III. Prequestionamento ficto e positivação do enunciado nº 356 das Súmulas do Supremo Tribunal Federal
De acordo com o professor Eduardo Arruda Alvim, “relativamente ao recurso especial, para que tenha cabimento por qualquer das alíneas do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, é preciso que a questão federal tenha sido tratada pelo acórdão recorrido. É a isso que se denomina de prequestionamento, requisito essencial à admissibilidade do recurso especial. (...) Se a questão não houver sido ventilada, a rigor, não á o que decidir novamente a respeito, justamente porque não foi decidida”.
Analisando o instituto do prequestionamento, o professor Cássio Scarpinella menciona que “para que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça desempenhem adequadamente a sua missão constitucional, de uniformizar a interpretação e aplicação do direito federal em todo o território brasileiro, é mister que eles julguem, em sede de recurso extraordinário e em sede de recurso especial, o que já foi decidido. É das decisões proferidas por outros órgãos jurisdicionais que decorrem, ou não, violações e contrariedades às normas federais e à jurisprudência de outros Tribunais. Sem prévia decisão, não há como estabelecer em que medida as normas federais, constitucionais ou legais, foram ou deixaram de ser violadas pelos demais componentes da estrutura judiciaria nacional”.
O professor Cássio Scarpinella Bueno, à luz do modelo constitucional de processo civil, equipara o prequestionamento à expressão prevista no texto constitucional no inciso III tanto do artigo 102 (recurso extraordinário) quanto do artigo 105 (recurso especial): “causas decididas”. Causas efetivamente decididas seriam aquelas que foram prequestionadas. A fim de atuarem como verdadeiras Cortes ou Tribunais Superiores de uniformização da interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, somente deveriam analisar questões que foram objeto de prévia decisão por parte dos Tribunais locais, estando, por conseguinte, prequestionadas.
Mais à frente, o professor ressalta que “o prequestionamento, porém, diferentemente do que insinua o seu nome, caracteriza-se pelo enfrentamento de uma dada tese de direito constitucional ou de direito infraconstitucional federal na decisão a ser recorrida, e não pelo debate ou pela suscitação da questão antes de seu proferimento. A palavra deve ser compreendida como a necessidade de o tema objeto do recurso haver sido examinado, enfrentado, decidido, pela decisão atacada.” Assim, não basta a mera alegação pela parte, sem que a questão tenha sido efetivamente decidida pelo acórdão recorrido.
Qual a solução processual para o caso em que, em que pese arguida determinada tese jurídica constitucional ou infraconstitucional, o Tribunal a quo, quando do julgamento da apelação, por exemplo, se omite quando ao fundamento elencado pela parte? Como visto anteriormente, a mera suscitação ou alegação pela parte não supre o requisito de admissibilidade relativo ao prequestionamento, havendo a necessidade de enfrentamento e efetiva decisão por parte do Tribunal local. Em virtude da omissão, devem-se opor embargos de declaração, a fim de suprir a inércia jurisdicional quanto à apreciação da questão constitucional ou infraconstitucional ventilada pela parte, mas não decidida e enfrentada pelo Tribunal. Entretanto, quid iuris caso o Tribunal inadmita ou negue provimento aos embargos declaratórios previamente opostos? Há patente divergência jurisprudencial quanto à solução a ser adotada em tais casos.
No Supremo Tribunal Federal, a mera oposição dos embargos de declaração, ainda que rejeitados, por si só, já supre o requisito do prequestionamento, mediante uma interpretação a contrario sensu do enunciado nº 356 de suas Súmulas. Analisando tal opção pelo STF, o professor Cássio menciona que “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, já no início da década de 1960, acabou por entender que a tão só apresentação dos declaratórios com o ânimo de aclarar o que havia sido decidido, mesmo quando rejeitados, era o suficiente para configurar o prequestionamento. É o que se extrai de sua Súmula 356, (...) “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.
Entretanto, é mister salientar que tal posicionamento, ainda que pacífico quando da aprovação do enunciado sumular, não mais é objeto de uníssono entendimento no Supremo Tribunal Federal, consoante se infere da análise jurisprudencial recente no âmbito do STF. Há julgados datados de outubro do corrente ano que vão de encontro à súmula supramencionando, entendendo que a oposição dos embargos declaratórios, por si só, não supre o requisito de prequestionamento, sendo necessário o enfrentamento direto e efetivo pelo Tribunal a quo da matéria arguida pela parte. Na maior parte de tais julgados, adota-se, como razão de decidir, outro enunciado sumular do STF: “é inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada” (Súmula 282/STF).
O Superior Tribunal de Justiça possui enunciado sumular acerca do tema, consoante se infere da Súmula 211 - “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. Assim como os julgados mais recentes do Supremo Tribunal Federal (em divergência com o enunciado sumular nº 356/STF), acima mencionados, o Superior Tribunal de Justiça entende que a mera oposição dos embargos declaratórios não supre o prequestionamento. O STJ, portanto, não aceita o denominado pela doutrina prequestionamento ficto, uma espécie de ficção jurídica decorrente da mera oposição dos embargos declaratórios, ainda que venham a ser rejeitados ou sequer inadmitidos. Para o STJ, não basta a mera oposição dos embargos declaratórios, devendo o Tribunal a quo apreciar a examinar a questão arguida para que se configure o prequestionamento, viabilizando, por conseguinte, a admissão do recurso especial. E o que fazer caso o Tribunal local insista na inexistência de omissão, não questionando a matéria ventilada pelo embargante? Para o STJ, deve-se interpor recurso especial pela violação ao disposto no artigo 535 do atual Código de Processo Civil. Para o professor Cássio, tal posição é a mais consentânea com o modelo constitucional de processo civil. Caso a parte tenha arguido determinada questão federal constitucional ou infraconstitucional e o Tribunal tenha se omitido acerca da mesma, quando do julgamento da apelação, por exemplo, a parte tem que opor embargos de declaração. Caso, ainda assim, o Tribunal inadmita os embargos opostos, a parte deve sim interpor recurso especial, mas pelo error in procedendo, com base na violação ao disposto no artigo 535 do Código de Processo Civil. Assim, haverá um recurso especial rescindente.
