O Brasil é referência mundial no número de homicídios. Isto é fato. É a principal pauta da imprensa nacional e internacional quando o assunto é Brasil e traz ao país incalculáveis prejuízos diretos e indiretos. As atenções sempre são voltadas àquelas fatalidades relacionadas a crimes envolvendo a subtração de patrimônio da vítima ou o tráfico de drogas e as respectivas desavenças.
A situação é agravada porque vem crescendo a sensação de impunidade no país em relação àqueles que não cumprem as normas. Isto ocorre porque atualmente uma decisão judicial é cumprida quando e por quem quer sem que haja maiores sanções que realmente desestimule a prática, principalmente para quem detém influência e capacidade financeira para interpor intermináveis recursos a cada instância.
E a sensação de impunidade é ainda maior quando envolvem infrações administrativas e penais praticadas no âmbito do trânsito, ou seja, em vias públicas geralmente a bordo de veículos automotores, conduzidos por indivíduos sem qualquer respeito ao próximo .
As mortes e lesões causadas por indivíduos que se valem de veículos automotores para tanto parecem ser toleradas pela sociedade, ao menos em proporção superior àquelas fatalidades envolvendo, por exemplo, armas brancas ou de fogo. Independentemente do que regem as letras e teorias do direito, dever-se-ia levar em conta que o bem atingido é o mesmo, ou seja, a vida.
Campanha educativa deve andar lado a lado com a campanha repressiva no que tange às violações das regras de trânsito. Aquela voltada a quem tenha força de vontade em mudar seus vícios e impulsos. Já esta para aqueles que necessitam um estímulo maior que o respeito ao próximo e a si próprio para mudar sua conduta quando em meio à sociedade.
O trabalho desempenhado pelo agente de trânsito ao aplicar as normas de trânsito nas vias públicas impacta diretamente no volume de trabalho e recursos do corpo de bombeiros e serviços médicos de urgência e pronto-socorro, bem como as atividades policiais e ainda previdência social, visto que um trânsito harmônico devidamente fiscalizado tende a não gerar brigas entre condutores, acidentes e demais conflitos.
Vai bastante além daquela visão discriminatória que tacha o agente de trânsito como mero aplicador de multa a fim de gerar receita para o Estado. O agente de trânsito tem como missão principal fazer cumprir as normas de trânsito visando conferir fluidez e harmonia ao sistema. E dentro desse contexto se valer de instrumentos e medidas que obviamente desagradam à sociedade, inclusive aos devedores e aventureiros.
O trânsito abriga indivíduos com as mais diversas índoles e naturezas. E em meio a esse conflito em tese organizado de interesses de pedestres, animais e condutores com seus veículos está o agente de trânsito, a quem cabe exercer o poder de polícia para organizar o sistema. Em regra é visto como vilão do sistema, quando busca apenas representar o Estado fazendo valer seus interesses contidos na lei.
E por isso a categoria, abrangida por servidores das esferas municipal, estadual e federal, buscou fazer parte expressamente do artigo 144 da Constituição Federal que trata da segurança – o que ocorreu através da Emenda Constitucional nº 82, a qual diz:
“§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:
I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e
II - compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.”
Buscou posteriormente a autorização para portar arma de fogo, ante à rotina perigosa vivenciada pelos agentes ao ter que se deparar com indivíduos das mais diversas índoles. E assim o Congresso Nacional sabiamente apoio o pleito, de modo a autorizar o porte pelos referidos agentes quando em serviço.
Todavia no dia 27 de outubro de 2017 foi publicada no Diário Oficial da União[1] a Mensagem nº 419, de 26 de outubro de 2017, na qual a Presidência da República informou ao Senado Federal que vetou integralmente por contrariedade ao interesse público. Lançou para tanto as seguintes razões, elaboradas em conjunto com o Ministério da Justiça e a Casa Civil:
“A proposta de alteração do Estatuto do Desarmamento vai de encontro aos objetivos e sistemática do próprio Estatuto de buscar restringir o porte de arma de fogo. A despeito da inclusão do § 10 no artigo 144 da Constituição, os órgãos e entidades de trânsito não se enquadram na definição constitucional de força policial stricto sensu , conforme rol taxativo elencado no caput do mesmo artigo. Nos termos do citado parágrafo, as atividades de segurança viária compreendem a educação, engenharia e fiscalização de trânsito exercidas pelos profissionais de órgãos e entidades competentes. Ademais, no caso de risco específico à ordem pública e à incolumidade das pessoas, as atividades de segurança viária devem ser exercidas com auxílio dos órgãos de segurança pública competentes pelo policiamento ostensivo de trânsito”.
Em que pese tal veto ter avocado o interesse público, cabe frisar que não é interesse público – conseqüentemente da sociedade e do próprio Estado – ter que remunerar dois servidores para fazer uma atividade que um poderia fazer se tivesse condições de segurança para tanto. Esta medida literalmente atropela o princípio da eficiência tão buscado pelo Constituinte quando emendou a Carta de 1988.
Ou seja, da forma pregada pelo veto do Excelentíssimo Presidente da República o agente de trânsito para exercer sua função, quando em risco – ou seja, sempre – deve estar auxiliado por órgãos de segurança pública competente pelo policiamento de trânsito. Quanta eficiência!
O conceito de segurança pública, segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) em seu site, é “uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade e da violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei”[2].
Cabe ao agente de trânsito reprimir diversas infrações que são simultaneamente enquadradas pela lei como crime. Além disso termina se deparando, ainda que sem sua vontade, com outras práticas criminosas, como abordagens a veículos furtados ou roubados, veículos que transportam substâncias ou produtos ilícitos ou mesmo indivíduos procurados pela justiça.
Enfim, o agente de trânsito sempre buscou autorização para portar arma de fogo unicamente pelo fato de ser um potencial alvo, visto se tratar de um servidor do Estado desempenhando funções públicas de natureza fiscalizatória – exercício de poder de polícia – que em muitas ocasiões restringem direitos de cidadãos infratores, os quais em muitas ocasiões se voltam contra o agente.
A maioria esmagadora dos indivíduos dentro do sistema de trânsito é composta por pessoas honestas e que não oferecem riscos ao agente quando em abordagem. Mas a mera existência de uma minoria que seja potencialmente agressora durante uma abordagem justifica o porte de arma aos referidos agentes.
A política fracassada do governo brasileiro restringe ao máximo a posse e o porte de armas a servidores públicos e demais cidadãos que exercem atividades potencialmente perigosas enquanto não consegue sequer frear a entrada de armamentos no país. Ou seja, a cultura e a legislação atual de controle de armas só têm efetividade para com o cidadão de bem.
E dessa forma, medidas como a tomada pelo Excelentíssimo Presidente da República apenas provam que o Brasil pouco se importa com o trânsito, o qual vem sendo palco e responsável por mais mortes e incapacidades que muitas guerras mundo afora. As conseqüências finais deságuam na previdência social, a quem cabe sustentar órfãos, incapazes e viúvos.
Notas
[1] Disponível em http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1000&pagina=1&data=27/10/2017. Acesso em 27 de outubro de 2017.
[2] Disponível em http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/orgaos-de-seguranca-1/conceitos-basicos. Acesso em 28 de outubro de 2017.