III – OS GRAUS DA HIPOTECA
No direito alemão fala-se na possibilidade da permuta de hipotecas pelo grau. O assunto é hoje discutido perante o novo Código Civil de 2002. Veja-se a lição de Maria Helena Diniz (Código civil anotado, 2005, 12º edição, 1182), quando diz:
O artigo 1.476 do Código Civil de 1916 permitia a instituição de sucessivas hipotecas, com diferentes graus de preferência:
“O imóvel poderá ser hipotecado mais de uma vez, quer me favor do mesmo credor, quer de outra pessoa. Essa hipoteca de bem hipotecado denomina-se sub-hipoteca, que poderá efetivar-se desde que o valor do imóvel exceda o da obrigação garantida pela anterior, para que possa pagar o segundo credor hipotecário com o remanescente da excussão da primeira hipoteca, reconhecendo-lhe a preferência, relativamente aos credores quirografários. Essa sub-hipoteca deverá ser constituída por novo título, não valendo a mera averbação no registro da primeira.
Entre os credores hipotecários de um mesmo bem, não existe concorrência, nem rateio. Há apenas ordem interna de preferência. O credor da primeira hipoteca prefere ao da segunda, e assim sucessivamente.
É lícito, em principio, ao devedor constituir sobre os mesmos bens uma segunda hipoteca, desde que o seu valor o comporte, prevalecendo nesse caso a segurança de pagamento após a liquidação da primeira. Se, ao oficial for apresentada "segunda hipoteca" antes de inscrita a "primeira", fará ele a prenotação, mas sobrestará no seu registro pelo prazo de trinta dias, até a inscrição da primeira hipoteca. Em caso de dúvida irá suscitar pleito ao juizo competente de Registros Pùblicos. Julgado o pedido improcedente, a inscrição far-se-á com o mesmo número que teria na data prenotada.
Posto que vencida, não poderá o credor da segunda hipoteca excuti-la antes de vencida a primeira, salvo em caso de insolvência do devedor. Como explicou Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 323), não se presume tal no devedor hipotecário por faltar ao pagamento das obrigações garantidas por hipotecas posteriores a primeira.
IV - BENS QUE PODEM SER HIPOTECADOS E SUA EXTINÇÃO
Além dos imóveis por natureza podem ser hipotecados: navios, aviões, minas e pedreiras, estradas de ferro, o domínio útil como desmembramento do aforamento, sujeitando-se a laudêmio e foro.
A hipoteca extingue-se: pelo desaparecimento da obrigação principal: ela pode vir pelo pagamento (a quitação do credor é sua prova como a sentença que julga procedente pedido em ação de consignação em pagamento de cunho declaratório), pela novação (forma de transformação ou substituição da obrigação anterior, extinguindo a que havia), por dação em pagamento (forma de extinção de obrigação diversa do pagamento por entrega de coisa diferente de dinheiro), destruição da coisa, prescrição, remissão hipotecária (faculdade concedida ao credor da segunda hipoteca, ao adquirente do imóvel hipotecado, e ao executado, seu cônjuge, descendente ou ascendente, operando a libertação do bem gravado e extinção do ônus real). Ainda ocorre a extinção pela renúncia do credor (a renúncia é da garantia hipotecária, caso em que cessa essa, mas subsiste a obrigação) só se aplica à hipoteca convencional, isto porque a hipoteca legal, inspirada em razões de ordem pública é irrenunciável. Observe-se que se a renúncia envolver o perdão da dívida, extingue-se esta, e a cessação da hipoteca é por via de consequência.
V - A HIPOTECA LEGAL
A par da hipoteca convencional, há as hipotecas legal e judicial.
Cabe ao filho sob pátrio poder hipoteca legal sobre os bens do pai ou mão que lhe administre os haveres; tem hipoteca legal o filho sobre os bens do pai ou da mãe que vier a convolar novas núpcias, antes de dar a inventário e partilha os bens do casal anterior; concede-se hipoteca legal sobre os bens dos tutores e curadores, em favor dos pupilos e curatelados, sempre se concedendo ex ratione peronarum. Caso de hipoteca legal é o da Fazenda Pública, seja Federal, Estadual ou Municipal, sobre os imóveis dos tesoureiros, coletores, administradores, exatores, prepostos, rendeiros e contratadores de rendas e fiadores. Da mesma forma ao ofendido dá-se a hipoteca leal sobre os bens dos delinquentes para saisfação de dano causado pelo delito e pagamento das custas, pois tal e próprio da dogmática alemã da teoria das obrigações e do ato ilícito (somatório shuld e haftung, dever e obrigação de ressarcir pelo patrimônio do devedor ou de terceiro). Somo ainda a hipoteca legal a garantia da Fazenda da União, do Estado ou do Município, sobre os imóveis do delinquente para assegurar o cumprimento das penas pecuniárias e pagamento das custas.
VI – A HIPOTECA JUDICIAL
Passo a hipoteca judicial.
