de escolher as formas de convivência política afinadas com objetivos que se elegem pelo grupo social; liberdade de participar dos governos e de manifestar-se sobre o desempenho dos governantes; liberdade de participar da escolha dos meios de condução dos negócios da cidade; liberdade de determinar-se segundo os seus interesses e aspirações, em benefício de sua própria realização e do benefício de todos e de, assim participando, decidir o seu presente e o seu futuro.

A educação é, portanto, indispensável instrumento de preparo para o exercício da cidadania, nos termos em que aqui colocada. [5]

Finalmente, a educação tem como objetivo a qualificação para o trabalho, de modo que o trabalho (art. 6º, caput), também um direito fundamental, possa ser plenamente exercido.


2. A educação como direito fundamental

A educação aparece normatizada pela Constituição de 1988 dentre os chamados "direitos sociais" – capítulo II do Título II (que trata dos "direitos e garantias fundamentais"). De logo se percebe a importância de buscar compreender a exata dimensão e as conseqüências jurídicas do tratamento da educação como um direito fundamental.

Antes, porém, é necessário esclarecer o que se entende, aqui, como direito fundamental, procurando, inclusive, fixar um corte metodológico entre esta categoria e a categoria dos direitos humanos.

Esse é uma problema instigante, cuja solução simplista poderia ser a de que os direitos humanos são direitos não positivados no ordenamento jurídico, mas absorvidos pela consciência coletivo-social como direitos ocupantes de mais alto grau na hierarquia jurídica, enquanto os direitos fundamentais, a par de conservar essa mesma posição superior na hierarquia dos direitos, seriam positivados como tais no ordenamento jurídico.

Em verdade, direitos humanos são os direitos que todos os homens possuem pela simples condição de serem homens, independentemente inclusive do vínculo estatal que apresentem, do que decorre uma série de direitos, a maioria deles absorvidos pelos ordenamentos jurídicos dos mais diversos Estados ao longo do pós-guerra.

Para Paulo Bonavides (1998, p. 349), essa distinção estanque entre direitos humanos e direitos fundamentais não é importante:

Autores há que estabelecem com extremo rigor e afã metodológico distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais. De tal sorte que, segundo eles, os primeiros independem de estarem ou não positivados, ao passo que os segundos vêm a ser aqueles que num determinado ordenamento jurídico são formulados como tais pelo legislador; inserem-se no texto normativo básico ou constam de suas respectivas declarações de direitos. Desse ponto de vista, os direitos humanos se tornam equivalentes aos direitos naturais, enquanto os direitos fundamentais são certos direitos positivos, de grau mais elevado, atribuídos pelo Estado aos seus cidadãos. Caminhou notoriamente nesse sentido, como se sabe, o constitucionalismo de Weimar. Todavia, parece-nos que é indiferente usar as expressões "direitos humanos" e "direitos fundamentais", desde que seu emprego contemple invariavelmente a qualidade superlativa desses direitos na hierarquia jurídica.

Já Willis Santiago Guerra Filho (1997, p. 12) prefere estabelecer essa distinção, com nitidez, de forma a estabelecer um corte epistemológico:

(...) para estudar sincronicamente os direitos fundamentais, devemos distingui-los, enquanto manifestações positivas do direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados direitos humanos, enquanto pautas ético-políticas, situadas em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas – especialmente aquelas de direito interno.

Adota-se aqui esta última posição, sem desprezar a noção de Paulo Bonavides de que os direitos fundamentais possuem qualidade superlativa na hierarquia jurídica.

A Constituição Federal de 1988 foi bastante fértil em se tratando de direitos fundamentais. Criou um título específico, o Título II, que compreende do artigo 5º ao artigo 17, para tratar "dos direitos e garantias fundamentais", dividindo-o em cinco extensos capítulos, que tratam dos "direitos e deveres individuais e coletivos", dos "direitos sociais", "da nacionalidade", "dos direitos políticos" e dos "partidos políticos". O rol dos direitos fundamentais assegurados expressamente é, portanto, muito extenso, compreendendo-os em suas diversas gerações e dimensões.

