Supremo Tribunal FÉ-deral, ensino religioso e o triunfo do obscurantismo: onde está Deus, professor?

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08/10/2017 às 08:21
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Venceu a sagrada superstição organizada, o «pensamento mágico», a «moral com Deus» e todo um conjunto de misteriosas doutrinas e dogmas que só contam com um respaldo empírico direto anedótico. O obscurantismo chega às mais altas esferas.

                                                                                                          

A evidência de que nos dias que correm siga imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira vinculante Estado e religião é a melodramática decisão do Plenário do STF que declarou constitucional o ensino religioso confessional na rede pública de ensino brasileira. Sem desmerecer a possível (e sempre invisível) intervenção do Espírito Santo no referido julgamento (não, evidentemente, com a mesma intenção e propósito com que seduziu a entregada Virgem porque aqui, sendo o caso, apenas violou a «Lei das leis»), venceu a sagrada superstição organizada, o «pensamento mágico», a «moral com Deus»[1] e todo um conjunto de misteriosas doutrinas e dogmas que só contam com um respaldo empírico direto anedótico. O obscurantismo chega às mais altas esferas com notórias vantagens à Santa Igreja Católica.

“Graças a Deus”, porque a partir de agora e com toda segurança constitucional ensinarão aos nossos “baixinhos” que para encontrar respostas às perguntas sobre a realidade é necessário que creiam “en la existencia de un Ser más, invisible, inefable, presente «en algún sitio por ahí arriba»[2], un creador omnipotente a quien nosotros, pobres criaturas limitadas, somos incapaces siquiera de percibir, y menos aún de comprender”(Salman Rushdie). Também aprenderão, entre outras sacrossantas fábulas, a crer em seres sobrenaturais, na graça e no pecado, no céu e no inferno, na transubstanciação, na reencarnação, na Santíssima Trindade, na virgindade da “Virgem Maria”, no paraíso e no fogo infernal (o castigo eterno no lugar mais horrível, para sempre), no poder das plegárias de intercessão... E o mais importante: que tudo o que existe foi criado do «nada» por Deus, que este foi movido por sua infinita bondade, que tudo existe para sua glorificação e que este mesmíssimo Deus protege e guia tudo o que criou.  Além desses benefícios, o que mais se pode pedir?       

Por desgraça, alguns indivíduos, em suas brumosas obscuridades mentais, esta baixada aos infernos que às vezes propõe nossos neurônios e sinapses, não deixam de questionar-se se, em tempos de autêntica hipertrofia religiosa, de um exibicionismo insano e obsessivo de crenças religiosas, símbolos e orações é sensato  imiscuir a superstição organizada na educação de menores; se acrescenta algo o ensino religioso em escolas públicas feitas uma calamidade, cada dia mais ruinosas, com má educação, falta de meios e recursos adequados, com professores despreparados e mal remunerados, alunos deprimidos e desorientados; se pais e mães preferem que seus filhos sejam capazes de crescer como adultos maduros e racionais, que saibam enfrentar-se ao mundo real com conhecimento fidedigno deste, ou que obedeçam as doutrinas de uma religião qualquer, com o latente perigo de provocar-lhes dano em sua educação e, portanto, em seu desenvolvimento como pessoa; se é útil ensinar a uma criança que um pássaro sedutor (Espírito Santo) foi capaz de fecundar e engravidar a uma fêmea humana virgem; se é possível confiar nas ensinanças de uma classe de indivíduos que creem firmemente que com o dom da palavra alguns sapiens detêm o singular e misterioso poder de converter um biscoito e vinho – literalmente – no corpo e o sangue de um carpinteiro palestino cuja execução representou nada menos que a redenção da humanidade. E já que estamos: se a doutrinação religiosa em uma idade mentalmente vulnerável não constitui uma forma de «abuso infantil» ou um atentado contra a liberdade individual (já que a religião é implantada no cérebro das crianças muito antes que possam ser capazes de decidir entre o que querem crer e o que não; melhor dito: que possam discernir criticamente entre o que é real e o que não é).