São suas hipóteses:
a) Uma sentença condenando a entregar coisa ou quantia ou a ressarcir perdas e danos;
b) Para Caio Mário da Silva Pereira (obra citada) necessária a liquidez da sentença, pois que não pode haver garantia dela resultante enquanto a Justiça não se pronuncia sobre o quid, quale, quantum debeatur, sobre a coisa devida, precisa na qualidade e na quantidade;
c) Transito em julgado da sentença;
d) Especialização com referência precisa ao imóvel gravado e à dívida garantida, a par da abalizada opinião de Caio Mário (obra citada, pág. 343);
e) Inscrição no registro de imóveis, exigida pela lei civil e na lei processual, e efetuada por mandado judicial.
Com esses requisitos preenchidos está criada a hipoteca judicial, que autoriza o vencedor a perseguir o imóvel gravado em poder de qualquer terceiro (sequela), penhorando-os e promovendo a sua venda em hasta pública.
Discute-se a aplicação da sequela e da preferência nessa hipoteca judicial.
Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 342) ensinava que trata-se de uma hipoteca anômala porque deixa de reunir os dois efeitos característicos, reconhecido apenas um (sequela) sem o outro (preferência). Por sua vez, Azevedo Marques (A hipoteca, n. 84) sustentou a preferência da hipoteca judicial. Mas Clóvis Beviláqua (Comentários ao Código Civil, volume III, artigo 824) lhe negou tal efeito, baseado na letra expressa da lei.
Registro a opinião de Charles Edouard Khourii (Da Hipoteca Judiciária, in Migalhas) de que:
"O Código antigo, em seu artigo 824, não conferia à hipoteca decorrente de sentença o direito de preferência que toda hipoteca devidamente registrada produz. Por tal razão, a doutrina, quase unanimemente, assegurava existir a seqüela, mas não a preferência nessas hipotecas. Assim dizia o artigo 824 do Código Civil de 1916, in verbis:
Ocorre que o Código Civil vigente não mais trata da Hipoteca Judiciária, e o dispositivo acima transcrito foi suprimido, não possuindo correspondente na atual Lei Civil. Assim, em que pese o respeitoso posicionamento de brilhantes doutrinadores que ainda sustentam que a hipoteca decorrente de sentença não carrega o direito de preferência, deixou de existir no Direito Pátrio qualquer embasamento legal que justifique esta opinião.
Ainda na vigência do Código de 1916, estando, portanto, em vigor o dispositivo contido no artigo 824 acima transcrito, parte da doutrina já entendia que se aplicava à Hipoteca Judiciária também o direito de preferência. Porém hoje, se a Lei não mais exclui da Hipoteca Judiciária o direito de preferência, não cabe ao aplicador do direito fazê-lo. Desta forma, revogado o dispositivo mencionado, aplica-se à Hipoteca Judiciária o quanto se aplica às demais espécies de hipoteca, de forma que apresentará como efeitos, tanto o direito de sequela, como o direito de preferência."
VII – A AÇÃO QUE ASSEGURA A HIPOTECA
No caso da hipoteca, a ação que a assegura tem um significado de direito material e não apenas processual. Explica Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, tomo XX, § 2.417, pág. 31) que a propositura da excussão hipotecária corresponde a “uma pretensão de direito material”, exatamente “oriunda do direito material” engendrado por esta especial modalidade de garantia real.
Ensinou Pontes de Miranda (obra citada) que “toda obrigação tende à execução”. Em regra, porém, a execução forçada é simples tutela processual, por meio da qual se aplica sanção ao inadimplemento cometido pelo devedor. No caso da hipoteca, diversamente, pode-se divisar na ação executiva, que lhe corresponde, mais do que simples remédio processual. Há realmente uma ação de direito material, visto que o conteúdo mesmo do direito do credor consiste no poder de excutir o bem garantidor de seu crédito. Em outros termos, a hipoteca não é outra coisa senão o direito de vender judicialmente o imóvel gravado, caso não se dê o pagamento da obrigação garantida.
Daí a lição de Pontes de Miranda de que existe, in casu, uma “ação executiva (de direito material)”. Segundo sua lição, “não se pode eliminar a pretensão de direito material, que há por parte do titular do direito real de garantia (...)”. Assim “o que há, a mais, na ação executiva pignoratícia, ou executiva hipotecária, é exatamente oriundo do direito material”.
Disse Eduardo Espínola (Os Direitos Reais Limitados ou Direitos sobre a Coisa Alheia e os Direitos Reais de Garantia no Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Conquista, 1958, n. 279, p. 431-432) que “o credor hipotecário, como titular de um direito real, que consiste em obter o pagamento de seu crédito por meio do preço obtido na venda forçada do imóvel hipotecado (na falta do pagamento voluntário ajustado) tem o direito fundamental de promover a venda pelos meios legais” .
O disposto no art. 1.422 do novo Código Civil, é o que se lê: “O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada, quanto à hipoteca, a prioridade no registro”. Eis por que lícito é lícito dizer que, na espécie, a pretensão à execução é de direito material.
