A TEORIA DA RESPONSABILIDADE PRESSUPOSTA

09/10/2017 às 22:15
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A RESPONSABILIDADE CIVIL, NA SUA MODERNA NOÇÃO, É PRESSUPOSTA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO. A ANÁLISE DA CULPA É MENOS IMPORTANTE DO QUE O RESSARCIMENTO DO DANO A VITIMA.

A RESPONSABILIDADE PRESSUPOSTA NA DOUTRINA. 

A responsabilidade pressuposta é uma teoria levantada pela Profª Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka em sua tese de livre-docência da Faculdade de Direito da USP, posteriormente transformada em obra jurídica, que demonstra um salto no entendimento da responsabilidade civil.

A tese procede a um estudo crítico dos fundamentos da responsabilidade civil, apontando a crise que se encontra o instituto, tendo em vista que há muito tempo foi apontada a insuficiência da culpa para justificar a responsabilização de quem comete dano aos bens jurídicos de outra pessoa. Justifica a autora que, se houve um progresso com a teoria do risco, segundo a qual o dever de indenizar surge como necessidade de pacificação social ou de justiça, ultrapassando-se a concepção de culpabilidade, ainda não se logrou apontar o verdadeiro fundamento da responsabilidade, tornando-se necessária uma investigação a respeito, até porque responsabilidade civil se trata de instituição, de princípio e de conceito jurídico.

Para a autora, a culpa se tornou modelo insuficiente para os novos vieses sociais, capaz de deixar lacunas a respeito de reparação ou indenização de danos causados, não podendo continuar atuando solitária, no que tange às características da responsabilidade civil.

Nesse diapasão, em breve resumo, propõe a doutrinadora que a tese da responsabilidade pressuposta consiste em pressupor a responsabilidade de quem, com sua atividade, expõe outras pessoas a risco (mise en danger) e, por isso, deve indenizá-la, ainda que não seja o culpado. A responsabilidade pressuposta seria uma cláusula geral de mise en danger aprimorada. A ideia é a de que, em primeiro lugar, deve-se indenizar a vítima e, depois, buscar-se o reembolso de quem realmente foi o culpado ou o criador da situação de risco.

A responsabilidade pressuposta afasta-se da doutrina tradicional por não condicionar a reparação do dano aos pressupostos tradicionais da responsabilidade civil (nexo causal, dano, ato ilícito e culpa). A responsabilidade civil já é pressuposta pelo ordenamento, de modo que o dano apenas torna concreto o dever de indenizar, sem necessidade de prova de culpa. Segundo Flavio Tartuce, cuida-se de otimização da responsabilidade civil objetiva pelo risco prevista no artigo 927, parágrafo único, do CC.

  Chega-se à conclusão que, para a autora, a responsabilidade civil já é pressuposta pelo ordenamento, assim quando se realiza um ato danoso surge automaticamente o dever de indenizar. Caracterizado o nexo entre o dano e a atividade potencialmente perigosa, depreende-se a responsabilização do infrator, inclusive sem possibilidade de excludentes de responsabilidade.

Nas palavras da autora:

“Segundo a nossa visão, e a partir da incansável reflexão acerca do assunto, até aqui, uma mise en danger otimizada tenderia a corresponder ao que chamamos de responsabilidade pressuposta e poderiam ser descritos assim os traços principais que ela contém: 1) risco caracterizado (fator qualitativo): é a potencialidade, contida na atividade, de se realizar um dano de grave intensidade, potencialidade essa que não pode ser inteiramente eliminada, não obstante toda a diligência que tenha sido razoavelmente levada a cabo, nesse sentido; 2) atividade especificamente perigosa (fator quantitativo): subdivide-se em: a) probabilidade elevada: corresponde ao caráter inevitável do risco (não da ocorrência danosa em si, mas do risco da ocorrência). A impossibilidade de evitar a ocorrência nefasta acentua a periculosidade, fazendo-a superior a qualquer hipótese que pudesse ter sido evitada pela diligência razoável; b) intensidade elevada: corresponde ao elevado índice de ocorrências danosas advindas de uma certa atividade (as subespécies deste segundo elemento podem, ou não, aparecerem juntas; não obrigatoriamente).

Portanto, e a partir desta súmula do que se idealiza quanto a uma mise en danger, provavelmente seria possível retratar o critério buscado para lhe conferir o status de uma règle de valeur, da seguinte maneira: 1) este critério deve descrever a potencialidade perigosa das atividades que podem ensejar a responsabilização pelo viés da mise en danger; 2) não deve ser taxativo ou enumerativo, para não fechar as portas para futuros danos, ainda não conhecidos; 3) não deve ser tão elástico que acabe por suportar (ou por deixar entrar) variáveis que não se encaixem na verdadeira potencialidade perigosa de uma atividade; 4) estabelecido o nexo causal (dano x atividade perigosa), o executor da atividade é considerado o responsável pela reparação (tout court); 5) essa responsabilidade civil deve ter como finalidade exclusivamente a reparação da vítima, sem qualquer abertura à exoneração dos responsáveis, à face de provas liberatórias (assemelhadas às contraprovas, nas presunções juris tantum); 6) não deve admitir excludente de responsabilidade; 7) pode, eventualmente, admitir o regresso (ação de regresso), mas que se dará pelas provas que o demandado possa fazer nessa outra ação, e que demonstrariam a culpa de outrem, contra o qual regressaria.” 

A RESPONSABILIDADE PRESSUPOSTA NA jurisprudência

A tese apenas há pouco deixou de ser meramente acadêmica para ganhar aplicação na jurisprudência, sobretudo na seara trabalhista. Há precedente no TST sobre o tema, que, embora não aplique expressamente a tese da responsabilidade pressuposta, utilizou-se da mesma como suporte jurídico à análise da moderna noção de responsabilidade civil.