Assim, a Constituição Federal preocupou-se em assegurar os direitos de liberdade, oponíveis ao Estado, como garantia contra o arbítrio e o abuso do poder político, os direitos de igualdade, tendentes à vinculação e obrigatoriedade para com prestações positivas do Estado à sociedade, objetivando a redução das desigualdades sociais em busca da igualdade jurídica e social, os direitos de participação, que envolvem a necessária contribuição do povo à formação da vontade e das decisões do Estado Brasileiro de uma forma geral, e ainda direitos chamados de "terceira geração" ou "terceira dimensão", típicos da preocupação com valores como a paz, a solidariedade e o desenvolvimento.

Nesse sentido, acolheu a Constituição Federal, de certa forma, e desde que se atualizem as suas análises, a doutrina dos "status" de George Jellinek. Para Jellinek, é incontestável que o indivíduo é um membro do Estado; logo, qualifica-se perante ele sob vários aspectos: "... As possíveis relações nas quais pode encontrar-se com o Estado colocam-no numa série ede condições juridicamente relevantes" (apud MIRANDA, 1998, p. 84). Esta "série de condições juridicamente relevantes" do indivíduo perante o Estado seriam os status.

Na condição de subordinado ao poder de império estatal, haveria o status passivo, que limita a personalidade individual.

A personalidade do Estado também se limita em sua capacidade de agir, "por efeito do dever moral que lhe incumbe de reconhecer a personalidade dos súditos" (JELLINEK, apud MIRANDA, 1998, p. 85). Ao reconhecer e respeitar a personalidade do indivíduo, como uma esfera de atuação que lhe é vedada, uma esfera em que o seu poder de império encontra-se excluído, o Estado está portanto respeitando o status libertatis, o status negativo do indivíduo.

Como o Estado existe para atuar em nome do interesse geral dos súditos, e quando ele reconhece ao súdito

(...) a capacidade jurídica de pretender que o poder público atue em seu favor, quando lhe dá a faculdade de servir-se das suas instituições estaduais, quando, numa palavra, o Estado concede ao indivíduo pretensões jurídicas positivas, está-lhe reconhecendo o status positivo, o status civitatis, o qual se apresenta, pois, como o fundamento do complexo das pretensões estaduais no interesse individual (JELLINEK, apud MIRANDA, 1998, p. 85).

E, por último, ao conferir ao indivíduo o poder de agir por conta do Estado, promove-o à cidadania ativa, que corresponde ao status ativo, status activo civitatis, "com o qual o indivíduo fica autorizado a exercer os chamados direitos políticos em sentido estrito" (JELLINEK, apud MIRANDA, 1998, p. 85).

Nestes quatro status – passivo, negativo, positivo e ativo – se resumem as condições em que o indivíduo pode deparar-se diante do Estado como seu membro. Prestações ao Estado, liberdade frente ao Estado, pretensões em relação ao Estado, prestações por conta do Estado, tais vêm a ser os diversos aspectos sob os quais pode considerar-se a situação de direito público do indivíduo. Estes quatro status formam uma linha ascendente, visto que, primeiro, o indivíduo pelo fato de ser obrigado à obediência, aparece privado de personalidade; depois, é-lhe reconhecida uma esfera independente, livre do Estado; a seguir, o próprio Estado obriga-se a prestações para com o indivíduo; e, por último, a vontade individual é chamada a participar no exercício do poder político ou vem mesmo a ser reconhecida como investida do imperium do Estado (JELLINEK, apud MIRANDA, 1998, p. 85-86).

