O Supremo decidiu fato do maior interesse e de incontida dor, que afeta não só a mãe, protagonista desse infeliz acontecimento, senão toda a sociedade. Este decisório, dada a repercussão e importância, pode ser comparado àquele realizado, há pouco, por esta Corte, ao proclamar que a expressão racismo, inserta na Carta Magna, não deve ser interpretada de forma canhestra nem literalmente, mas dentro do contexto e da finalidade do Direito, que se traduz pelo bom senso, na expressão insuperável de Celso.
Em 4 de março do corrente ano (2004), o Plenário do Pretório Excelso julgou prejudicado o HC 84025, impetrado contra decisão do STJ, que impediu gestante de interromper a gestação de feto com anencefalia, ou seja, com má formação, tornando a sobrevivência, após o parto, inviável: cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar.
O Relator, Ministro Joaquim Barbosa, assim o fez, por falta de objeto, uma vez que a criança já havia nascido e sobreviveu por apenas sete minutos, tendo sido registrado, ironicamente, com o nome de Maria Vida, segundo informações apuradas durante o julgamento, por sua solicitação e do Presidente Maurício Corrêa.
Lamentou o Relator que decisão judicial tenha sido a causa de violência de tal natureza, ao postergar o conhecimento do feito, e, com extrema sensibilidade e franqueza, narrou que o Judiciário perdeu a grande oportunidade de dar à sociedade a resposta adequada, no exato momento em que de dela mais necessitava, como o fez o Tribunal fluminense.
A seu turno, o ínclito Ministro Celso de Mello deplorou o trágico acontecimento e a dor insuportável da jovem mãe que não encontrou no Judiciário o amparo desejável e necessário, para abortar, pois estava comprovado, ex abundantia, que trazia em seu ventre um ser que não tinha condições de sobreviver após o parto.
Complementou seu voto, aduzindo que essa situação fora produzida por dogmatismo religioso incompreensível e, mais, provocada por sacerdote católico que pretendeu resultado oposto ao da jovem e sofrida mãe, colidindo com os postulados do livre arbítrio e da autodeterminação das pessoas, notadamente no que diz respeito à mulher, com vistas ao controle da sua própria sexualidade e fecundidade.
Em primeira instância, a indigitada progenitora ingressara, por intermédio da Defensoria Pública, com ação visando autorização judicial para abortar, depois de haver sido constatado, por intermédio de exames médicos, que o feto padecia de má formação congênita (anencefalia), incompatível com a vida.
O Juízo inferior indeferira o petitório, em virtude de ausência de previsão legal, contudo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, num rasgo de elevada sensibilidade e clarividência, prontamente, dera autorização para a realização da interrupção da gestação, encontrando no Direito posto a saída legal, para esse infortúnio.
Não obstante, o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente da Associação Pró-Vida, de Anápolis, interpusera perante o Colendo Superior Tribunal de Justiça, o habeas corpus, para desconstituir o decisum do Tribunal a quo. A Relatora do processo, Ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar objetivando sustar a decisão autorizadora da "antecipação terapêutica do parto", até a apreciação do mérito.
Esta Alta Corte de Justiça, por decisão unânime da Quinta Turma, concedeu, em caráter definitivo, a ordem em favor do nascituro, para evitar o aborto não previsto nas hipóteses legais. Sua Excelência, para impedir o aborto, manifestou que a Constituição e a legislação penal asseguram a vida como bem maior a ser tutelado e o Código Penal não permite o aborto neste caso específico.
Entretanto, o STF, conquanto tenha julgado prejudicado o pedido, não deixou passar a oportunidade de assumir a responsabilidade de indicar novos rumos, em consonância com a realidade
Muito mais feliz que a Lei Penal, é o Anteprojeto de Reforma
do Código Penal elaborado pela Comissão, presidida pelo Ministro Luiz Vicente
Cernicchiaro, ao ampliar, com muita propriedade, as hipóteses de aborto legal,
atendendo à melhor doutrina, e em harmonia com a legislação mais evoluída,
ao estatuir não constituir crime
Não se alegue que o Direito pátrio é omisso, porque, como ensina a preclara Desembargadora do Tribunal de Justiça gaúcho, Maria Berenice Dias, "como a plenitude do sistema estatal não convive com vazios, para a concreção do direito, o juiz precisa ter os olhos voltados à realidade social. Mister deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados e não punidos"(in Revista Jurídica Consulex 168, de 2004).
Ora, o Código Penal foi editado na metade do século anterior, quando a ciência ainda engatinhava. Hoje, é perfeitamente possível saber-se que a criança, se nascida, não terá qualquer chance de sobrevida, por anomalia congênita.
E o Código Penal, se interpretado, de acordo com essa realidade, não estará absolutamente impedindo este ato excepcional, porque a morte psíquica é, sem dúvida, pior que a morte física.
A Constituição, realmente, exige a preservação e a tutela da vida, todavia, acrescenta, "com dignidade". Exigir que uma mãe carregue em seu ventre um ente, sem qualquer chance de sobrevida, como é o caso presente, é não só matá-la psiquicamente como constrangê-la ao sofrimento dramático que ninguém tem o direito de impor-lhe, como aliás ponderou o Tribunal Maior do País, servindo de modelo para os casos futuros. O sacrifício desta pobre mulher poderá ser o anteparo para outros casos, visto que o direito deve andar de mãos dadas com a realidade, sob pena de fenecer solitário.
O mais elevado Tribunal pátrio ofertou à mulher o presente maior, no mês que lhe é dedicado - a liberdade de poder dispor de sua liberdade e o direito de praticar o aborto, em casos excepcionais. Infelizmente, o sacrifício de alguém é a porta para a felicidade de outros.