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Foro por prerrogativa de função, privilégio ou garantia?

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Quais aspectos do foro por prerrogativa de função causam tanta revolta na opinião pública?

RESUMO: O instituto do foro por prerrogativa de função tem origem na Constituição Republicana em 1891, em seu art. 57, § 2º, que deu competência ao Senado para julgar os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade e, ao STF, para julgar os juízes federais inferiores (art. 57, § 2º) e o Presidente da República e os Ministros de Estado, nos crimes comuns e de responsabilidade (art. 59, II). Desde então, ele se fez presente em todas as demais Constituições, mesmo recebendo muitas críticas da sociedade civil organizada. Contudo, a Constituição de 1988 não trouxe nenhuma vedação ao Foro por Prerrogativa de Função; ao contrário, ampliou essa garantia a outras funções dos três poderes. A presente obra tem por objetivo a análise do instituto do foro por prerrogativa de função. Abordando a sua origem, conceito, natureza jurídica e evolução histórica no direito constitucional brasileiro. Neste, serão discutidas as questões polêmicas que cercam o referido instituto e os princípios constitucionais que regem a Constituição Federal. Ao longo do desenvolvimento, será analisado o atual cenário político e a ligação com o dispositivo em questão. Por fim, será examinada a Proposta de Emenda a Constituição 10/2013 que modifica drasticamente o instituto do foro por prerrogativa.  

Palavras-chave: Instituto; Foro; Prerrogativa; Função; Princípios.

SUMÁRIO: 1. Conceito e natureza jurídica; 2. Origem e evolução histórica; 3. O foro por prerrogativa de função diante dos princípios constitucionais; 3.1.  Princípio da igualdade; 3.2. Princípio do juiz natural; 3.3. Princípio do duplo grau de jurisdição; 4. Atual cenário do foro por prerrogativa de função; 5. A incapacidade dos tribunais diante da prerrogativa de foro; 6. A pec 10/2013 e a necessidade de mudanças; 7. Considerações finais. 


INTRODUÇÃO 

Um assunto que ganhou força nos últimos anos foi o Instituto do Foro por Prerrogativa da Função, popularmente conhecido como “Foro Privilegiado”. Instituto esse que foi criado com o intuito de garantir o julgamento de autoridades públicas por magistrados com o mesmo nível hierárquico ou superior ao réu que está sendo julgado. Dessa forma, evitando que essas pessoas estejam sujeitas a um julgamento parcial, já que, em tese, um magistrado de instância inferior poderia estar sujeito a pressões políticas.   

O objeto de pesquisa do presente trabalho está pautado na análise de dois entendimentos divergentes. Um deles se posiciona contra a permanência de tal instituto em nosso ordenamento jurídico, pois entende que ele viola princípios fundamentais previstos em nossa Constituição Federal. O outro posicionamento, por sua vez, vai de encontro aos ideais basilares da criação desse dispositivo, entendendo-o como fundamental para a segurança jurídica. Porém, admite a necessidade de modificações para que ele produza o efeito desejado. 

Posto isso, iremos ao final concluir se o Foro por Prerrogativa da Função é uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público ou um privilégio assegurado a determinadas autoridades públicas, de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de primeira instância. 


1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA 

O Instituto do Foro por Prerrogativa de Função se dá através da competência em razão da pessoa (ratione personae), estabelecida pela própria Constituição Federal de 1988. A competência em razão da pessoa “consiste no poder que se concede a Órgãos Superiores da Jurisdição de processarem e julgarem determinadas pessoas”. (TOURINHO FILHO, 2003, p. 129)  Segundo Frederico Marques, aludida competência originária dos Tribunais constitui uma garantia: 

No Processo Penal, o que se ensina é que, em lugar de privilégio, o que se contém nessa competência ratione personae constitui, sobretudo, uma garantia. Os dispositivos que a estabelecem, como dizia o Professor Beleza dos Santos, nas lições proferidas em Coimbra em 1919, longe de representarem um favor, muito ao contrário: exprimem um dever de justiça. É o que também ensina Alcallá-Zamora, para quem não se cuida, na espécie, de um privilégio odioso, e sim, de elementar precaução para amparar, a um só tempo, o acusado e a justiça e, ainda, para evitar por esse meio à subversão resultante de que inferiores julgassem seus superiores. (apud DELGADO, 2004, p. 10). 

