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Processo de execução, ontem e hoje

15/03/2018 às 16:20

Resumo:


  • O processo de execução no Código de Processo Civil de 1939 e 1973 era binário, com ações executivas distintas para títulos judiciais e extrajudiciais.

  • O CPC de 1973 aboliu o sistema dual e passou a considerar como executivos diversos tipos de títulos, unificando o processo de execução para todos.

  • A Lei nº 11.232/2005 introduziu o cumprimento da sentença no processo de execução, simplificando e agilizando a fase de execução dos títulos judiciais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Lei nº 11.232/2005 tratou de descomplicar a fase de execução dos títulos judiciais, que a partir daí seria feita dentro do processo de conhecimento, tornando desnecessária a instauração de um novo processo, o de execução.

É desaconselhável escrever sobre o processo de execução atual sem antes verificar como ele funcionava nos Códigos de 1939 e 1973.

No primeiro, a execução aparecia sob duas formas. Havia a ação executiva disciplinada pelos arts. 298 a 301 e a denominada por Liebman de ação executória (arts. 882 e segs.). Enquanto aquela cuidava da execução de títulos executivos extrajudiciais, como, por exemplo, documentos de dívida consubstanciados em instrumento público ou particular; esta, se reservava à execução de sentença (título executivo judicial).

Sistema, portanto, binário. A ação executiva tinha lugar quase sempre com a exibição de um título apto para pôr o juiz em condições de determinar ao réu o pagamento, em 24 horas, da quantia expressa no documento, sob pena de penhora de bens. Ou o réu (note-se que a denominação era réu e não executado) pagava e o processo se encerrava; ou, em 10 dias, “contestava a ação” (art. 301), quando então o processo passava a se desenvolver pelo “rito ordinário”. Havia quem divergisse da opinião dominante e do próprio nomen iuris do instituto (“ação executiva”), com o argumento de que se tratava, na verdade, de processo de conhecimento em que antes da contestação penhoravam-se bens do devedor (rectius: réu) com o intuito acautelatório (Machado Guimarães).

No que tange a “ação executória”, tinha-se nela a execução da sentença condenatória, considerada o título executivo judicial por excelência.

Na primeira versão do CPC/1973, o sistema dual foi abolido. E essa novidade ganhou elogios nos corredores forenses. A tal ação executiva era reminiscência do processus summarius executivus do direito medieval. Já tinha sido excluída há muito tempo dos ordenamentos processuais dos países da Europa continental. Com exceção dos dois da península ibérica, que ficaram infensos a influência do CPC francês de 1806, desaguadouro natural de várias leis oriundas da Revolução Francesa.

Processo de execução único, independentemente de se tratar título executivo judicial ou extrajudicial é o que se consignava no então novo CPC (1973). Havia um dispositivo (art. 584) em que se arrolavam os títulos judiciais: a sentença condenatória proferida no processo civil (inciso I); a sentença penal condenatória transitada em julgado (inciso II); a sentença homologatória de transação, de conciliação, ou de laudo arbitral (inciso III); a sentença estrangeira homologada pelo STF (inciso IV); e o formal de partilha (inciso V).

Como se vê, o legislador de 1973 passou a considerar como executivos títulos judiciais outrora omitidos. E no art. 585 havia uma longa lista dos títulos extrajudiciais. O ineditismo no contexto do direito brasileiro estava em que para ambos os tipos o CPC disponibilizava ao suposto credor um único processo, o de execução. Ali é que ele poderia pedir ao Estado atos de força contra o patrimônio do suposto devedor, desde que exibisse na petição inicial da execução o documento que lhe dava essa possibilidade.

O executado era citado para em prazo exíguo prestar a obrigação contida no título, sob pena de penhora de seus bens, se a execução fosse por quantia certa. E nisso estava a grande diferença entre o processo de execução e o de conhecimento, em que neste a citação é para o réu se defender. É certo que o executado poderia se quisesse apresentar defesa. Contudo, ela era feita fora dos autos da execução, em processo autônomo, embora vinculado àquele. Chamava-se “embargos do devedor”. E tinha algumas peculiaridades: distribuíam-se por dependência ao de execução (art. 736); teriam de ser instaurado pelo executado, que a partir daí ganhava o nome iuris de embargante (o exequente, tornava-se o embargado); terminavam com uma sentença, como convém a processo de conhecimento; em regra, a execução ficava suspensa até a decisão final neles proferida; servia indistintamente para títulos judiciais ou extrajudiciais.