Ensinava Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, volume 20, Bookseller, pág. 457) que as ações executivas ou são reais ou pessoais, a posição do demandado é a de pessoa imediatamente interessada, passivamente, na execução: de algum modo a tem de tolerar. Nas ações executivas pessoais, a posição do demandado é a de quem sofre a execução, por sair do seu patrimônio o bem com que se satisfaz a pretensão oriunda do título executivo, extrajudicial ou judicial.
Lecionou ainda Pontes de Miranda (obra citada, pág. 458) que quando o credor cujo crédito foi garantido somente exerce a ação condenatória ou a ação executiva própria do crédito garantido, a ação só se dirige contra o devedor, e não contra o proprietário. Se são a mesma pessoa, há coincidência ocasional de legitimação passivas.
A ação de execução ou é do título extrajudicial ou é ação de execução da sentença proferida de regra na ação condenatória.
As exceções oponíveis são as que derivam da relação jurídica entre credor e devedor. Ao cessionário do crédito podem ser apresentadas exceções que nãocabem contra o titular da hipoteca, como as que a fé pública do registro afasta.
Em decisão recente o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou:
A prescrição da pretensão de cobrança da dívida extingue o direito real de hipoteca estipulado para garanti-la. O credor de uma obrigação tem o direito ao crédito desde o momento da pactuação do negócio jurídico, ainda que não implementado o prazo de vencimento. Após o vencimento da dívida, nasce para o credor a pretensão de recebimento dela. Recusado o cumprimento da obrigação, inflama-se a pretensão, nascendo a ação de direito material. Esse desdobramento da obrigação tem interesse prático exatamente no caso da prescrição, pois, após o vencimento da dívida sem a sua exigência coativa, o transcurso do lapso temporal previsto em lei encobre a pretensão e a ação de direito material, mas não extingue o direito do credor. A par disso, é possível visualizar que, efetivamente, o reconhecimento da prescrição não extingue o direito do credor, mas, apenas, encobre a pretensão ou a ação correspondente. De outro lado, registre-se que o art. 1.499 do CC elenca as causas de extinção da hipoteca, sendo a primeira delas a "extinção da obrigação principal". Nessa ordem de ideias, não há dúvida de que a declaração de prescrição de dívida garantida por hipoteca inclui-se no conceito de "extinção da obrigação principal". Isso porque o rol de causas de extinção da hipoteca, elencadas pelo art. 1.499, não é numerus clausus. Ademais, a hipoteca, no sistema brasileiro, é uma garantia acessória em relação a uma obrigação principal, seguindo, naturalmente, as vicissitudes sofridas por esta. Além do mais, segundo entendimento doutrinário, o prazo prescricional "diz respeito à pretensão de receber o valor da dívida a que se vincula a garantia real. [...] extinta a pretensão à cobrança judicial do referido crédito, extinta também estará a pretensão de excutir a hipoteca dada a sua natureza acessória", como se lê do RESp 1.408.861 - RJ, Relator ministro Paulo de Tarso Sanserino, DJe de 6 de novembro de 2015.
Ensinou Pontes de Miranda (obra citada, Bookseler, pág. 385) que, na hipoteca, pode haver determinações inexas. A hipoteca pode acabar porque se lhes fixara prazo extintivo, ou condição extintiva (resilitiva).
Assim na hipoteca voluntária nada obsta a que se inexe termo final ou condição resilitiva. Nas demais hipóteses, a inserção de cláusula inexa de se ter previsto a sub-rogação real, devendo-se entender que somente se extingue a hipoteca se outra se inicia, com a sub-rogação real.
Nesse ponto ensinou Pontes de Miranda (obra citada, Bookseler, pág. 385) o termo extintivo, ou a condição extintiva é o termo resilitivo, o termo de resolução ex nunc; ou a condição resolutiva, a condição de resolução ex nunc. Hipoteca houve; com o advento do termo ou condição, acaba. Disse Pontes de Miranda, na mesma obra, pág. 385:
"O termo e a condição resilitivos somente podem ter relevância real, se houve inserção da determinação inexa no acordo de constituição, ou no negócio jurídico unilateral de constituição que se registrou. Consta, portanto, do registro. Está na dimensão da eficácia real. Aí entrou e aí se vê acabar a hipoteca. A cancelação não poderia ter eficácia desconstitutiva. Todavia, se o termo não foi atingido, ou não se impliu a condição, e procedeu-se ao cancelamento, o cancelamento opera, erga omnes, por declarar, embora falsamente, que se extinguira o crédito. Provado, na ação competente, o que se pode fazer é novo registro (reinscrição) da hipoteca.
É preciso que se não confunda o termo aposto à dívida garantida, que diz respeito ao vencimento, e o termo fixado à garantia, findo o qual a essa se extingue. Ali, o penhor subsiste, aqui, o penhor acaba (Supremo Tribunal Federal, 11 de junho de 1947, AJ 84/80; "A garantia real prestada a obrigação a termo, não se extingue; confundiu prazo de vencimento e prazo de extinção a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Goiás, a 6 de junho de 1948, AJ 82/306)"