Fundada em uma espécie de competência originária que determinados órgãos de jurisdição superior possuem para conhecer, processar e julgar determinados cargos e funções públicas, esse instituto sobrepõe-se às demais espécies de competência previstas no ordenamento jurídico brasileiro em razão de sua especialidade.  Deste modo, é a importância do cargo público que está resguardada pela prerrogativa de foro e não o sujeito que a desempenha. 

A prerrogativa de foro está ligada à função desempenhada, tanto que, ao cessar o desempenho desta, seja por aposentadoria, por término do mandato ou por exoneração, finda também os efeitos do mecanismo. E assim, o indivíduo que ocupava o cargo que gozava desse dispositivo passa a ser julgado pelo juiz de primeira instância.  O legislador constituinte atribuiu essa garantia a alguns cargos e funções públicas, com o objetivo de dar a eles em um possível julgamento, uma maior segurança nascida do fato de que passam a ser julgados por um órgão colegiado, o qual os magistrados que o compõem são mais experientes, já que em tese os juízes de primeira instância estariam mais pretensos a pressões políticas. Eugênio Pacelli de Oliveira ao comentar as regras que dispõem sobre Foro por Prerrogativa afirmou:    

Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli, de Curso de Processo Penal, 2015, p. 179). 

O Foro por Prerrogativa de Função tem o caráter imperativo. Devido a essa natureza jurídica, ele não pode ser renunciado por aquele que goza dos seus efeitos, muitos menos, pode ser preterido por anseio de outros. 


2. ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA 

Segundo os historiadores, o foro por prerrogativa de função tem origem no Antigo Egito, onde existia um tribunal composto por setenta juízes que eram responsáveis pelo julgamento de senadores, profetas, chefes militares, cidades e tribos rebeldes. Esse tribunal ficou conhecido como Sinédrio. 

Depois disso, as notícias sobre esse dispositivo remontam a última fase do Império Romano no século V, no qual, sob a forte influência da igreja católica, senadores eram julgados por seus pares e os eclesiásticos pelas jurisdições superiores. José Augusto Delgado leciona que:  

“a Igreja Católica influenciou (...) as regras do processo criminal, incentivando o foro privilegiado para determinadas pessoas, no século V, no fim do Império Romano. Defendeu e fez prevalecer à ideia de que os ilícitos criminais praticados por senadores fossem julgados pelos seus iguais. Os da autoria dos eclesiásticos processados e julgados, igualmente, por sacerdotes que se encontrassem e maior grau hierárquico. Os reis, a partir do século XII, começaram a lutar para que a influência da Igreja Católica fosse afastada nos julgamentos de pessoas que exerciam altas funções públicas. (...)

[A] legislação processual daquela era passou a adotar foros privilegiados ‘não sobre natureza dos fatos, mas sobre a qualidade das pessoas acusadas, estabelecidos em favor dos nobres, dos juízes, dos oficiais judiciais, abades e priores etc., fidalgos e pessoas poderosas, casos esses que se confundiam muitas vezes com os casos reais.

(...) Durante o século XII ao XV, em Portugal, enquanto vigorou as Ordenações Filipinas, ‘os fidalgos, os desembargadores, cavaleiros, doutores, escrivães da Real Câmara, e suas mulheres, ainda que viúvas, desde que se conservando em honesta viuvez, deputados da Real Junta do Comércio e da Companhia Geral da Agricultura das vinhas do Alto Doiro’ (...) tinham o privilégio do relaxamento da prisão quando pronunciados, embora a lei determinasse que deveria se proceder a captura dos réus em tal situação, tudo em razão da qualidade pessoal que possuíam, ficando, apenas, à disposição do Juízo, sob promessa de cumprir as suas ordens”.

7. 7 DELGADO, José Augusto. “Foro por prerrogativa de função. Conceito. Evolução histórica. Direito comparado. Súmula 349 do STF. Cancelamento. Enunciados”. In Estudos em Homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 329-30. 

Dessa forma, percebe-se que as Ordenações asseguravam aos nobres alguns privilégios, pois impediam que estes fossem sujeitados ao tormento (um tipo de interrogatório onde se empregava o método da tortura até que o réu confessasse a verdade ou aquilo que eles queriam ouvir). Com a proclamação da primeira Constituição Política do Império do Brasil, em 25 de março de 1824, chegou ao fim as Ordenações do Reino. Com isso, estava extinto o foro privilegiado e surgia o Foro por Prerrogativa de Função, mais próximo dos moldes que conhecemos hoje. O art. 179, inciso XVII da Constituição do Império é expresso ao banir os privilégios pessoais. 

Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, são garantidos pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:  17.º À exceção das causa, que por sua natureza pertencem a Juízes particulares, na conformidade das Leis, não haverá fôro privilegiado, nem Comissões especiais nas causas cíveis ou crimes. (ALMEIDA, 1959, p.158) 

Com isso, pôs-se fim ao julgamento de indivíduos levando em consideração as suas características pessoais. A Constituição do Império criou o Tribunal de Justiça (art. 163) e previa a prerrogativa de foro em seu art. 164, ao dizer que: “A êste (sic) tribunal compete: §2º Conhecer dos delitos e erros de ofício que cometerem os seus ministros, os das Relações, os empregados do Corpo Diplomático e os Presidentes das Províncias” (ALMEIDA, 1959, p.157).  Esta Carta Magna, em seu art. 47, concedia foro por prerrogativa aos membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, Senadores e Deputados, estes durante o mandato, bem como, aos Secretários e Conselheiros de Estado para os crimes de responsabilidade. Essas pessoas, em razão do relacionamento que tinham com o Estado, eram julgadas pelo Senado, conforme o artigo mencionado da referida Constituição. 

A Constituição de 1824 determinou, ainda, privilégio absoluto à pessoa do Imperador; este não estava sujeito a nenhum tipo de responsabilidade. (art. 99). A Constituição de 24 de fevereiro de1891, a primeira Constituição Republicana, previa que competia ao Senado julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade e ao Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, cabendo, nos dois casos, à Câmara dos Deputados a acusação (art. 53 c/c 29 e 59, I, a). A Constituição de 1934 não mais deu competência ao Senado para julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade. Em tal caso, o julgamento seria feito por um Tribunal Especial, constituído para esse fim (art. 58).

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Ela determinou, ainda, que a Corte Suprema, nome dado ao hoje Supremo Tribunal Federal, seria a competente para processar e julgar, pela prática dos crimes comuns: Presidente da República, Ministros da Corte Suprema, Ministros de Estado, Procurador-Geral da República, Juízes dos Tribunais Federais e das Cortes de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, Ministros do Tribunal de Contas, Embaixadores e Ministros diplomáticos.  A Carta de 10 de novembro de1937 foi inovadora. Deu competência originária a um denominado Conselho Federal, órgão composto por representantes dos Estados e por dez membros nomeados pelo Presidente da República (art. 50), para processar e julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade (art. 86). 

A partir da Constituição Federal de 1946, em face do processo de democratização, foram configuradas várias situações de foro por prerrogativa, as quais permanecem hoje definidas, expressamente, na Constituição Federal de 1988.  O foro por prerrogativa de função deu origem à Súmula n° 394 do STF, que o alongava ao ex-agente público, para os casos de fatos ilícitos penais tentados ou consumados durante o exercício do mandato, ainda que o inquérito ou a ação penal fossem iniciados após a cessação daquele exercício. A referida Súmula resultou de interpretação dada pela jurisprudência aos artigos 59, I, 62, 88, 92, 100, 101, a, b e c, 104, II, 108, 119, VII, 124, IX e XII, da CF de 1946, e, ainda, das Leis n° 1.079/50 e n° 3.258/59. 

Em 1967, foi outorgada uma nova Constituição que foi renovada pela Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969, criando a Constituição da República Federativa do Brasil. Umas das inovações trazidas por essa Carta, foi em relação ao rito do processo e julgamento nos casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal, que passou a ser fundado em seu regimento interno, e outra advindo da aprovação da Emenda Constitucional nº. 7, de 13 de abril de 1977, que distribuiu a competência penal originária ao Tribunal Federal de Recursos, passando este a ser competente para processar e julgar os juízes federais, do trabalho e os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho, bem como dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal e os do Ministério Público da União nos crimes comuns e de responsabilidade. 

Com o fim do Regime Militar, deu-se a promulgação da Constituição Federal de 1988. Esta, por sua vez, tem como características marcantes a democracia e o caráter garantista. A CF de 1988 delimitou o Poder Judiciário. Instituiu o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, os quais substituíram o Tribunal Federal de Recursos e deu ao Supremo Tribunal Federal o título de guardião supremo.  A CF 1988 trouxe todas as possibilidades e os tribunais que gozam de competência originária para, julgar as autoridades públicas que possuem a prerrogativa de foro dada função que exercem.