Jorge Miranda bem observa – sem contudo retirar o mérito e a importância da doutrina de Jellinek – que os direitos fundamentais não podem ficar restritos aos "status" – "condições juridicamente relevantes do indivíduo frente ao Estado" – "direitos subjetivos públicos". Diversamente, o âmbito dos direitos fundamentais

(...) abrange não só situações jurídicas ativas das pessoas frente ao Estado como situações funcionais inerentes à titularidade de cargos públicos (a que, em breve, iremos aludir); abrange situações que cabem no Direito administrativo, no tributário ou no processual (direitos dos funcionários e dos administrados, direitos das partes em processo); e incluiu ainda direitos de entidades públicas, enquanto sujeitos de relações jurídico administrativas, de relações jurídico-financeiras ou de outras relações de Direito público interno (1998, p. 55).

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Não obstante esta percuciente observação, a doutrina de Jellinek se projeta sobre a evolução dos direitos fundamentais em sua característica multidimensional. Segundo Canotilho,

(...) aos direitos fundamentais não poderá hoje assinalar-se uma única dimensão (subjetiva) e apenas uma função (proteção da esfera livre e individual do cidadão). Atribui-se aos direitos fundamentais uma multifuncionalidade, para acentuar todas e cada uma das funções que as teorias dos direitos fundamentais captavam unilateralmente (1999, p. 522).

Nesse sentido é que Ingo Wolfgang Sarlet remete o estudo da multifuncionalidade dos direitos fundamentais – salientando que não se trata de nenhuma novidade - à doutrina de Jellinek, pois, "na medida em que foi sofrendo críticas e reparos, foi mantida viva mediante um contínuo processo de redescoberta pela teoria constitucional (inclusive no direito pátrio), de modo especial na qualidade de parâmetro para a classificação dos direitos fundamentais" (1998, p. 156-157).

Nesse quadro, é possível identificar o direito à educação como um típico direito de segunda geração histórica, relacionado ao valor jurídico da igualdade real, e consubstanciado predominantemente naquela situação jurídica de se poder exigir do Estado a educação como uma prestação positiva (status positivo).

É realmente nessa moldura que o direito à educação é tratado como um direito fundamental pela Carta Política de 1988.

Quando trata dos direitos sociais (capítulo II do Título II), a Constituição efetua um certo desmembramento quanto aos seus destinatários. Assim é que o artigo 7º enumera direitos sociais dos "trabalhadores urbanos e rurais", elencando apenas alguns deles como titularizados também pelos "trabalhadores domésticos" (artigo 7º, parágrafo único), sendo ainda destinados aos servidores públicos titulares de cargos públicos, com restrições (artigo 39, § 3º) e assim também aos militares (artigo 142, § 3º, inciso VIII e artigo 42, § 1º). Entretanto, no que se refere aos direitos sociais do artigo 6º (educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados), a Constituição não faz qualquer restrição, não se exigindo, para a titularidade de tais direitos fundamentais, a condição jurídica de trabalhador, podendo o desempregado, por exemplo, exigir do Estado o seu implemento. [6]

Nessa toada, o artigo 205 estabelece que a educação é "direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. .." (grifou-se).

Esse dever do Estado com a prestação da educação a todos, como direito fundamental, deve ser efetivado mediante a garantia de: a) ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria; b) progressiva universalização do ensino médio; c) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; d) atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; e) acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; f) oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; g) atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (tudo conforme o Art. 208 e seus incisos).

Desse modo, seria até desnecessário - não fosse a importância, no Brasil, de sempre se reafirmar o óbvio – a norma do artigo 208, § 1º prever que "o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo".

De outra parte, se o Estado não cumprir com a sua obrigação de oferecimento do ensino obrigatório (o não cumprimento aí significa tanto a sua não oferta quanto a sua deficiente oferta), a Constituição determina a responsabilização da autoridade competente (artigo 208, § 2º). É dizer: além das eventuais sanções cíveis, criminais e administrativas, o não cumprimento da obrigação estatal com a prestação da educação obrigatória configurará, pela autoridade responsável, a prática de crime de responsabilidade, por atentado contra a Constituição Federal e especialmente contra o exercício dos direitos sociais (Art. 85, inciso III), sendo a educação um direito social fundamental, conforme visto.

