VIII – A HIPOTECA E O PRAZO DECADENCIAL
Há várias causas para a extinção da hipoteca e uma delas é a prescrição, como se lê da letra fria da lei.
Ensinou Tito Fulgêncio (Direito Real de Hipoteca, volume II, pág. 449) sob a égide do antigo Código Civil:
“A prescrição da hipoteca é a mesma da dívida ou obrigação que garante, a qual, sendo pessoal, só prescreve em 30 anos (TJ de São Paulo, volume LXII, pág. . 157).
Lecionava Caio Mário da Silva Pereira (instituições de direito civil, volume IV, 2ª edição, pág. 349) que, em primeiro lugar, deve ser assentado que a prescrição extintiva da obrigação garantida tem como consequência a cessação da hipoteca, sob a fundamentação tantas vezes repetida: accessorium sequitur principale. Como ainda ensinou Tito Fulgêncio (obra citada, pág. 442), a consumação da hipoteca é simultânea à da dívida.
Sob o Código Civil de 1916, sendo a hipoteca um direito real sobre coisa imóvel prescreve em dez anos entre presentes e quinze entre ausentes. Mas não ocorre pela simples omissão do credor, no caso de se criar contra ele uma situação incompatível com o seu direito real.
Pode ainda operar-se a prescrição da hipoteca por via indireta, quando o adquirente do imóvel o recebe a non domino e o possui como seu, pelo tempo de duração do usucapião ordinário, mansa e pacificamente, com justo título e boa fé. Pelo mesmo fundamento, a prescrição de domínio, que se consolida tractu temporis, o adquirente se vê liberto do ônus que o gravava nas mãos do verus dominus.
Outra hipótese ainda é a do que adquire do proprietário verdadeiro um imóvel tido como livre e desembaraçado, e assim transcreve o seu titulo. Decorrido o tempo necessário a prescrição aquisitiva sem que o credor jamais o molestasse, o adquirente consolida pela prescrição uma ausência de grave que implica em prescrição da hipoteca. Segundo ainda Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 450) “não colheria argumentar com a validade da inscrição da hipoteca que prevalece até ser cancelada, porque no caso desenhar-se-ia um conflito de registros; a inscrição hipotecária opõe-se a transcrição da propriedade livre de ônus e, no conflito de declarações contraditórios do registro imobiliário, prevalece a liberação que tem a seu prol o decurso de tempo e a inércia do credor, e ainda se beneficia da velha sentença advinda do direito romano, enunciada a outro propósito, mas que a este se aplica: plus favemos liberationibus quam obligationibus.”.
IX – PRAZOS EXTINTIVOS DA HIPOTECA
Tem-se os seguintes prazos extintivos para a hipoteca:
O exercício da pretensão real emanada da hipoteca sofre, na sistemática da lei civil, a contingência de dois prazos extintivos: a) o prazo prescricional relacionado com a obrigação garantida pela hipoteca; b) o prazo de perempção do próprio direito real de hipoteca.
A decadência, também chamada de caducidade, ou prazo extintivo, é o direito outorgado para ser exercido em determinado prazo, caso não for exercido, extingue-se. A prescrição atinge a ação e, por via oblíqua, faz desaparecer o direito por ela tutelado; já a decadência, atinge o direito e, por via oblíqua, extingue a ação.
Na decadência, o prazo nem se interrompe, e nem se suspende (CC, art.207), corre indefectivelmente contra todos e é fatal, e nem pode ser renunciado (CC, art.209). Já a prescrição, pode ser interrompida ou suspensa, e é renunciável.