A mesma manteve a jurisdição extraordinária dos órgãos políticos, atribuindo ao Senado Federal à competência originária de processar e julgar o Presidente, o Vice Presidente da República pelos crimes comuns e de responsabilidades, e os Ministros de Estado, os Comandantes das Forças Armadas nos crimes de mesma natureza conexos com aqueles. Também previu a competência originária para o julgamento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União.  Atribui ao Senado Federal a competência para julgar os membros do Congresso Nacional pela prática de crimes de responsabilidade. 


3. O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DIANTE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS   

Para que a lei surta o efeito desejado para o qual ela foi criada, é de fundamental importância que esteja em consonância com os valores mais pertinentes que norteiam as regras de convivência da sociedade a qual ela foi destinada. Isso se faz necessário porque nem sempre o interesse do legislador coincide com os anseios da sociedade, muitas vezes contaminado pela corrupção ou por desejos que beneficiam apenas uma pequena parte privilegiada da população. 

Dessa forma, os princípios buscam a garantia dos anseios sociais, orientando e ponderando o trabalho do legislador. Um ordenamento jurídico que não esteja pautado nos princípios basilares de sua nação está condenado ao fracasso. De fato, os princípios são fundamentos nucleares que, por sua superioridade, influenciam em todo o sistema jurídico, difundindo seu conteúdo sobre as demais normas. Ao comentar sobre a importância dos princípios, Celso Antônio Bandeira de Mello diz que: 

[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, 2002, p. 807-808). 

A existência dos princípios garante a solução de casos difíceis, ao qual o direito positivado, em determinadas circunstâncias não consegui suprir os vazios jurídicos não abrangidos pela letra da lei. Desta forma, os princípios proporcionam variadas soluções que o exercício do direito exige para os casos mais complexos. 

3.1.  PRINCÍPIO DA IGUALDADE 

Para a criação e a manutenção de um Estado Democrático de Direito, faz-se necessário e indispensável a aplicação do princípio da igualdade. Esse é um dos princípios basilares para a criação de um ordenamento jurídico harmonioso, onde as leis possam ser aplicadas indistintamente a todos. O legislador constituinte estabeleceu, na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, o preceito de que “todos são iguais perante a lei”. Conforme esse princípio, todas as pessoas são iguais perante a lei em direitos e deveres, sendo inadmissível qualquer discriminação em razão de sexo, raça, crença religiosas e política. No entanto, a regra preceituada, não quer dizer que o legislador ao criá-la, quis que todos fossem tratados igualmente de forma indeterminada. 

Para uma conclusão acerca desse princípio, faz-se necessário uma análise sob dois aspectos. Dessa forma, encontraremos ao fundo o real sentimento que o legislador constituinte quis nos passar ao promulgar tal fundamento. Em seu sentido formal, todos devem ser tratados de forma isonômica diante da lei, não havendo espaço para distinções entre os cidadãos. Isso fica evidente na redação do caput do art. 5º da Constituição Federal. Deste modo, sob seu aspecto formal, o princípio da igualdade procura evitar que o legislador, ao produzir alguma lei, promova desigualdades entre os cidadãos. 

Porém, para extrairmos tudo o que se faz necessário para a aplicação correta desse princípio, se faz necessário à análise sob seu aspecto material, ou seja, buscar uma verdadeira efetivação da igualdade, afastando-a do seu caráter formal e conduzindo-a para um julgamento diante do caso concreto. Ao publicar a redação que trata do principio da igualdade na Constituição Federal, o legislador cuidou para que todas as normas que fossem criadas posteriormente, também obedecessem ao preceito que procura a constante efetivação dos direitos e garantias dos indivíduos, o que nada mais é do que a busca por sanar as desigualdades. Segundo Alexandre de Moraes, 

O princípio da igualdade, consagrado pela Constituição, opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (MORAES, Alexandre de, 2006, p. 32). 