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Segue abaixo o julgado:

Em virtude do fenômeno de potencialização dos riscos da sociedade pós-moderna e do atual estágio de constitucionalismo que nos encontramos, o instituto da responsabilidade civil tende a sofrer constantes releituras a fim de concretizar o valor da solidariedade social inscrito na Constituição (art. 3°, I e III) e da justa repartição dos custos sociais. Esta postura foi também intensificada pela diretriz da socialidade presente no Código Civil de 2002, que neste aspecto se aproxima do Direito do Trabalho. Não por outro motivo, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka denuncia que há uma " incompatibilidade natural entre o conceito clássico (isto é, da passagem do século XVIII para o século XIX) de responsabilidade civil e a estrutura extremamente dinâmica das sociedades atuais " (Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 30). Segundo Eugênio Facchini Neto, “até o final do Século XIX, o sistema da culpa funcionara satisfatoriamente. Os efeitos da revolução industrial e a introdução do maquinismo na vida cotidiana romperam o equilíbrio. A máquina trouxe consigo o aumento do número de acidentes, tornando cada vez mais difícil para a vítima identificar uma 'culpa' na origem do dano e, por vezes, era difícil identificar o próprio causador do dano. Surgiu, então, o impasse: condenar uma pessoa não culpada a reparar os danos causados por sua atividade ou deixar-se a vítima, ela também sem culpa, sem nenhuma indenização. Para resolver os casos em que não havia culpa de nenhum dos protagonistas, lançou-se a ideia do risco, descartando-se a necessidade de uma culpa subjetiva " (Da responsabilidade civil no novo Código. In SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O novo Código Civil e a Constituição. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, ps. 177/178). Pertinentes, ainda, as lições de Ney Stany Morais Maranhão sobre os novos paradigmas da responsabilidade civil: "O tsunami chamado 'constitucionalização do Direito' também tem alcançado as praias da responsabilidade civil, a ponto de proporcionar profundas e irreversíveis reformulações em sua paisagem. Deveras, já de início podemos mencionar que, se a responsabilidade civil tradicional estava basicamente centrada na tutela do direito de propriedade, agora a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a justiça distributiva modificaram decisivamente a sistemática do dever de ressarcir. Isso se dá mormente em razão da necessidade de harmonização do instituto da responsabilidade civil com os ventos atuais, compatibilizando-o com a complexidade/dinamicidade inerente à sociedade contemporânea. (...) Essa valorização da pessoa humana, marcada pela ampla proteção de sua dignidade, deteve o elevado condão de gerar uma profunda reestruturação dos próprios alicerces da responsabilidade civil, de modo a fazer com que seu epicentro de preocupação passasse a açambarcar não apenas a recomposição do patrimônio da vítima, tout court , mas também a própria preservação da pessoa, a defesa de sua existência digna, sendo um exemplo disso a já consagrada solidificação da indenização por abalo moral no direito brasileiro. Percebe-se, nisso tudo, uma certa (r)evolução de ideias, humanizando-se a forma de raciocínio da reparação civil, tomada não mais apenas enquanto mero fator técnico ressarcitório/reparatório - o que é campo totalmente subserviente a uma estreita visão patrimonial -, mas, acima de tudo, assume, agora, uma forte conotação ética de valorização de uma concepção preventiva da dignidade humana - o que, por certo, se ajusta a um foco ligado a preciosos valores existenciais. Certamente que essa preocupação angariou maior simpatia social quando se viu que os acidentes que marcavam os novos tempos, na grande maioria das vezes, afetavam singelos trabalhadores, cuja coarctação da força de trabalho, de regra a única fonte de renda, significava quase sempre lançar uma família inteira ao campo da miséria. Dessarte, tais fatores, conjugados, serviram como um denso pano de fundo que cuidou de forçar reformulações drásticas na teoria da responsabilidade civil, a ponto de lhe conferir um diferente perfil, apto a dar resposta adequada à contundente ambiência que lhe é circundante. (...)" (Tribunal Superior do Trabalho; Número do Processo: RR – 1492-85.2011.5.08.0004; Data de Publicação: 26/10/2012; Data de Julgamento: 17/10/2012; Relator: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira).

Também há julgado no TRT da 22a Região, que ora se colaciona:

Embora a responsabilidade subjetiva ainda se encontre no ápice do sistema normativo que rege a matéria, o momento atual, ao rogar pela máxima efetividade dos direitos fundamentais e sua concretude na dinâmica social, faz emergir para certas situações fáticas a necessidade de seu enquadramento no conceito de risco, facilitando a reparação da vítima do dano. A discussão do tema demonstra sua evolução doutrinária no sentido de exigir a plena atenção ao princípio vetor do sistema constitucional, qual seja, a dignidade da pessoa humana, para daí concluir que a tendência é o abandono da pesquisa da culpa, porquanto a preocupação maior é a reparação da vítima, hipótese que se vê clara na defesa da Responsabilidade Pressuposta (conforme lição de Giselda Hironaka em seu livro "Responsabilidade Pressuposta"). Se o Código Civil se repersonaliza para valorizar a pessoa, o direito do trabalho, através do diálogo das fontes, com mais razão se ancora na nova onda reparatória para defender o devido ressarcimento quando há lesão, motivo pelo qual se adota a responsabilidade objetiva. (Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região; Número do Processo: 0108100-91.2009.5.22.0003; Data de Julgamento: 14/03/2011; Relator: Wellington Jim Boavista).

REFERÊNCIAS:

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Sobre o autor
Diego Carneiro Costa

Assessor Jurídico no Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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