Segundo Maria Helena Diniz (Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 364, 2003) a diferenças básicas entre decadência e prescrição são as seguintes:
A decadência extingue o direito e indiretamente a ação; a prescrição extingue a ação e por via obliqua o direito; o prazo decadencial é estabelecido por lei ou vontade unilateral ou bilateral; o prazo prescricional somente por lei; a prescrição supõe uma ação cuja origem seria diversa da do direito; a decadência requer uma ação cuja origem é idêntica à do direito; a decadência corre contra todos; a prescrição não corre contra aqueles que estiverem sob a égide das causas de interrupção ou suspensão previstas em lei; a decadência decorrente de prazo legal pode ser julgada, de oficio, pelo juiz, independentemente de argüição do interessado; a prescrição das ações patrimoniais não pode ser, ex oficio, decretada pelo magistrado; a decadência resultante de prazo legal não pode ser enunciada; a prescrição, após sua consumação, pode sê-lo pelo prescribente; só as ações condenatórias sofrem os efeitos da prescrição; a decadência só atinge direitos sem prestação que tendem à modificação do estado jurídico existente.
É nítido o cunho constitutivo nas ações onde se têm prazo decadencial. Estamos diante de direitos potestativos e não de direitos subjetivos (o poder de vontade de agir, para satisfação de um interesse próprio em conformidade com a norma jurídica). Nos direitos subjetivos se requer do devedor o cumprimento de um dever. No direito potestativo há uma sujeição.
O seu conceito, e mesmo as suas diferenças com relação a prescrição, são assim dados: que para determinadas relações, a lei e a vontade do individuo estabelecem, previamente, um termo fixo dentro do qual se pode promover uma ação, de modo que terminado esse termo, já não pode ter lugar, seja por que modo for, prescindindo-se para tal de qualquer consideração de negligência do titular ou da impossibilidade na qual se encontre e olhando-se apenas exclusivamente ao fato do decurso do tempo.
Não é um direito que se extingue com a passagem do tempo, mas, sim, a aquisição do direito que se impede como decurso inútil do termo. Uma faculdade a cujo exercício se marcou de antemão um termo, que nasceu, originalmente, com uma limitação de tempo de modo que não pode se fazer valer.
O que acontece quando esgotado tal prazo? As partes devem constituir novo registro, nova especialização, sob pena de caducidade o que independe do prazo de vencimento da obrigação principal garantida.
Silvio de Salvo Venosa compila julgado nesse sentido "Hipoteca - Prazo - Garantia constituída por escritura pública, com validade de 10 anos, não renovada - Direito real extinto, com o conseqüente cancelamento do registro, passando o crédito subsistente a ser quirografário - Perempção caracterizada - reforma da decisão judicial que assinalou a validade da garantia até o seu cancelamento no registro de imóveis - Recurso improvido" (1º TACSP - Processo 765720-6/00 - proc. princ. 9- agravo de instrumento - Angatuba - 3ª câmara - Rel. Itamar Gaino, 3-2-98, MF 36/NP - unânime -Ed. Atlas, vol. V, p. 536).
Em resumo, não sendo renovada a inscrição, ocorre extinção da hipoteca e a dívida passa a ser quirografária, desprovida de garantia real.
Pontes de Miranda (obra citada, Bookseler, pág. 383) analisando o artigo 1.485 do Código Civil de 1916, pelo prazo de vinte anos, da data do contrato, advertiu que aquela solução técnica exige toda a atenção: a hipoteca não subsiste além dos vinte anos, podendo, antes de terminar esse prazo, ser prorrogada (prorrogação da hipoteca prestes a precluir, à semelhança de qualquer prorrogação de hipoteca com prazo, se se quer evitar que se extinga); se foi esgotado o prazo, pode dar-se a reconstituição da hipoteca, se não foi cancelada, desde que haja novo acordo de constituição e novo registro. A favor dessa nova hipoteca, a lei não conferiu o grau que a hipoteca extinta tinha ao extinguir-se, ou o que teria se houvesse sido prorrogado ate a data da nova constituição da hipoteca, mas o que lhe compete no momento do novo registro.
Com o advento da Lei 10.931/04, o prazo de perempção volta a ser de 30 anos, assim como era previsto no Código Civil de 1916. A razão da mudança se dá pelo fato de a hipoteca, em regra, garantir dívidas por um longo período de tempo, mormente em se tratando de financiamento para a aquisição de bens imóveis.