Quanto à família (base da sociedade e possuidora de especial proteção do Estado, segundo o artigo 226 da Constituição Federal), o seu dever jurídico de prestar educação se consubstancia em assegurá-la à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade (artigo 227), o mesmo podendo ser dito em relação à sociedade, sendo ainda dos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (artigo 229).

Portanto, tratar normativamente a educação como um direito fundamental predominantemente associado a prestações positivas do Estado, da família e da sociedade, mas sobretudo do primeiro (status positivo) significa também o estabelecimento de uma série de conseqüências jurídicas, que podem ser resumidas: a) "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata" (artigo 5º, § 1º da Carta Magna), sendo então justiciáveis os direitos e garantias fundamentais, entendido justiciáveis como passíveis de tutela jurisdicional, em face do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário em caso de lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, inciso XXXV); b) o estabelecimento de uma ordem de valores e prioridades enquanto políticas públicas a serem executadas e desenvolvidas pelo Estado para a prestação da educação.


3. Os princípios do ensino

3.1. Generalidades

O art. 206 da Constituição enumera formalmente o que denomina de princípios orientadores do ensino. Tais princípios servem como base para a aplicação de todas as regras jurídicas voltadas à atividade do ensino. [7]

3.2. Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola

Trata-se, aqui, de uma específica manifestação do princípio mais geral da igualdade, verificável no preâmbulo, nos arts. 3º, incisos I e IV e 5º, caput da Carta de 1988. Do que trata o inciso I do artigo 206 é de estabelecer, na seara específica do ensino, que as condições para o acesso e a permanência na escola devem ser iguais para todos, uma vez que o dever do Estado para com a educação, como visto, dirige-se a todos e não apenas a certo ou certos grupos de pessoas.

Ocorre que, assim como o princípio da igualdade encarado em sua generalidade, a igualdade aqui retratada também pode ser encarada sob a ótica formal e sob a ótica material.

Formalmente, a imposição de tratamento igualitário a todos, não se estabelecendo nenhum privilégio ou prerrogativa no acesso e na permanência na escola seria suficiente para a garantia da aplicabilidade desse princípio.

Entretanto, encarado sob a ótica da igualdade material, aquela preocupada com a efetiva ou real igualdade, tal princípio não pode ser encarado como uma mera imposição de tratamento rigorosamente igualitário no acesso e permanência na escola, eis que tal encaminhamento terá o condão de perpetuar a situação de real desigualdade que se verifica na realidade brasileira, no ponto.

Essa problemática se verifica na discussão, recente no Brasil, a respeito das denominadas "políticas de cotas" em universidades, destinando-se certo percentual de vagas no ensino superior a grupos que historicamente não têm tido acesso a esse nível de ensino, a exemplo de negros ou de estudantes de baixa renda.

Analisado esse princípio sob a ótica da igualdade formal, as cotas seriam inconstitucionais, por instituírem um desigual mecanismo no acesso à escola (entendido escola aí em sentido amplo, englobando também faculdades, universidades e instituições de ensino superior) [8], beneficiando certos grupos em benefícios de outros.

Porém, analisando esse princípio à luz da igualdade material, as cotas podem ser encaradas como instrumentos de alcance de uma real igualdade de condições de acesso e permanência na escola, criando temporários benefícios àqueles grupos que, atualmente, pelas mais diversas razões, não têm tido as mesmas possibilidades. [9]

3.2. Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber

Em seu art. 5º, tratando dos direitos fundamentais individuais, a Constituição já inseriu a liberdade geral como um de seus valores básicos (caput), assegurando a sua inviolabilidade, bem como a liberdade de manifestação do pensamento, vedado o anonimato (art. 5º, inciso IV), a liberdade de consciência (art. 5º, inciso VI) e a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).

Assim, quando a Constituição inclui, dentre os princípios do ensino, a "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber", está especializando aqueles preceitos mais genéricos sobre a liberdade de expressão, no contexto de um ensino pluralista praticado em um Estado Democrático de Direito.

3.3. Pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino

Aqui aparecem diferentes noções em torno de um mesmo norte: a diversidade.

