3 A documentação escrita dos atos administrativos como forma de prevenir o desvio de finalidade
O mundo jurídico se diferencia dos demais ramos do conhecimento humano por essa vocação de ser explicável pelas relações de causa e efeito naturais, porém mescladas às relações psicológicas, onde as vontades humanas, afloráveis por meio de condutas, são objeto de elucidação, explicação e, mais complexo ainda, regulação democrática e não randômica.
3.1 A subjetividade nata do desvio de finalidade
No mundo do ser, as relações de causa e efeito são comprovadas de modo mais mecânico, por experimentação em laboratórios ou observações repetidas de fenômenos investigados. Já no mundo do dever-ser, como são as relações jurídico-administrativas entre servidores públicos e entre esses e o cidadão/cliente, as comprovações de causa e efeito são comprováveis de maneira bem mais diferente, pois envolvem o conceito do livre arbítrio, da vontade, do dolo e da persuasão, isto é, da psiqué humanas.
Fácil é perceber que um servidor público, flagrado desviando dinheiro público, do qual mantinha a guarda em razão do cargo, cometeu, além de um ato imoral, um ilícito. Porém, não tão fácil assim, é concluir que um procurador da república, por exemplo, usou o poder conferido por lei e pela Constituição para assediar servidores. O mesmo se diga do colegiado de membros do MPF que decida criar auxílio moradia, sem efetiva necessidade, para todos os seus membros: não é fácil comprovar.
Nesse aspecto, excelente são os ensinamentos de VALENTE (2009, p. 34) a corroborar, verbis:
Em acordo com a doutrina, a comprovação do desvio de poder não se demonstra fácil, pois o ato praticado apresenta-se, em regra, como lícito em sua finalidade, traduzindo um pretenso interesse público, mas, na verdade, veicula regra desviada desse interesse.
Situação que melhor exemplifica a dissimulação do ato desviado de finalidade é a da desapropriação de imóveis. Nessa circunstância, é possível termos ato desapropriante, travestido de interesse social, desviado da regra de competência conferida ao agente público, para atingir interesses outros que não os públicos, como uma retaliação política ou uma vingança pessoal. Entretanto, como a referida desapropriação exemplificativa atinge um conjunto de imóveis, a comprovação do desvio de finalidade, que se dirigia a um único endereço, demonstra-se difícil de ser caracterizada de forma evidente.
Ora, as intenções da administração pública são as intenções de seus agentes investidos em determinada função pública; e nesse trilhar, também são subjetivas, como é a intenção na prática de um eventual desvio de finalidade. O agente público que pratica desvio de finalidade, e o faz de propósito, com dolo, com vontade lúcida, tem a seu favor a dificuldade de materializar sua malquerença, que não se coaduna com o regime jurídico-administrativo brasileiro.
No entanto, existem formas de se majorar a percepção e captar as intenções das pessoas. Logicamente que só o interesse público é capaz de justificar o enveredamento da ciência jurídica pelo caminho das recônditas animosidades do agente público. E, nesse caminhar, a comprovação do desvio de finalidade é matéria da maior importância para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
O desvio de finalidade é conduta que se coaduna muito bem com a ato administrativo discricionário, mais que com o ato vinculado aos comandos jurídicos. No entanto, é tão maléfico o desvio de finalidade advindo de ato discricionário, quanto do ato vinculado. Nesse aspecto, a preocupação científica não deve mudar.
BANDEIRA DE MELLO (2008, p. 964) afirma que, para caracterizar a existência do desvio de poder, não é imprescindível que exista uma verdadeira antinomia, uma antítese, entre a finalidade da lei e a do ato praticado, bastando o singelo desacordo entre ambos. Entretanto, nem sempre esse desacordo apresenta-se claramente para caracterização inquestionável do desvio de poder, como, por exemplo, na situação das desapropriações.
Da mesma feita é o tipo de desvio de finalidade que não obstante configurado, também atingiu paralelamente o fim dissimulado: o interesse público. Para a ciência jurídica pouco importa o atingimento do fim público, se a malquerência do agente também se consumou. A má intenção maculou o eventual atingimento do fim público, pois este serve apenas para ludibriar a opinião pública. Essa também é a balizada opinião de CARVALHO FILHO (2014, p. 121), verbis:
Segundo alguns especialistas, o desvio de finalidade seria um vício objetivo, consistindo no distanciamento entre o exercício da competência e a finalidade legal, e, por tal razão, irrelevante se revelaria a intenção do agente. Não endossamos esse pensamento. Na verdade, o fato em si de estar a conduta apartada do fim legal não retrata necessariamente o desvio de finalidade, vez que até por erro ou ineficiência pode o agente cometer ilegalidade. O desvio pressupõe o ânimus, vale dizer, a intenção deliberada de ofender o objetivo de interesse público que lhe deve nortear o comportamento. Sem esse elemento subjetivo, haverá ilegalidade, mas não propriamente desvio de finalidade.
