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As empresas públicas e a inconstitucional criação de funções

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A CRIAÇÃO DE “FUNÇÕES” NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Hely Lopes verbera:

Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “poder fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”[18] (grifo nosso).

Reitere-se, tudo o que desbordar daquilo que diz a Lei no caso das Empresas Públicas esbarrará nos Princípios norteadores do inciso II do art. 5º e caput do art. 37, da Constituição Federal de 1988 sendo causa de nulidade, inexistência ou anulabilidade dos Atos Administrativos redundando até na responsabilização pessoal do Administrador, seja por ato de improbidade, desvio ou abuso de poder ou autoridade.

Isso porque antes de se violar a Lei, violam-se princípios que nos dizeres do inolvidável Bandeira de Mello:

“(...) Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, pois representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. (...)”[19] (grifo nosso).

Ademais, dentro da definição de Princípios, se faz necessário a observância de outras considerações, no sentido de melhor compreender e fixar-se o tema.

Para Cretella Jr.,

Princípio é antes de tudo, ponto de partida. Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência”[20] (grifo nosso).

Subdividindo-os em:

Onivalentes ou universais, que são os comuns a todos os ramos do saber.

Plurivalentes ou regionais, que são os comuns a um grupo de ciências, informando-as nos aspectos em que se interpenetram.

monovalentes, que são os que se referem a um só campo do conhecimento.

setoriais, são os que informam os diversos setores em que se divide determinada ciência. (...)”[21] (grifo no original)

Em síntese, observa-se que se “princípios são os alicerces da ciência” cuja subdivisão se interpenetra, fácil então é perceber que sua interpretação deverá ser feita de modo sistemático, isto é, da forma que possibilite ao intérprete um conjunto de conhecimentos que tenham, inicialmente, sua raiz no texto constitucional, irradiando-se para as leis infraconstitucionais, ou se preferir-se o magistério de Carlos Maximiliano:

Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá até conclusões inconsistentes ou inoportunas. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente providência legal ou válido o ato à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este juridicamente nulo.”[22] (negrito nosso).

Assim, em cotejo, com o inciso II, do art. 5º e caput do artigo 37 se tem:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”[23]

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”[24]

Ora, se “função” pública “(...) é o conjunto de direitos e deveres que por Lei se confere a uma pessoa (...)”, infere-se que não pode o Regulamento, a Portaria, o Memorando, a Circular, o Manual, o Código Interno ou qualquer outro Diploma, servir de supedâneo para definir ou possibilitar ao Administrador, ao seu talante, dizer o que venha a ser “função pública” sob pena de infringir não só a Constituição, bem como a Lei.

Tudo isso com base no incisos I e V do art. 37 que diz expressamente:

Inciso I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

(...)

inciso V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (grifo nosso).

Veja-se o quadro comparativo[25]:

Função de confiança

Cargo em comissão

Exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo.

Qualquer pessoa, observado o percentual mínimo reservado ao servidor de carreira.

Com concurso público, já que somente pode exercê-la o servidor de cargo efetivo, MAS a função em si não prescindível de concurso público.

Sem concurso público, ressalvado o percentual mínimo reservado ao servidor de carreira.

Somente são conferidas atribuições e responsabilidade

É atribuído posto (lugar) num dos quadros da Administração Pública, conferida atribuições e responsabilidade àquele que irá ocupá-lo

Destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento

Destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento

De livre nomeação e exoneração no que se refere à função e não em relação ao cargo efetivo.

De livre nomeação e exoneração

(grifo acrescido)

Ademais, a legislação que se ocupa da remuneração de cargos e funções comissionadas (Lei nº 11.526/2007), está adstrita apenas a Administração Direta e diz expressamente no seu art. 3º a quem são destinados:

Art. 3o O valor da remuneração das Funções Comissionadas Técnicas, de que trata a Medida Provisória no 2.229-43, de 6 de setembro de 2001, das  Gratificações Temporárias SIPAM - GTS, criadas pela Lei no 10.667, de 14 de maio de 2003, das Funções Comissionadas do INSS, de que trata a Lei no 11.355, de 19 de outubro de 2006, das Funções Comissionadas do Banco Central - FCBC, de que trata a Lei no 9.650, de 27 de maio de 1998, da Gratificação por Serviço Extraordinário, de que trata o Decreto-Lei no 969, de 21 de dezembro de 1938, dos Cargos Comissionados Técnicos das Agências Reguladoras - CCT, das Funções Comissionadas do DNPM - FCDNPM, de que trata a Lei no 12.002, de 29 de julho de 2009, das Funções Comissionadas do INPI - FCINPI, de que trata a Lei no 12.274, de 24 de junho de 2010, das Funções Comissionadas do FNDE - FCFNDE, de que trata a Lei no 12.443, de 15 de julho de 2011, das Funções Comissionadas do DNIT - FCDNIT, de que trata a Lei no 12.898, de 18 de dezembro de 2013, e das Funções Comissionadas do Departamento de Polícia Rodoviária Federal - FCPRF passa a ser o constante do Anexo II desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 13.027, de 2014)” (negrito nosso).