Em um mundo racional, a evidência, as provas e os melhores argumentos são os que convencem: a “educação” religiosa baseada em “mistérios” (este curioso mecanismo que permite, graças à ausência de resposta e de provas, que tenhamos resposta para tudo, para justificar o injustificável), especialmente a que estabelece evidentes privilégios para a Igreja Católica, escarniça a autonomia individual, amordaça a liberdade, viola e manipula cérebros indefesos, silencia aos cordeiros, alimenta a idolatria, fomenta a possibilidade de que os indivíduos não se reconheçam entre si como iguais, discrimina com base em ideias ou crenças infundadas, destroça a pulcritude e os benefícios da laicidade[3], além de jogar no lixo a natureza não confessional do Estado e de suas instituições... Um brutal insulto à dignidade humana[4]. Mas não vivemos neste tipo de mundo. Bendito é o fruto! 

Intentarei acomodar os neurônios do indulgente leitor (a) ao redor do que acabo de dizer para que ninguém incorra em enganos. Em uma sociedade em que certa cultura de docilidade, de resignação e de interferências arbitrárias parece ser a regra, a impostura do ensino religioso confessional não representa, depois de tudo, nenhuma grande ameaça à nossa desgastada condição de cidadão. Os hipercríticos, os acólitos de outras seitas religiosas e os indivíduos de pouca fé não deveriam temer as consequências desse tipo de educação que, em última instância, se destina a iluminar com luz vivíssima e certeira os fundamentos de nossa inexpugnável fé.

Ainda que todas as certezas predicadas pelas demais religiões não deixem de suscitar dúvidas em nosso espírito, que mais se pareçam a uma mitologia disparatada e que desafiem a inteligência de qualquer criança, o certo é que a grandeza da mensagem a que me estou referindo, de todas as supostas patranhas que nos ensinam, surge de uma verdade, a Verdade essencial, a VERDADE com maiúsculas: a (triunfante) religião católica, apostólica e romana, a boa, a única aceitável, a única digna de respeito e respeitada (prioritariamente) pelo Estado, no maior país católico do mundo.

A razão e a cautela rechaçam este tipo de argumento, essa forma de negação da relevância dos fatos? Pois dobremos nossa razão e nossa sensatez e aceitemos de uma vez por todas que tudo o que diga a religião, especialmente a ditada pela Igreja Católica, é certo. Abracemos de uma vez por todas o irracional, o transcendente, o inadmissível, o inverossímil e o indemonstrável, precisamente porque é indemonstrável. Adotemos de forma definitiva e incondicional a doutrina católica e pastemos alegremente nos prados que propõe a Igreja Católica como obedientes ovelhas do Senhor. É o fundamento da “incomparável” e legítima religião. Nada menos! Já sabem: com a Igreja Católica não se brinca… e nem se deve usar preservativos.

Apesar de que o assunto cobre sua verdadeira dimensão quando se percebe que a Santa Igreja se serve da religião – de muitas e diversas maneiras— para aumentar sua autoridade, supremacia e influência, ensinando dogmas e crenças como se fossem verdadeiras e com a intenção de que todos as aceitem independentemente da obrigação e da responsabilidade ético-jurídica do Estado de reconhecer e promover, em condições de igualdade, valores diferentes (religiosos e não religiosos), nada disso parece importar para os que elegeram fazer o terceiro dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola, aquele que mais regozija a Deus: o sacrifício do intelecto (o que não é fácil; não pode ser fácil). [5]

Que isso vulnera a Constituição? Pois rasguemos a Constituição! Por acaso não tem preferência a Bíblia sobre a Constituição? Vamos relegar a um segundo plano um texto ditado por Deus – nada menos! – em benefício do produto de um diletantismo mental de uns supostos constituintes postos a organizar uma democracia convencional como se não tivéssemos já suficientes sacerdotes e um Papa infalível, vicário de Deus na Terra, para guiar-nos e pastorear-nos? De toda evidência que não. Os hipercríticos, os hereges de outras facções ideológicas e as almas perdidas, guiados pela mão invisível de Lúcifer, afirmam que o ensino religioso viola uma Constituição em que o Brasil se declara um Estado laico e não confessional. Puro e duro proselitismo herético.