Assinalou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, tomo XX, Bookseller, pág. 383) que a prescrição das ações reais foi elevada à categoria de causa de extinção da hipoteca pelo Código Civil de 1916, artigo 849, VI. A preclusão do direito, por decurso de tempo, aparece no artigo 1.485 do Codigo Civil, servindo de ponto de partida do prazo a data da hipoteca, isto é, a data do registro, porque desse dia é que começa a existir o direito real.
Disse, ainda, claramente Pontes de Miranda (obra citada, pág. 384): "O prazo do art. 1.485 é preclusivo. Nâo se suspende, nem se interrompe". Trouxe Pontes de Miranda julgado da 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 16 de julho de 1942, RT 143/527).
Ao discutir sobre o prazo preclusivo e ato constitutivo da hipoteca, ainda ensinou Pontes de Miranda (obra citada, pág. 384) que "é interessante observar-se que, sendo desde a data do acordo de constituição ou do negócio jurídico unilateral de constituição, o prazo preclusivo, o registro pode ter tido eficácia de tempo ínfimo, um dia talvez. O que se exaure é a eficácia do ato constitutivo, bilateral ou não. Tal preclusão nada tem com o registro."
Já entendeu o Supremo Tribunal Federal que tal eficácia nada tem com o registro (RF, 61/294, 18 de novembro de 1932), nem com o crédito que com a hipoteca se garanta (4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 16 de julho de 1942; RT 143/527).
Destaco que Pontes de Miranda (obra citada, pág. 384) assim disse:
"Uma das consequências de se haver feito começar da data do ato constitutivo, e não do registro, o prazo preclusivo, consiste em se tornar irregistrável o ato constitutivo, bilateral ou unilateral, que passou vinte anos sem se registrar".
Considera-se que há um outro prazo que também pode levar a hipoteca a extinguir-se. Trata-se do prazo de perempção ou preclusão estabelecido pelo art. 1.485 do Código civil atual, corresponde ao art. 817 do Estatuto anterior. A ordem jurídica opõe-se à perpetuidade desse direito real, precrevendo-lhe um prazo, que era de trinta anos no Código anterior e que passou para vinte anos no texto primitivo do Código de 2.002, voltando a ser de trinta anos com a reforma efetiva pela Lei nº 10.931 de 2.004, findo o qual não mais se poderá prorrogar o vencimento do contrato hipotecário. Apenas por meio de novo contrato e novo registro se conseguirá manter a garantia real, como bem explicou Humberto Theodoro Júnior (A extinção da hipoteca pelo decurso do tempo no regime do Código Civil de 2002).
Pelo art. 1.485 do Código Civil de 2002, mediante simples averbação, requerida por ambas as partes, poderá prorrogar-se a hipoteca, até perfazer vinte anos, da data do contrato, Desde que perfaça esse prazo, só poderá substituir o contrato de hipoteca, reconstituindo-se por novo título e novo registro; e, nesse caso, lhe será mantida a precedência, que não lhe competir. (texto primitivo, anterior à Lei nº 10.931/2004).
Sempre que o prazo legal não seja estabelecido para exercício de pretensão nascida da violação de um direito subjetivo, mas se relaciona com a própria subsistência do direito, o caso não é de prescrição e sim, de decadência (direito potestativo). O direito potestativo é exercido através de ações constitutivas e não condenatórias.
Por isso, a doutrina é unânime em qualificar o prazo de perempção da hipoteca como prazo decadencial. Nesse sentido ensinou Pontes de Miranda que o prazo em questão “é preclusivo. Não suspende, nem se interrompe” (obra citada, pág. 308). Vale dizer “trata-se de prazo de caducidade, independe do prazo da obrigação garantida e de sua prescrição”, “porque de natureza fatal”.
Não é diferente o posicionamento jurisprudencial: “O decurso do prazo de trinta anos da inscrição da hipoteca determina a sua nulidade automática se não houver sido antes providenciada a prorrogação do contrato, não podendo ser interrompido como se tratasse de prazo de prescrição. Completados os trinta anos desaparece a hipoteca de pleno direito, passando a dívida a ficar sem garantia” ( TJSP, Emb. Inf, 45.810, Rel. Des. Ulysses Dória, ac. 16.03.53, RT 212/401).Tem-se que o prazo de perempção da hipoteca, segundo o artigo 1.485 do Código Civil, é de decadência e não de prescrição.