Como necessária decorrência do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput) e do pluralismo político (art. 1º, inciso V), lembrando-se ainda a sua expressa remissão no preâmbulo da Constituição, é previsto o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas. É dizer: não cabe ao Estado impor modelos únicos e autoritários de idéias a serem aplicadas no processo ensino-aprendizagem, nem tampouco ditar as concepções pedagógicas a nortear o mesmo processo.

Ao contrário, tais idéias e concepções devem ser construídas dialeticamente, no cotidiano das atividades educativas, respeitando-se a autonomia das localidades e das unidades escolares, respeitadas as realidades regionais e diferenças ideológicas, não havendo nenhum modelo pronto, acabado e pré-concebido de ministrar o ensino.

Como manifestação desse pluralismo, a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino revela que, não obstante o Estado esteja obrigado a prestar a educação a todos, tal serviço não é seu monopólio, podendo ser prestado por particulares [10], inclusive aqueles que façam dessa atividade meio de obtenção de lucro, respeitadas, porém, as diretrizes constitucionais e legais, conforme determina o Art. 209 ("O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público").

3.4. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais

A inserção da gratuidade do ensino público como princípio constitucional do ensino é suficiente para fulminar de invalidade qualquer projeto de lei que queira instituir o ensino público pago, mediante mensalidades, inclusive no nível superior.

Como diz José Afonso da Silva (1999, p. 812-813),

(...) onde o ensino oficial, em qualquer nível, já é gratuito não poderá passar a ser pago. Onde é pago, se for fundamental, deverá passar imediatamente a ser oferecido gratuitamente, e se for médio, a entidade pública mantenedora deverá tomar providência no sentido de que, progressivamente, se transforme em gratuito.

A gratuidade do ensino oficial nos três níveis – fundamental, médio e superior – é velha tradição do sistema educacional brasileiro. Pode-se, agora, dizer que essa tradição não era nada mais nada menos do que uma projeção futura, porquanto veio a ajustar-se à evolução do que tornara a educação um serviço público integrante dos fins do Estado Democrático. Por isso é que a Constituição, acolhendo a evolução, elevara a educação à categoria de direito de todos e, correlativamente, dever do Estado.

Na mesma toada Edivaldo Boaventura, para quem "(...) com essa diretriz, terminou a discussão acerca do ensino superior pago em universidade pública", frisando que, conforme dispõe o art. 242 da Constituição, esse princípio "(...) não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação da Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos" (1997, p. 149).

3.5. Valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos

A valorização dos profissionais do ensino, sendo garantido que, no âmbito do magistério público, serão organizados em carreira, com piso salarial profissional, foi alçada à condição de princípio do ensino.

A opção pela organização do magistério público em carreira significa dizer a inadmissibilidade de que o quadro do magistério da rede pública seja composto de cargo isolado. É dizer: o magistério público será organizado em um complexo, admitida, inclusive, a chamada progressão vertical.

Como diz Odete Medauar (2004, p. 316-317):

Os cargos isolados não são suscetíveis de progressão; hoje são em número pequeno, pois se tende a organizar planos de carreira para os servidores, como determina o § 1º do art. 39 da CF. Os cargos de carreira são aqueles que admitem progressão funcional vertical; para tanto, os cargos são agrupados e escalonados em classes. Classe é o agrupamento de cargos da mesma denominação e idênticas referências de vencimento; assim, por exemplo, uma carreira de Procurador escalonada nas classes de Procurador I, ref. 21; Procurador II, ref. 22; e Procurador III, ref. 24; cada uma dessas classes reúne um grupo de cargos; o Procurador inicialmente é nomeado para o cargo inicial da carreira, Procurador I; no exemplo; no decorrer da vida funcional, ascenderá aos cargos das classes superiores, o que importará em acréscimo de remuneração e às vezes no exercício de atribuições mais complexas, mas da mesma natureza de trabalho. Por isso, carreira é o conjunto de classes da mesma natureza de trabalho, escalonadas segundo a responsabilidade e a complexidade das atribuições. A passagem para cargos de classes superiores por vezes recebe a denominação de acesso, por vezes, de promoção (este é o termo usado na Lei 8.112/90 – Estatuto Federal, art. 10, parágrafo único, e art. 17, com a redação dada pela Lei 9.527/97); essa passagem não significa investidura inicial, a demandar concurso público; havendo concurso de acesso ou promoção, dele só poderão participar integrantes da carreira, titulares de cargos da classe imediatamente inferior aos cargos objeto e disputa, pois tal processo é inerente à existência da carreira.