Numa interpretação sistemática poder-se-ia argumentar que, em se tratando de Empresa Pública que, se submete ao regime celetário, as regras atinentes à “função” seriam aquelas estabelecidas no artigo 62 do Diploma Consolidado[26], mesmo porque, conforme entende o Professor Adilson Dallari (1992), se aplicam as regras próprias da sociedade empresária privada, inclusive da consolidação das leis do trabalho, uma vez que seu vínculo é trabalhista e não estatutário, sendo exemplo os gerentes de sociedades de economia mista, como é o caso do Banco do Brasil S.A.

Discorda-se, data maxima venia, no que tange ao regime híbrido estabelecido, por exemplo, nos Correios e naquelas empresas públicas que exploram única e exclusivamente a prestação de serviços públicos e que, portanto, não visam ao lucro e tem seu fim estabelecido ao cumprimento de função social.

É preciso ressaltar, entretanto, que o regramento do empregado celetista, contratado por empresas estatais, embora eminentemente privado, é, pelo menos em parte, alterado por normas de ordem pública, ou, como se diz classicamente: regime privado derrogado em parte pelo direito público.

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Em síntese:

“A Administração Pública é formada por um conjunto de entidades, pessoas jurídicas, agentes públicos e órgãos públicos que tem por finalidade exercer a função administrativa (planejar, dirigir, organizar e controlar) do Estado, ou seja, obedecer os objetivos do governo, de forma a atingir o bem comum.”[27] (grifo no original)

E que:

“A palavra administração ad (direção), minister (obediência), vem do latim e significa administrar obedecendo a vontade de uma autoridade. No caso da Administração Pública, o administrador público irá realizar o seu serviço visando atender as necessidades da comunidade que o elegeu para esse cargo.”[28] (grifo no original).

Em síntese, a criação de cargos (funções) em comissão visa ao atendimento dos princípios estatuídos na Administração Pública (artigo 37 e incisos), bem como ao Princípio da Razoabilidade e Proporcionalidade, sempre em razão da Constituiçã.

Reitere-se, que toda “pseudo” norma criada em “manuais”, “regimentos”, regramentos” e tantos outros nomes que se atribua a “papeis que estabeleçam regras de conduta do empregado público” é NULO DE PLENO DIREITO, POIS NÃO FORAM ESTABELECIDOS EM LEI.

Além do que não pode ocorrer, data maxima venia é burla pura, simples e descaradamente da Constituição, solapando princípios, fazendo tabula rasa de Leis, onde o Administrador, agindo ao talante de sua própria formação – quando muito acadêmica, apenas e simplesmente vê em sua frente o Manual, o Regulamento, e o aplica, usurpando de seus atributos – isto quando o tem – agindo de nodo temerário e até irresponsável em nome de uma suposta “ordem”.

Ainda há se dizer que o Administrador ao valer-se de instrumentos de achaque, de intimidação e de assédio, acaba fazendo da res publica, particular, agindo ao seu alvedrio, muita vez ou senão sempre, acobertado pelo manto da pseudo legalidade estabelecido por um tiranete pruriginoso, ou um colegiado que apenas “está cumprindo tabela”, de passagem pela Administração.

Em síntese, ocorre com certa frequência na da Administração Pública, notadamente às Empresas Públicas, um total desvirtuamento de seus primevos objetivos.

Há um ressaibo no tocante à criação, ou melhor, “invenção” de institutos, como o aqui tratado no pertinente à “função”, dispensando a empregados concursados a pecha para “ocupar função”.

É simplesmente um arraso e uma vergonha a utilização desse expediente pelo Administrador Público de forma tão rasteira e insidiosa propiciando, nem sempre ao melhor preparado profissionalmente, postos mais altos do que aqueles que são mais capacitados, mas não totalmente alinhados com a chefia imediata.

O resultado não poderia ser mais execrável! Absurdos e abusos cometidos por aqueles que estão em melhor posição em detrimento de outros menos aquinhoados.

Autointitulando-se “chefe”, “supervisor”, “coordenador”, ou seja lá o nome que se dê ante o fato de possuir “função”[29] e ser responsável, muita vez, pela parte administrativa do setor, entendem pairar acima do bem e do mal, escolhendo a seu talante o que cada um fará, malferindo princípios éticos e morais, sob o pálio da mantença da “lei e da ordem”, não titubeiam em assediar moralmente, e se reiteram do “eu mando mais que você”.

Essa, com efeito, é a realidade em grande parte das Empresas Públicas brasileiras.

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Sobre o autor
Carlos Alberto Bergantini Domingues

Procurador de Empresa Pública e Administrador de Empresas, Pós Graduado em Direito Constitucional pela PUC/SP; Pós Graduado em Direito Educacional e Oratória e Retórica pela UNIARA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGUES, Carlos Alberto Bergantini. As empresas públicas e a inconstitucional criação de funções. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5236, 1 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60652. Acesso em: 22 dez. 2024.

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