Carlos Maximiliano (Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis, 1955, n. 221, pág. 258) ensinou que “a decadência, portanto, do direito nascido no regime da lei velha continua por ela regida, ainda que o prazo só venha a se consumar sob o império da lei nova.”
Entendendo-se que os prazos decadenciais integram a própria substância do direito potestativo, as hipotecas contratadas e registradas sob o regime do Código Civil de 1916 continuam sujeitas ao prazo de perempção de trinta anos, previsto no artigo 817, mesmo que seu termo se dê na vigência do Código Civil de 2002, como ensinou Humberto Theodoro Júnior (A extinção da hipoteca pelo decurso do tempo no regime do Código Civil de 2002).
As hipotecas contratadas e registradas sob o regime do Código Civil de 1916 continuam sujeitas ao prazo de perempção de trinta anos, previsto em seu art. 817, mesmo que seu termo final se dê na vigência do Código de 2002.
Em razão da natureza decadencial do prazo referido no art. 1.485 do Código Civil, não se deve aplicar, no direito potestativo de renovar ou reconstituir a hipoteca em vias de perempção, a regra de direito intertemporal estatuída pelo art.2.028 do atual Código Civil.
As hipotecas pactuadas na vigência do Código Civil de 2002, antes da reforma do art. 1.485 pela Lei nº10.931/2004,extinguir-se-ão em vinte anos, de acordo com a lei do tempo de sua constituição, já que as inovações legislativas não afetam direitos sujeitos a prazo de decadência.
X - USUCAPIÃO E EXTINÇÃO DA HIPOTECA
Sabe-se que a usucapião é aquisição originária da propriedade. Não seria possivel tratar-se o adquirente como subordinado ao princípio da permanência da hipoteca a despeito das alienações se mais do que a hipoteca é o domínio, ou a enfiteuse, e essa ou aquele pode extinguir-se a alguém por ter o terceiro adquirido o bem, ou adquirido o bem sem gravame enfitêutico. Como considera a melhor doutrina, por outro lado, não se pode afastar a adquiribilidade por usucapião pelo próprio dono do bem gravado se a causa está à base do seu direito sobre bem tido como gravado.
A aquisição do bem através da usucapião se dá por ação meramente declaratória.
Sabe-se que a hipoteca atinge o bem sob dominio ou sob enfiteuse, portanto apanha os direitos que dele, ou dela, se irradiam, inclusive o direito à posse. Não tem o titular do direito de hipoteca o direito à posse, mas isso nada tem com a matéria em discussão. Daí a possibilidade de se completar tempo de usucapião por parte de possuidores que admitiram ou não admitiram a hipoteca. Como ensinou Pontes de Miranda (obra citada, Bookseler, pág. 387), na ordinariedade dos casos, o usucapiente está sujeito à eficácia real da hipoteca. Porém há espécies em que a aquisição da propriedade é livre de hipotecas, ou de outros direitos reais.
Para Pontes de Miranda, a extinção da hipoteca pela aquisição por usucapião, livre de gravame do bem, é independente do prazo preclusivo para extinção das hipotecas, que era fixado no artigo 1.485 do Código Civil revogado. Pode o prazo estar precluso ou não.
Passa-se o mesmo a respeito das servidões que se podem adquirir sobre o bem gravado.
Sendo assim o terceiro adquirente que nega a existência da hipoteca ou a sua validade ou eficácia põe-se na situação de quem vai adquirir por usucapião o bem, sem gravame, por ser sem reconhecimento desse gravame a sua propriedade. No direito brasileiro não haveria norma similar a do artigo 2.880 do Còdigo Civil italiano e do Código revogado, de 1865, artigo 2.030. O artigo 849, VI, do Código Civil de 1916, revogado, previu, em geral, a extinção pela prescrição da ação real, e, fora daí, a propriedade. O Código revogado beneficiou a todos os donos e enfiteutas, sejam eles devedores dadores de hipoteca, terceiros doadores e terceiros adquirentes.