Nesse sentido, o piso salarial profissional é o marco inicial remuneratório da carreira do magistério, elevando-se essa remuneração com o avanço na carreira, nos moldes comentados.

A investidura na carreira do magistério público somente se fará mediante concurso público de provas e títulos [11], sendo acessível aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei (art. 37, inciso I). [12]

3.6. Gestão democrática do ensino público, na forma de lei.

Esse também é um princípio que desenvolve uma especificidade em relação aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), da soberania popular (art. 1º, parágrafo único), da cidadania (art. 1º, inciso II), do pluralismo político (art. 1º, inciso V).

Ou seja: no ensino público, de responsabilidade do Estado, sua gestão deve ser democrática, com toda a carga semântica que isso signifique. Gestão democrática não quer dizer apenas que os dirigentes das unidades de ensino devem ser submetidos a um processo de legitimação periódica (eleições), mas também que as atividades administrativas, pedagógicas, financeiras, devem ser parte de um processo de integração da comunidade escolar, que participe diretamente do seu gerenciamento.

É dizer: a gestão do ensino público não deve ser feita mediante um modelo imposto de cima para baixo, sem a participação de todos os atores envolvidos no processo educativo. Ao contrário: todos os atores envolvidos nesse processo devem participar ativamente da gestão escolar.

Aliás, esse é o modelo instituído pela Constituição com relação à gestão pública de um modo geral: é a democracia semi-direta, que combina o sistema representativo democrático com mecanismos de participação direta do povo no processo político. [13] Aqui, no inciso VI do art. 206, a Constituição determinou reproduzida, na gestão do ensino, o modelo de democracia semi-direta que preconizou para o Estado como um todo.

Combinando-se esse princípio com os objetivos constitucionais da educação, mais especificamente o do "preparo para o exercício da cidadania", verifica-se que, como comentado no item 1, esta só se perfaz através de direto envolvimento nos assuntos afeitos à "polis"; portanto, nada mais adequado que o preparo para o envolvimento do educando nos assunto políticos se realize experimentalmente no âmbito da própria escola - estrutura estatal mas sobretudo estrutura e espaço público de integração coletiva – avaliando as propostas de gerenciamento das escolas e participando, através de representantes eleitos e também diretamente, de sua gestão.

É importante registrar aqui que o Supremo Tribunal Federal já enfrentou, no julgamento de diversas ações diretas de inconstitucionalidade, o tema da gestão democrática das escolas públicas mediante processo eletivo de seus diretores, mas sempre analisando-o à luz de Constituições Estaduais e sistemas estaduais de legislação que incluíam o diretor de escola como um "cargo" a ser provido mediante eleição da comunidade escolar.

Daí têm-se que, em diversas dessas ações, o STF, em decisão tomada por maioria de seus membros – muitos deles, aliás, atualmente aposentados – decidiu pela inconstitucionalidade de tais disposições, levando-se em conta sempre o fundamento de que os cargos públicos, nos termos da Constituição Federal, ou são de provimento efetivo (regra geral), providos mediante concurso público de provas ou de provas e títulos, ou são de provimento em comissão (exceção), de livre nomeação e exoneração (Art. 37, inciso II). Assim, a criação, por lei estadual ou por determinação da Constituição Estadual, de cargos como o de Diretor Escolar, provido mediante eleição, além de violar a norma constitucional referida, no sentido de criar cargo de modalidade inexistente no texto constitucional, subtrairia a prerrogativa constitucional do Chefe do Poder Executivo de nomear e exonerar livremente os ocupantes dos cargos públicos (Art. 84, inciso XXV).