Na busca para desenvolver critérios com o objetivo de facilitar o reconhecimento de possíveis violações ao princípio da igualdade, diversos doutrinadores criaram alguns conceitos que auxiliam nesse trabalho. Um deles, Alexandre de Moraes (2005, p. 32), sobre o assunto, ensina reconhecer a desigualdade pautando-se nas noções de razoabilidade e de proporcionalidade, sustentando que sua transgressão ocorre quando o tratamento desigual escapa a um critério objetivamente justificável. Em suas palavras: 

Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. (MORAES, Alexandre de, 2005, p. 32). 

Posto isso, para uma aplicação efetiva do referido princípio, não basta apenas tratar de igual maneira a todos, levando em consideração apenas a norma positivada. Faz se necessária uma análise diante do aspecto fático. Pois, apesar de criada para regulamentar as relações de seres de uma mesma espécie, os homens não são iguais. Dessa forma, se o sistema jurídico desse tratamento igualitário a pessoas distintas, por inúmeros fatores como, educação, condições financeiras, sociais, dentre outras. Nada mais estaria a fazer, do que apenas promover maiores desigualdades. Como é sabido, Aristóteles já dizia que a igualdade entre os homens somente poderia ser alcançada pelo tratamento igual para os iguais e pelo tratamento desigual para os desiguais, na medida de suas desigualdades. No mesmo sentido, destaca Alexandre de Moraes: 

Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça [...] (MORAES, Alexandre de, 2006, p. 30). 

Diante de tais ensinamentos, fica evidente que o Instituto do Foro por Prerrogativa de Função não viola o princípio da igualdade. Pois, os cargos e funções que gozam de tal garantia que é atribuída pela própria Constituição Federal, são de extrema relevância para a organização do Estado Democrático de Direito. Desse modo, é impossível dar aos indivíduos que ocupam esses cargos, o mesmo tratamento dado a um cidadão comum. Outro ponto que comprova isso é o fato de apenas o cargo ou função está revestido de tal prerrogativa. De modo que, ao cessar ou extinguir-se o cargo ou função, finda também os efeitos desse dispositivo e a remessa da ação é enviada para o juízo de primeiro grau. Neste sentido temos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que culminou no cancelamento da Súmula 394. 

PRERROGATIVA DE FORO - EXCEPCIONALIDADE - MATÉRIA DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL - INAPLICABILIDADE A EXOCUPANTES DE CARGOS PÚBLICOS E A EX-TITULARES DE MANDATOS ELETIVOS - CANCELAMENTO DA SÚMULA 394/STF - NÃO INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA "PERPETUATIO JURISDICTIONIS" - POSTULADO REPUBLICANO E JUIZ NATURAL - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

- O postulado republicano – que repele privilégios e não tolera discriminações - impede que prevaleça a prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido durante o período de atividade funcional, se sobrevier a cessação da investidura do indiciado, denunciado ou réu no cargo, função ou mandato cuja titularidade (desde que subsistente) qualifica-se como o único fator de legitimação constitucional apto a fazer instaurar a competência penal originária da Suprema Corte (CF, art. 102, I, "b" e "c"). Cancelamento da Súmula 394/STF (RTJ 179/912-913).

- Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. O reconhecimento da prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nos ilícitos penais comuns, em favor de exocupantes de cargos públicos ou de ex-titulares de mandatos eletivos transgride valor fundamental à própria configuração da ideia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade.

- A prerrogativa de foro é outorgada, constitucionalmente, "ratione muneris", a significar, portanto, que é deferida em razão de cargo ou de mandato ainda titularizado por aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado, sob pena de tal prerrogativa - descaracterizando-se em sua essência mesma - degradar-se à condição de inaceitável privilégio de caráter pessoal.

Precedentes. Inq 1376 AgR / MG - MINAS GERAIS. AG.REG.NO INQUÉRITO. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 15/02/2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 16-03-2007 PP-00021 EMENT VOL-02268- 01 PP-00110 

Deste modo, percebe que o Judiciário ao encontrar evidências de que o sentido do instituto está sendo desvirtuado, ele se manifesta para que não acabe a se transformar num “Foro Privilegiado”. Portanto, nota-se que não há ofensa ao princípio da igualdade, pois, o tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais visa uma maior igualdade a todos os cidadãos. 