3.2 O benefício preventivo de se instar a externalização do desvio de finalidade
Os malefícios do desvio de finalidade somente podem ser minorados, ou mesmo dirimidos, se efetivamente correr sua externalização. O cuidado diário dos agentes públicos, principalmente os de nível operacional - que são os mais desfavorecidos, pois têm pouco poder para impor a verdade -, passa pela perspicácia e prática, antevendo o que um mau gestor público, usando do poder hierárquico, ou até institucional (caso do MP, do Judiciário e das Casas Legislativas), pode fazer para mascarar as suas intenções.
Nesse diapasão, a documentação dos atos administrativos, de maneira a retratar com fidedignidade as intenções do agente público que o lavrou, é atitude digna de cultivo e de estudo aprofundado. E não é qualquer forma de documentação, mas a forma mais econômica, mais eficiente, menos volumosa e mais acessível de conhecer e reconhecer a matéria fática (escrita e leitura de texto).
Enquanto as gravações de mídias (áudio e/ou vídeos) demandam o uso de aparelhos como gravadores, leitoras óticas e etc, o uso de documentos escritos requerem apenas os conhecimento cognitivo de leitura, escrita gramatical e interpretação de textos.
Conforme já discorrido: hoje, com o advento e disseminação do correio eletrônico (e-mail institucional), o registro escrito, imediato, objetivo e econômico dos atos administrativos tornou possível manter uma cultura de alerta contra os abusos de autoridade, sem no entanto, parecer paranoia do servidor que cultiva essa conduta, pois, de fato, assim agindo estará apenas cumprindo o que o sistema jurídico-administrativo brasileiro ordena, ou seja, observar e fomentar os princípios do formalismo moderado, da publicidade, da economicidade e da eficiência, sem correr o risco de alimentar burocracias desnecessárias, que tanto atrasam o já combalido serviço público brasileiro.
No âmbito do Ministério Público Federal existe ferramenta chamada MPF drive, que é um repositório de pastas de rede para todos os setores do Ministério Público Federal. Essas pastas foram criadas para facilitar o uso colaborativo de todos os integrantes do MPF. Membros, servidores e estagiários poderão acessar as pastas da sua unidade de lotação (e as pastas lotadas hierarquicamente abaixo de sua unidade). Cada pasta tem 2 GB disponíveis. As subpastas e arquivos adicionados, além da própria pasta, podem ser facilmente compartilhadas com outros integrantes da instituição por meio da interface de compartilhamento. Isso significa, segundo o MPF, um compartilhamento mais fácil e ágil no seu âmbito, que dispensa chamados ou memorandos para ajustes de permissão de acesso.
Os usuários podem acessá-lo no navegador (mpfdrive.mpf.mp.br), nos clientes desktop e até nos aplicativos para dispositivos móveis. O sistema ainda oferece outros recursos, como a possibilidade de realizar comentários e de gerar links para compartilhar os arquivos das pastas de rede com o público externo, fora do MPF.
Não obstante o inegável auxílio do MPF drive para aumentar a documentação e a transparência dos atos administrativos praticados, bem como contribuir para um ambiente digital colaborativo e mais seguro, o uso de tal ferramenta, além de pouco divulgado aos servidores, é apenas facultativo e requer assinatura digital autorizada por membro.
3.3 O documento escrito e sua natural aptidão para inibir o desvio de finalidade
O finado Deputado Federal Cacique Mário Juruna12, em pleno exercício do mandato de Deputado Federal pelo Estado do Mato Grosso, costumava andar com um gravador de áudios para gravar, segundo ele, as falsas promessas do Governo da época (1982), sobre a devolução, aos índios de sua tribo Xavantes, as terra originais. Sua arma, segundo ele próprio, no mundo dos brancos era o gravador. “Homem branco mente muito”, repetia sempre Juruna, eleito deputado federal pelo PDT em 1982. Até o bordão “cacique grava tudo”, atribuído a si, se tornou conhecido no Brasil por programas de humor televisivo.