No decorrer dos anos, criou-se, por influência dos tribunais, mais um remédio de ataque à execução: a chamada exceção de pré-executividade, a ser usada em casos de vícios mais graves existentes no processo, e cujas vantagens em relação aos embargos do devedor eram basicamente estas: ser desnecessário “segurar o juízo” pela penhora dos bens do executado (vide art. 737, CPC/1973); poder ser apresentada fora do prazo rígido dos embargos do devedor (vide art. 738, idem).

Uma outra característica do embargos de devedor relacionava-se com a amplitude das matérias ali alegáveis: restrita, quando fossem oferecidos contra a execução de títulos judiciais; ampla, se a execução estivesse aparelhada com títulos extrajudiciais. E a razão dessa diferença era óbvia. Se se tratar de execução de títulos judiciais já houve  - para se chegar a ele -  atividade jurisdicional. E se se permitisse ao executado apresentar defesas utilizadas no processo de conhecimento, atentar-se-ia não só contra o princípio da economia processual, mas principalmente contra a eficácia preclusiva da coisa julgada material (arts. 474 do CPC/1973 e 508 do de 2015).

A Lei nº 11.232/2005 fez profunda modificação (verdadeira revolução) no processo de execução concebido na versão original do CPC/1973  - criou a figura denominada “cumprimento da sentença” (arts. 475-I e segs.). De certa maneira, voltou-se ao sistema vigente sob o Código de 1939, na medida em que o processo de execução deixou de ser único, disponível para quaisquer títulos executivos. Para os extrajudiciais, manteve o direito anterior. Mas para os judiciais, instituiu a referida figura do cumprimento da sentença.

Tal lei procurou atender às inúmeras e acerbas críticas que se faziam à execução, notadamente a baseada em sentença: que o procedimento era lento; que o credor/exequente tinha de instaurar um novo processo; que esse novo processo era caro; que o efeito suspensivo que se davam aos embargos, propiciava ao devedor um ganho considerável de tempo; que justamente por isso alienava ou escondia seus bens para escapar da penhora; etc.

Para curar esses males, o legislador teve a sensacional ideia de instituir aqui a figura do direito medieval conhecida por execução per officium judicis. A seguir um breve histórico do seu surgimento naquele direito.

A história do Direito Romano no que se refere ao processo pode ser dividida em três fases, segundo a opinião unânime dos romanistas. Período das ações da lei (legis actiones), período formulário (per formulas) e cognitio extra ordinem. Como a História registra, o Império Romano a partir de determinado estágio (211 d.C, época do imperador Caracala, mais exatamente do pai dele, Sétimo Severo, “o principal autor do declínio do Império Romano”, conforme Edward Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, Cia de Bolso, São Paulo, 2014) entrou em declínio e logo depois ruiu. O ato final foi a Tomada de Constantinopla pelos turcos, 29 de maio de 1453, “o último baluarte do Império Romano do oriente” (J. Cretella Júnior, Curso de Direito Romano, pág. XVII). Muito antes, por volta de 375 d. C, começou a invasão dos bárbaros, que se constituíam de vários povos indo-europeus, semi-nômades que habitavam a Europa setentrional, com especial destaque para os germanos. E se concretizou em 476, com o fim do Império Romano do ocidente. O direito dos vencedores era rudimentar e nele predominava a autotutela (que em Roma já tinha sido abolida em 161 d.C. pelo Decreto Divi Marci, do Imperador Marco Aurélio). Com a lesão a direito podia a vítima, no direito bárbaro, agir com suas próprias forças, pela apropriação dos bens do ofensor, independentemente de autorização da autoridade, que era só acionada posteriormente. Assim, instaurava-se um processo diante de um árbitro, normalmente o rei (König) ou o imperador (Kaiser), cuja função era apenas declarar na sentença qual das partes tinha razão. Para tanto, eram elas submetidas a meios de provas irracionais, como, por exemplo, a mais usada, que consistia em um duelo entre elas. A vencedora era a inocente; supunha-se que a divindade não deixaria ao desamparo quem tivesse razão. Esse método existente nos direito dos povos invasores de Roma, passou a ser conhecidos como julgamentos ou ordálios (derivação da palavra alemã Urteil [sentença]) de Deus. Quer dizer a sentença era dada por Deus. E o juiz apenas a transmitia às partes e ao povo reunido em assembleia.