A Constituição não passa de uma norma de rango menor, quase um regulamento de torcida organizada, se a comparamos com a grandeza da Lei de Deus e de seus legítimos representantes na Terra. E a Lei de Deus e de seus vigários nos obriga abraçar e sustentar a verdadeira religião, a católica, a residir aqui abaixo segundo as leis e valores de outro mundo. Isto é obrar com estrita justiça. Se o Brasil é o país “abençoado por Deus” e se “Deus é brasileiro”, títulos que não possui nenhuma outra nação na cristandade, é lógico que nos empenhemos para que a verdadeira religião não decaia em nossas escolas e que nossas crianças, pastores e crédulos seguidores estejam devidamente alimentados e atendidos de acordo com a dignidade que lhes confere as Sagradas Escrituras. Ademais, e sem ir demasiado longe, não há que olvidar que a Constituição da República, conformadora do Estado Democrático brasileiro, foi promulgada “sob a proteção de Deus”.

Assim que pouca ou nenhuma importância devemos atribuir à ímpia advertência de Richard Dawkins quando diz que “as religiões dificultam o avanço das ciências porque ensinam às crianças a sentir-se satisfeitos com explicações sobrenaturais que não explicam nada e lhes cega às maravilhosas explicações naturais que a ciência põe a nosso alcance. Lhes ensina a aceitar mediante dogmas a revelação e a fé, em lugar de ensinar-lhes a buscar as provas das teorias”.

De mais a mais, se buscamos a realidade, sejamos realistas: Qual das duas histórias apresentadas por Ron Carlson e Ed Decker, dois predicadores muito populares e absolutamente partidários do “desenho inteligente”, prefere o sofrido leitor (a) que se ensine a seus filhos? A primeira diz assim: “En la historia secular tú eres un descendiente de una célula minúscula del protoplasma primordial depositado en una playa vacía hace 3.500 millones de años. Tú eres un mero saco de partículas atómicas, un conglomerado de sustancia genética. Existes en un insignificante planeta en un diminuto sistema solar… en un rincón vacío de un universo sin sentido. Vienes de nada e irás a ninguna parte.”

A segunda, ao contrário, diz assim: “En la visión cristiana tú eres la creación especial de un Dios bueno y todopoderoso. Tú eres el clímax de Su creación… No solamente en su única clase, sino que eres único entre tu clase…Tu Creador te quiere tanto y tan intensamente desea tu compañía y afecto que… Él dio la vida de Su único Hijo para que puedas pasar la eternidad con Él.”

Pouca dúvida pode haver sobre o gratificante, aliviadora e até estimulante psicologicamente que pode resultar a segunda história para aqueles cuja vida cotidiana está cheia de fatiga, angústia e fracasso; quer dizer, para os adeptos de uma ética escatológica (cristianismo[6]) segundo a qual a «vida é um vale de lágrimas», que viemos ao mundo para sofrer e passar misérias, e que esse é o preço da «caída», a dívida que devemos satisfazer por causa do pecado original.[7]

Portanto, da mesma maneira que uma gota de água proporciona indícios sobre sua composição química, nada melhor que ensinar às nossas crianças algumas trivialidades: (i) que são as criaturas mais especiais da criação do Pai Celestial; (ii) que a verdade, o bem e o mal são relativos, dependentes da ocasião e da conveniência de um particular conjunto de crenças em que cada fé remete a seus próprios deuses e textos sagrados; (iii) que o homem virtuoso não se modela a si mesmo de forma livre e autônoma, senão, e tão somente, por assistência divina; (iv) que os “bem-aventurados” são os humildes de espírito, os que choram, os que sofrem, os mansos e os pacíficos, porque deles é o Reino dos Céus; e  (v) que devem “amar sobre todas as coisas” a um «amigo invisível» (ou vários) com superpoderes que lhes protegerá, que não lhes castigará e que atenderá diligentemente suas súplicas, sempre e quando cumpram, com cega adesão, seus mandamentos ou se comprometam incondicionalmente com as leis e valores de outro mundo que seus vicários deste mundo decidiram impor em seu nome. Dessa forma, a educação religiosa conduz nossos pequenos (mansos, sofredores, alienados e pacíficos) cordeirinhos a bom porto, ao abandono absoluto nas mãos de Deus, por intermédio e à sombra, sempre astuta e perigosa, de seus clérigos.