3.2. PRINCÍPIO DO JUÍZ NATURAL 

O Princípio do Juiz Natural previsto de forma implícita na Constituição Federal de 1988 consiste na necessidade de o ordenamento jurídico assegurar, anteriormente ao caso concreto, qual será o órgão judiciário competente para julgar o autor de um crime.  Segundo Nelson Nery Júnior (2009, p. 126), “o princípio do juiz natural tem uma característica tridimensional, sendo: a) não haverá juízo ou tribunal de exceção; b) todos terão direito a ser submetido a julgamento por juízes previamente constituídos na forma da lei e c) o juízo tem que ser imparcial”.  Portanto, para que um órgão jurisdicional esteja de acordo com o princípio do juiz natural, é necessário que ele seja previsto anteriormente ao acontecimento do fato, de forma genérica e abstrata, definindo qual autoridade judiciária irá julgar determinados fatos. O referido princípio tem como objetivo evitar a criação de foros privilegiados, com julgamentos parciais. 

É importante ressaltar que não se podem confundir Tribunais de exceção com Justiças especiais e foro por prerrogativa da função. As Justiças especiais, como a Justiça Eleitoral, são previamente previstas na Constituição Federal, de forma genérica e abstrata, instituídas para o processamento e julgamento de matérias específicas.  Com isso, não há que se falar em ofensa ao princípio do juiz natural, pois as Justiças especializadas não constituem tribunais de exceção, por serem antecipadamente asseguradas antes da ocorrência do fato. Neste sentido: 

Assim como o poder do Estado é um só (as atividades legislativa, executiva e judiciária são formas e parcelas do exercício desse poder), a jurisdição também é. E para a facilitação do exercício dessa parcela de poder é que existem as denominadas justiças especializadas. Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad hoc, não abrange as justiças especializadas. (NERY JÚNIOR, Nelson, 2009, p. 127). 

Da mesma forma, a prerrogativa de foro em razão da função, e a garantia do juiz natural, coexistem harmonicamente. A prerrogativa de foro em razão da função, assim como as demais espécies de competência, está prevista na Constituição Federal e em alguns diplomas legais infraconstitucionais de forma prévia, genérica e abstrata no ordenamento jurídico. Portanto, permanecendo à prerrogativa de foro em consonância com a característica tridimensional do princípio do juiz natural, não há como cogitar sua afronta a esse princípio constitucional. 

3.3. PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO 

O princípio do Duplo Grau de Jurisdição adotado pelo ordenamento jurídico pátrio tem natureza Constitucional, tanto de forma implícita no texto normativo, quanto de forma explicita no Tratado de São José da Costa Rica. Como é sabido, a Constituição da Federal assegura que, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais”, o que acontecera. 

Sua principal característica se dá pela reanálise do processo, ainda que esse reexame aconteça na mesma jurisdição que proferiu o ato ora questionado. O Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacificado de que, com a ratificação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o duplo grau de jurisdição foi constituído expressamente no ordenamento jurídico brasileiro como norma infraconstitucional. Neste sentido, advém a decisão no HC nº 79785, relatada pelo então Ministro Sepúlveda Pertence: 

Duplo grau de jurisdição no Direito brasileiro, à luz da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

1. Para corresponder à eficácia instrumental que lhe costuma ser atribuída, o duplo grau de jurisdição há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado à órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária.

2. Com esse sentido próprio - sem concessões que o desnaturem - não é possível, sob as sucessivas Constituições da República, erigir o duplo grau em princípio e garantia constitucional, tantas são as previsões, na própria Lei Fundamental, do julgamento de única instância ordinária, já na área cível, já, particularmente, na área penal.

3. A situação não se alterou, com a incorporação ao Direito brasileiro da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), na qual, efetivamente, o art. 8º, 2, h, consagrou, como garantia, ao menos na esfera processual penal, o duplo grau de jurisdição, em sua acepção mais própria: o direito de "toda pessoa acusada de delito", durante o processo, "de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior".

4. Prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos, que impede, no caso, a pretendida aplicação da norma do Pacto de São José: motivação.

II. A Constituição do Brasil e as convenções internacionais de proteção aos direitos humanos: prevalência da Constituição que afasta a aplicabilidade das cláusulas convencionais antinômicas.

1. Quando a questão - no estágio ainda primitivo de centralização e efetividade da ordem jurídica internacional - é de ser resolvida sob a perspectiva do juiz nacional - que, órgão do Estado, deriva da Constituição sua própria autoridade jurisdicional - não pode ele buscar, senão nessa Constituição mesma, o critério da solução de eventuais antinomias entre normas internas e normas internacionais; o que é bastante a firmar a supremacia sobre as últimas da Constituição, ainda quando esta eventualmente atribua aos tratados a prevalência no conflito: mesmo nessa hipótese, a primazia derivará da Constituição e não de uma apriorística força intrínseca da convenção internacional.

2. Assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente que o das emendas a ela e aquele que, em consequência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b).

3. Alinhar-se ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não implica assumir compromisso de logo com o entendimento - majoritário em recente decisão do STF (ADInMC 1.480) - que, mesmo em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais, preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis ordinárias.

4. Em relação ao ordenamento pátrio, de qualquer sorte, para dar a eficácia pretendida à cláusula do Pacto de São José, de garantia do duplo grau de jurisdição, não bastaria sequer lhe conceder o poder de aditar a Constituição, acrescentando-lhe limitação oponível à lei como é a tendência do relator: mais que isso, seria necessário emprestar à norma convencional força ab-rogante da Constituição mesma, quando não dinamizadoras do seu sistema, o que não é de admitir.

III. Competência originária dos Tribunais e duplo grau de jurisdição.

1. Toda vez que a Constituição prescreveu para determinada causa a competência originária de um Tribunal, de duas uma: ou também previu recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, II, a; 105, II, a e b; 121, § 4º, III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu.

2. Em tais hipóteses, o recurso ordinário contra decisões de Tribunal, que ela mesma não criou, a Constituição não admite que o institua o direito infraconstitucional, seja lei ordinária seja convenção internacional: é que, afora os casos da Justiça do Trabalho - que não estão em causa - e da Justiça Militar - na qual o STM não se superpõe a outros Tribunais -, assim como as do Supremo Tribunal, com relação a todos os demais Tribunais e Juízos do País, também as competências recursais dos outros Tribunais Superiores - o STJ e o TSE - estão enumeradas taxativamente na Constituição, e só a emenda constitucional poderia ampliar.

3. À falta de órgãos jurisdicionais ad quo, no sistema constitucional, indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com a Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da garantia invocada.

RHC 79785 / RJ. Relator (a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento: 29/03/2000. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 22-11 2002 PP-00057. EMENT VOL-02092-02 PP-00280. RTJ VOL-00183-03 PP-01010Parte(s). 

Desse modo, percebe-se que o nosso ordenamento jurídico recebeu, e deu, previsão expressa ao princípio do duplo grau de jurisdição, e que essa garantia possui natureza infraconstitucional. Com isso, observa-se que a prerrogativa de foro em razão da função não afronta o duplo grau de jurisdição. Por ter como característica a infraconstitucionalidade, o referido princípio não está em desacordo com uma norma de natureza constitucional sob a pena de inconstitucionalidade.   Por fim, é importante salientar que há possibilidade dos ocupantes de cargos revestidos com a prerrogativa de foro em razão de função, interporem recursos das decisões que os julgam. Neste sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal: 

Entretanto, não poderá haver limitação ao cabimento do recurso especial ou extraordinário, como era permitido no sistema revogado (CF/1969 119, §1º), porque a atual Constituição Federal não estipulou nenhuma restrição. Os requisitos estão no próprio texto constitucional e somente eles devem ser exigidos do recorrente para que sejam conhecidos os recursos extraordinário e especial. (NERY JÚNIOR, Nelson, 2009, p. 280/281). 

Com isso, é possível concluir que não é admissível para aqueles que gozam dos efeitos de tal prerrogativa, interporem recursos ordinários que tem por objetivo a revisão do mérito do processo. Nada obstante, é inteiramente possível o oferecimento de recursos que tenham por finalidade evitar ofensa à lei federal e à Constituição Federal, no caso em tela, o recurso especial e o extraordinário. 

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Sobre os autores
Antônio César Mello

Advogado; Especialista em Direito e Estado pela Universidade do Vale do Rio Doce, Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal do Tocantins; Doutor em Direito pela PUC/MG e; Professor de Direito.

Tiago Costa Menezes

aluno do curso de direito da Faculdade Católica do Tocantins (FACTO). Estou cursando o 9º período e esse é o meu artigo científico de conclusão do curso.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Antônio César ; MENEZES, Tiago Costa. Foro por prerrogativa de função, privilégio ou garantia?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5873, 31 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61709. Acesso em: 26 abr. 2024.

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