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É fácil imaginar o contraste entre o direito do povo vencedor e o do vencido. E a dificuldade deste assimilar o direito daquele. Para ficar apenas no tema relacionado com a prova, os romanos conheciam a prova documental, a testemunhal e o juramento. Seu direito era altamente sofisticado para a época. Para se ter uma ideia, basta dizer que para eles era inconcebível a execução da sentença sem ter havido anteriormente a fase cognitiva. E mesmo depois do trânsito em julgado de uma sentença de condenação, a execução dela era feita pela actio iudicati, portadora de um complicadíssimo procedimento que permitia ampla defesa do executado. Essa cautela não se coadunava com a natureza voluntariosa dos germanos, predisposto a resolver sem muitas delongas a lesão a direitos. Assim, o que resultou do choque de dois sistemas tão díspares foi um amálgama (“mistura de elementos que embora diversos contribuem para formar um todo”, segundo o Dicionário Aurélio): a penhora privada, antes da permissão da autoridade foi proibida. Mas uma vez proferida a sentença de condenação, a sua execução teria de ser célere. Essa convivência entre bárbaros e romanos se protraiu no tempo. Na alta Idade Média (século X a XIII), com a criação das universidades nas principais cidades da Itália e a volta do estudo do Direito Romano, os chamados glosadores e pós-glosadores fizeram trabalho de adaptação do desse direito para a época em que viviam. Uma das ideias surgidas foi a de que o mesmo juiz encarregado da cognição seria também o competente para a execução da sentença ali prolatada. Não haveria para isso necessidade de instauração de novo processo por parte do vencedor. No mesmo processo de cognição e por simples pedido o juiz praticaria atos relativos a sua atividade judicial (officium judicis), entre eles o da execução da sentença. Ou seja, o juiz seria primeiramente o julgador e depois, o executor.

A Lei nº 11.232/2005 aproveitou tais ensinamentos, constantes em livros de três grandes processualistas, Giuseppe Chiovenda, Enrico Tullio Liebman e Humberto Theodoro Júnior. A partir dela o tal sistema binário vigente no Código de 1939, voltou ao nosso processo civil. Quando se trata de execução de título executivo judicial, o jurisdicionado tem ao seu alcance o cumprimento da sentença; e se for título extrajudicial, se servirá do processo de execução. Esse é também o sistema reinante no CPC/2015, que no essencial encampou as disposições daquela Lei.

De todos os dispositivos introduzidos (ou meramente alterados ou suprimidos) pela reforma de 2005 existe um que, mais que qualquer outro, contém a quinta-essência do pensamento do legislador. É o que surgiu da nova redação dada ao art. 463 do CPC/1973. Antes dizia: “Ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional”. Depois, passou a dizer apenas isto: “Publicada a sentença”. Ou seja, cortou-se do texto a parte em que se declarava que o juiz, tão logo publicada a sentença, cumpria seu ofício jurisdicional. Vale dizer: houve uma clara, insofismável, iniludível, mudança de mentalidade. O juiz que proferiu a sentença ainda continuará responsável pela execução (mesmo que seja como se costuma dizer de execução imprópria). Nada de festejar, de comemorar o fim de sua atividade naquele processo. O mero término da fase de cognição é insuficiente para o jurisdicionado, último beneficiário da atividade jurisdicional. Ele como consumidor de um serviço público prestado pelo Judiciário quer a satisfação integral de seu direito em um prazo razoável (art. 5º, LXXVIII da Constituição). E a mera existência da sentença, sem a execução   - se isso for necessário -   o deixará frustrado em vista do que esperava com o ajuizamento da ação.

Além dessa significativa alteração e justamente para que ela surtisse efeito, a Lei nº 11.232/2005 tratou de descomplicar, de desburocratizar, de simplificar a fase de execução dos títulos judiciais, que a partir daí seria feita dentro do processo de conhecimento, tornando desnecessária a instauração de um novo processo, o de execução.

Proibido, pois, no CPC/2015   - tal como ocorreu a partir de 2005 -   a referência a “processo de execução”, exceto em casos em que ele esteja aparelhado com título extrajudicial, conforme o rol do art. 784.  

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Sobre o autor
Celso Anicet Lisboa

Professor de Direito Processual Civil na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Advogado com escritórios no Rio de Janeiro (RJ) e em São Paulo (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LISBOA, Celso Anicet. Processo de execução, ontem e hoje. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5370, 15 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60864. Acesso em: 27 dez. 2024.

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