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Surpresos? Não é para tanto, porque não se trata de nada distinto do que o judeu helenizado Paulo (o “décimo terceiro apóstolo histérico e masoquista” - para usar as palavras de Michel Onfray - e o verdadeiro fundador do cristianismo), com sua apologia da dominação e renúncia ao mundo, fixou claramente desde o começo na sua doutrina da natureza humana pecadora e, a partir dela, sua dura (e misógina) postura acerca dos poderes terrenal e celestial: o elogio do gozo da submissão, a obediência, a passividade, a escravidão baixo os poderosos com o pretexto falaz de que o poder vem de Deus e que a situação social do pobre, do que sofre, do modesto e do humilde emerge da vontade celestial ou da decisão divina. [8]

Claro que pode parecer, desde a falível e miserável perspectiva humana, extraordinariamente injusto que nossas crianças, vítimas das escolas públicas, aprendam (ainda que “facultativamente”), com gesto bovino, a desfrutar da submissão, da obediência, do sofrimento, da resignação e da passividade. Mas a Bíblia, cuja validade e força vinculante parecem ser maior que a própria Constituição, é taxativa nesse sentido. Não há nenhuma razão que justifique tentar penetrar com a limitada inteligência humana, apenas maior que a de uma ameba, na incomensurável inteligência divina. E nem o intentemos, pois seria um pecado de soberbia, cega e alucinante arrogância.

Quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e converte-se, com o beneplácito do Estado e como manancial de graça santificante, em posturas normativamente «corretas» ou anelos de unanimidade coletiva que superam toda motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar alternativas, entrar em polêmicas é pura blasfêmia, perda de tempo e até um absurdo de raiz. Nada importa ante os inescrutáveis desígnios do Vastíssimo e a decisão de um mundano Supremo Tribunal.

Descuidemos, pois, do princípio segundo o qual em uma sociedade livre, decente e aberta às crenças fundamentais relativas a compromissos religiosos e axiológicos devem adotar-se de maneira autônoma e voluntária. Desconsideremos o princípio segundo o qual nem os pais, nem as comunidades religiosas têm direito a solicitar o auxílio do Estado para que os ajude a enraizar suas crenças religiosas particulares em pequenos cérebros vulneráveis e indefesos. Desdenhemos dos hipercríticos, dos incrédulos, dos oficiais das legiões de Satanás, que intentam censurar nossos cérebros teologicamente condicionados, daqueles que não param de indagar sobre a validade e a legitimidade do ensino religioso desde suas céticas posições alheia à fé e com os caprichos que lhes atribui nossa nefasta, demoníaca e demasiada humana razão.

Não olvidemos que os caminhos do Diabo, como os do Senhor, também são inescrutáveis, que quando comparecermos ante o tribunal divino se nos pedirá estrita conta de todos os nossos atos, estudos e leituras, e que o anjo da guarda tudo anota. Apaguemos, pois, o fulgor do discernimento e celebremos o mistério da «inescrutabilidade». Deixemos que o âmbito do público volte a ser um espaço dependente da religião, sempre capaz de impor a qualquer as obrigações opressivas que dimanam dos valores alheios, ferinamente coloridos com a promessa, moralmente repugnante, de alívio “ultratumba” do sofrimento, de resignada aceitação da miséria humana e de salvação eterna.

E desde a «loucura» da fé, talvez o mais inteligente e sensato seja reconhecer que todos somos medíocres em quase tudo e que um animal que pode aprender a pôr-se de joelhos ante alguma «imagem», chamar-lhe seu Deus e com os olhos cerrados buscar uma resposta, é capaz de aprender, crer e obedecer praticamente qualquer coisa com tal de que se deem as circunstâncias (ou decisões) adequadas.

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Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Informações sobre o texto

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