Assim, o STF emitiu posicionamento majoritário pela inconstitucionalidade da eleição para diretores de escolas deparando-se com estruturas normativas que estabeleciam a existência, na organização jurídico-administrativa, do "cargo" de diretor de escola, não tendo enfrentado a questão à luz do princípio da gestão democrática do ensino público. [14]

A questão da eleição para diretores de escola à luz do princípio da gestão democrática do ensino somente foi abordada, quanto ao seu conteúdo, pelo Ministro Carlos Velloso, que emitiu o seguinte posicionamento (ADIN 578-2/RS):

Pessoalmente, penso que o sistema de eleição de diretores de escola pública não é o melhor e de democrático só tem a aparência. O que se exige de um diretor de escola é o saber abrangente de uma série de questões científicas e do conhecimento humano. A eleição, por parte de toda a comunidade – professores, alunos, pais de alunos, servidores – muita vez tem presente menos o conhecimento científico e mais a capacidade de agradar e fazer promessas vazias.

Essa forma de encarar o processo de preenchimento da direção escolar por meio de eleições revela uma visão meritocrática e por que não dizer anti-democrática de exercício do poder (sim, a gestão pública do ensino também é uma manifestação de poder). É como se somente os "iluminados", portadores de um saber científico formal, estivessem aptos a gerir o ensino público. Transplantando esse raciocínio para a gestão do Estado, ter-se-á a subtração da soberania popular: ao invés de escolha dos representantes políticos por meio de eleições, que se realize concurso público para aferição dos portadores do saber científico, supostamente superior.

Ressalte-se que a eleição para diretor de escola é um dos diversos componentes da "gestão democrática do ensino público", devendo ser implementada toda uma estrutura jurídico-administrativa representativa dos diversos segmentos da comunidade escolar. Entretanto, essa constitui também elemento indispensável para a garantia da gestão democrática do ensino público, não se podendo falar em democracia, no atual sistema constitucional, sem levar em conta os seus aspectos direto e representativo, tais como preconizados pelo art. 1º, que trata do Estado Democrático de Direito, bem como em seu parágrafo único, que afirma que a soberania popular será exercida mediante representantes eleitos ou diretamente, nos termos regulamentados pela própria Constituição no artigo 14 e seus incisos.

A soberania popular também deve ser exercida na gestão da escola pública, por expressa determinação constitucional de gestão democrática do ensino público, e por essa razão a eleição para diretor de escola é indispensável para a concretude do Estado Democrático de Direito.

Finalmente, registre-se, para fins de informação, que tramita na Câmara dos Deputados proposta de emenda constitucional, de iniciativa do Deputado Federal Ivan Valente e que contou com a adesão de pelo menos 1/3 dos seus pares, que estende ao ensino privado o princípio da gestão democrática (proposta de emenda constitucional nº 267/2004, tendo como último movimento, em 25/05/2004, o seu recebimento para apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça daquela casa legislativa). [15]

3.7. Garantia de padrão de qualidade

De nada adiantaria a concepção da educação como um direito fundamental de todos e dever do Estado se não houvesse a garantia de padrão de qualidade do ensino a ser oferecido. Sem qualidade, a educação não será capaz de assegurar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (objetivos da educação).

É uma manifestação do princípio da eficiência na Administração Púbica (art. 37, caput), lembrando que, embora livre à iniciativa privada, o ensino deve ser submetido a avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, inciso II).

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Sobre o autor
Maurício Gentil Monteiro

Advogado militante no ramo do Direito Público. Membro do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de Sergipe. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da mesma entidade. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professor universitário. Atualmente lecionando a matéria Direito Constitucional na Universidade Tiradentes (graduação e pós-graduação).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Maurício Gentil. Regime jurídico-constitucional da educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 524, 13 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6039. Acesso em: 22 dez. 2024.

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