Consoante o professor Cássio, “em tais casos, o recurso especial assume caráter meramente rescindente do julgado proferido pelo Tribunal a quo, isto é: dá-se provimento ao recurso especial para anular o acórdão, determinando-se que aquele órgão julgue os declaratórios para decidir sobre a matéria neles veiculada, até então não decidida” Assim, o recurso especial com base na violação do artigo 535 do CPC é provido, anulando-se o acórdão que inadmitira os embargos declaratórios anteriormente opostos, determinando-se a análise pelo Tribunal a quo da questão constitucional ou infraconstitucional omitida, oportunizando-se, posteriormente, nova interposição de recurso especial ou extraordinário com base no mérito recursal. “Do novo acórdão a ser proferido pelo órgão a quo, caberá novo recurso especial, este sim cogitando de um eventual error in judicando”.
Os críticos da posição do STJ rebatem a necessidade de mera rescisão do acórdão recorrido, afirmando ser desnecessária a remessa dos autos novamente à instância local para o julgamento dos embargos declaratórios, bem como a imposição de nova interposição de recurso especial ou extraordinário para somente depois os autos voltarem ao Tribunal Superior a fim de que seja analisado o mérito recursal. Ora, se o próprio STJ entendeu que houve omissão na apreciação da questão infraconstitucional ventilada, a mesma foi identificada, razão pela qual poderia o mesmo, já de antemão, apreciar o mérito recursal, em prol da celeridade processual. É justamente com fundamento em tal crítica que é cada vez mais comum que o recorrente, no bojo do REsp, mencione a violação ao artigo 535 do CPC e, posteriormente, adentre no mérito, no bojo do mesmo REsp. Afinal, o Superior Tribunal de Justiça pode perfeitamente entender que a questão infraconstitucional restou devidamente prequestionada e decidida, ainda que não expressamente, adentrando, por conseguinte, no próprio mérito recursal. O professor Cássio, analisando o tema, tece os seguintes comentários: “Tornou-se bastante usual a interposição de recurso extraordinário e de recurso especial alegando, sucessivamente, o error in procedendo (por causa da constante apresentação dos declaratórios para fins de prequestionamento) e o error in judicando, a ser apreciado na medida em que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça reconheçam que a matéria está suficientemente prequestionada.” Afinal, se o STJ, por exemplo, entende que, de fato, o TJ ou o TRF deveriam ter provido os embargos declaratórios e que houve error in procedendo, porquanto a questão constitucional ou infraconstitucional, apesar de alegada, não foi objeto de apreciação judicial, o Tribunal Superior, ainda que indiretamente, já identificou a questão federal constitucional ou infraconstitucional, podendo apreciar o mérito recursal. “Admitir que o recurso especial desempenhe função meramente rescindente é conspirar contra o princípio da economia e da eficiência processuais (...) Já que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça conseguem, desde logo, constatar qual é a questão constitucional e/ou a questão federal, é certamente preferível que eles julguem de uma vez o recurso extraordinário e o recurso especial diante do reconhecimento da causa decidida, ainda que de forma menos clara.”
Com base no NCPC, constata-se que o artigo 1.025 expressamente prevê que se consideram incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o Tribunal Superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade. Positivou-se, portanto, a posição do Supremo Tribunal Federal e o enunciado nº 356 do Supremo Tribunal Federal, quanto ao prequestionamento ficto. Assim, a mera oposição dos embargos declaratórios com fins prequestionadores, caso o STJ ou STF entenda haver erro, omissão, contradição ou obscuridade, ainda que o Tribunal a quo os tenha inadmitido ou rejeitado, já suprirá o requisito relativo ao prequestionamento, uma vez que há comando legal prevendo que serão considerados os elementos omitidos como efetivamente incluídos no acórdão.
Dúvida doutrinaria surge quando a aplicabilidade do prequestionamento ficto do artigo 1.025 do novo Código de Processo Civil apenas aos elementos jurídicos ou também aos elementos fáticos. O elemento jurídico é mais facilmente identificável. Assim, exemplificativamente, numa ação de repetição de indébito, o contribuinte alegue a inconstitucionalidade da norma tributária e a ausência de caracterização do fato gerador. Caso o Tribunal, no julgamento da apelação, somente se atenha quanto à constitucionalidade da norma, negando provimento ao recurso interposto pelo contribuinte, o recorrente deve opor embargos declaratórios a fim de suprir a omissão. Caso o Tribunal inadmita ou negue provimento aos embargos declaratórios, tal elemento jurídico será incluído no acórdão, uma vez que o embargante o suscitou, para fins de prequestionamento, quando da oposição dos embargos declaratórios. O mesmo raciocínio pode ser aplicado para os elementos fáticos, desde que respeitada a vedação quanto ao reexame de provas, com arrimo no enunciado sumular nº 07 do Superior Tribunal de Justiça e nº 279 do Supremo Tribunal Federal. Assim, caso não haja necessidade, por parte do Tribunal Superior, de reexaminar o conjunto fático-probatório, mas sim meramente de considerar incluído no acórdão elemento fático omitido pelo Tribunal local, ainda que opostos embargos declaratórios posteriormente, é possível a caracterização do prequestionamento ficto, ainda que se trate de elementos fáticos, respeitada a vedação jurisprudencial de reexame fático-probatório pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.