Certamente que Juruna sabia, ainda que de forma empírica, os males que fazia para a vida pública, as partes envolvidas em determinado acordo (promessas) avençados, não os cumprir. Regredindo um pouco mais, sabemos que a prática da verdade e/ou da mentira pelo homem sempre foi objeto de preocupações, seja na seara filosófica, seja na seara religiosa, seja na seara pública ou privada; tanto que a bíblia relata a conhecida história de Adão e Eva, que foram expulsos do paraíso por cometerem o pecado original: a mentira.
Sabemos que na seara das relações jurídico-privadas, cabe ao homem fazer tudo o que a lei não proíbe. Já na seara pública, ao gestor só cabe fazer aquilo que a lei ordena. É o princípio da legalidade em suas duas vertentes: uma mais leve (seara privada), outra mais exigente (seara pública). Nesse diapasão, a prática de ato administrativo é expressão do agente público, que precisa agir conforme à lei, à moral, aos bons costumes, e aos princípios da administração pública, previstos na CRFB/88. O sistema jurídico-administrativo é a consubstanciação do acordo de cavalheiros que rege as relações entre Estado-Administração e cidadão, e entre aquele e seus agentes.
O desvio de finalidade é, antes de mais nada, uma mentira. É um engodo. É a vontade - ou pelo menos, a negligência do agente público competente que pratica o ato inválido – de enganar os administrados, os demais agentes públicos envolvidos, e a própria administração pública, enquanto personalidade pública fictícia. É certo que a mentira tem pernas curtas, ou seja, um desvio de finalidade pode ser descoberto, mais cedo, ou mais tarde (se não tiver prescrito o direito de punir do Estado); mas não basta apenas saber-se da existência do desvio. Para se punir o agente que abusa do poder público, é necessário ter provas cabais. E é nesse contexto que a prova documental, produzida logo depois do ato, se mostra a mais apta a vincular inconteste o agente público que o pratica, com sua conduta (liame subjetivo).
Enquanto: a) testemunhas mentem, esquecem fatos, morrem, adoecem e/ou se deixam subornar b) áudios e vídeos precisam de aparatos relativamente caros para reproduzir as vontades humanas e tentar retratar suas reais intenções; c) exige certo esforço e incômodo portar um aparelho para gravar o ato no momento que está sendo praticado; d) são deselegantes e invasivos demais na vida dos agentes envolvidos, e, reproduzem as imagens e vozes humanas, porém cheias demais de agudos, graves e trejeitos, ou seja, são pessoais demais, e) os documentos escritos e válidos são imparciais, insubornáveis, baratos, leves, discretos, objetivos e portáveis.
Os atos administrativos podem ser ordens, informações, declarações e enunciações, praticáveis encadeados, formando processos tendentes a um fim público. Nesse caminho dialético, dinâmico e complexo, os agentes envolvidos não tem muita chance de analisar, reavaliar e retratar com fidedignidade suas decisões. Acabam por serem arrastados pelo procedimento que corre contra o tempo.
Isso tudo, sem a documentalidade escrita dos atos administrativo, é um terreno fértil para o agente público mal intencionado, pois seus desvios e abusos vão se misturando aos atos de seus pariceiros, chegando-se a fins não queridos pela lei e pela Constituição e dissimulado de ato legítimo.
Só o documento escrito (como já dito, de preferência não impresso em folha de papel13) tem o poder, em alto grau, de tornar petrificado no tempo o retrato de um ato administrativo. É um arquivo de fácil e fidedigno acesso da realidade e da verdade. Diferentemente da eventual prova advinda de testemunhas, que, não raro, carecem da capacidade de expressar e bem retratar a realidade, bem como podem ficar ainda, a mercê de falhas de interpretações humanas, administrativas ou judiciais. Ou seja, enquanto os escritos, mormente os imediatamente produzidos, até sua interpretação possuem menos subjetividades intermediárias, as provas testemunhais, os vídeos, os áudios, as ordens faladas e gesticuladas são extremamente passíveis de desvirtuamentos interpretacionais, terreno fértil para o agente público dado à prática do desvio de finalidade.
Palavra?!, o vento leva! Mas não só leva! Pode trazê-la de volta. Ou melhor: pode trazer outra, apenas parecida – mas com significado totalmente diferente -, em seu lugar. A outra palavra - essa que nunca foi, de fato, dita, mas que, ou por pouca memória, ou por malícia, ou por temperamento humano - acaba por fazer do vento um mentiroso, ou um injusto, que leva a verdade para o esquecimento, e faz o agente público, um co-mentiroso, com seu desvio de finalidade, triunfar no seio da administração pública. Eis a importância do perder-se um pouquinho mais de tempo escrevendo na fonte o retrato do ato administrativo válido e eficaz.