Durante anos, os ditos loucos eram ignorados pela sociedade e colocados em depósitos à margem das grandes cidades. Tratados como porcos, quase sempre eram deixados ao tempo para apodrecerem junto aos ratos e sobre os próprios excrementos. Essa situação foi deixada de lado durante décadas, até que, nos anos 60, o florescer da reforma Antimanicomial surge na Itália, com o psiquiatra Franco Basaglia. Este médico coordenou inúmeras reformas no campo da medicina, sendo o precursor da queda dos Hospitais Psiquiátricos, os famigerados Manicômios.
Basaglia visitou o Brasil na década de 70, situação em que chamou de Holocausto a situação dos pacientes brasileiros. Décadas após sua visita, a situação psiquiátrica no Brasil começa a mudar. Gradativamente, os Manicômios são fechados e o tratamento cruel revisto.
Entretanto, grande parte dessa reformulação é nominal, extinguiu-se a utilização da nomenclatura “Manicômio”, denominam-se agora Hospitais Psiquiátricos, adotando-se, assim, uma visão mais humanística. Todavia, mais de 30 anos após a visita do psiquiatra italiano, a situação de Holocausto ainda reverbera. Como pode ser evidenciado em trecho da reportagem a seguir:
SÃO PAULO - Abuso sexual, restrição alimentar, castigos, trabalho forçado, cárcere privado e até agressões com luvas de boxe e eletrochoque. Essa é a extensa lista de maus-tratos relatada pelos pacientes da comunidade terapêutica Ibanez Lattanzio, em Araçoiaba da Serra, no interior de São Paulo. O fechamento do local, na semana passada, mostra que, mesmo após a reforma psiquiátrica no País, há 16 anos, pacientes com transtornos mentais seguem sendo vítimas de negligência e crueldade em centros médicos que deveriam tratá-los.
Números inéditos de um relatório do Ministério dos Direitos Humanos comprovam que o caso de Araçoiaba da Serra não é exceção. A cada três dias, uma denúncia de maus-tratos em unidades psiquiátricas é recebida pela pasta. Em 2016, foram 143 queixas de violações ocorridas em manicômios, hospitais psiquiátricos ou casas de saúde feitas ao Disque 100. O aumento é de 48,9% em relação a 2015, quando 96 casos do tipo foram relatados.[1]
Podemos concluir que a situação, da década de 80 para a atual, é a mesma: o descaso. E o esquecimento do início do século XX é repetido no XXI.
Contudo, a liberdade de expressão deste milênio nos permite criticar a maneira como o Estado trata assuntos como este. Em meio aos milhões de esquecidos, existem centenas de outros que lutam para dar vida às pessoas marginalizadas pela “loucura”.
Com a regulamentação das internações pela LEI No 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001, a quantidade de Hospitais Psiquiátricos é reduzido a cada ano, junto com o número de leitos psiquiátricos. A informação se confirma nos dados apresentados no trecho a seguir:
Em nove anos, o número de leitos psiquiátricos no Sistema Único de Saúde (SUS) diminuiu quase 40%. Em 2006, havia 40.942 leitos em 228 hospitais psiquiátricos. Atualmente, existem aproximadamente 25 mil leitos psiquiátricos do SUS em 166 hospitais no país.
Essa redução vem ocorrendo desde 2001, com a aprovação da reforma psiquiátrica no Congresso Nacional. A lei determina a extinção progressiva dos leitos para internação de longa permanência em hospitais psiquiátricos.[2]
Neste debate atual evidencia-se o caso dos dependentes químicos da Cracolândia, região da cidade de São Paulo, e as ações de seu prefeito João Dória. Tendo como projeto para revitalizar a Cracolândia a internação compulsória dos dependentes químicos, para, assim, revigorar os bairros dessa região devolvendo o lucro aos comerciantes, a segurança ao “cidadão de bem” e valorizando os terrenos da região. Interesses puramente econômicos, o que pode ser lido no trecho a seguir:
Em declaração, João Doria afirmou que tais ações na região têm o objetivo de revitalizar a área, a Associação de Juiz considera que “é inconcebível que interesses econômicos de construtoras e seguradoras, as quais vêm adquirindo terrenos e imóveis na região a preços baixos para, mais tarde, lucrarem com a “limpeza” do local, se sobreponham à dignidade das pessoas que ali habitam”. [3]
Por si só o interesse econômico na internação compulsória fere o Art. 2, § 1, inc. II, da Lei 10216/01, que diz: “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade”.
Doria nem ao menos procura conhecer os dependentes químicos, e os generaliza, tirando o direito de personalidade e docilizando seus corpos para maior controle social, com uma política higienista e manicomial. Sim, Manicomial!
Como visto anteriormente, o número de Hospitais Psiquiátricos vem caindo ano após ano, em razão da Lei de 2001 e da falência dessas instituições. Entretanto, há planos do governo para aumentar a quantidade de leitos psiquiátricos no Brasil, o que vai contra a política da lei de 2001, retrocedendo as conquistas Antimanicomiais, o que é retratado no trecho a seguir:
O Sistema Único de Saúde (SUS) vai voltar a discutir a expansão de leitos em hospitais psiquiátricos no Brasil. Representantes das secretarias estaduais e municipais de saúde defenderam nesta quinta-feira, 31, a retomada da estratégia, em substituição à política em vigor, iniciada em 2001 que dá prioridade ao atendimento ambulatorial e, quando necessário, à internação de pacientes em hospitais gerais. [4]
E onde entraria o caso Doria? Para não entrarem em falência e voltarem à expansão dos leitos psiquiátricos, os hospitais precisam de verba, com uma internação compulsória do tamanho da Cracolândia, a verba estaria garantida.
Ocorre, então, o cadastro de Hospitais Psiquiátricos para o atendimento dos dependentes, através do projeto “Redenção”, do atual prefeito de São Paulo. Com o cadastro desses “manicômios”, Doria, de certa forma, dá sobrevida a este ramo da medicina que é amplamente questionado. Afinal, por quê? De acordo com um artigo publicado pelo site da ABRASCO: “Hoje, no Brasil, só defende o hospital psiquiátrico quem faz gordo negócio com ele”[5].
Famoso pelas parcerias privadas e pelo interesse econômico, não é difícil acreditar em uma atração de Doria em se associar com tais hospitais, já que os sanatórios credenciados pelo prefeito apresentam inúmeras irregularidades, apontadas através na reportagem: “Documento feito por conselhos de saúde denuncia falta de profissionais e de tratamento individualizado nas unidades.”.[6]
Concluímos que as ações do prefeito João Doria são retrógradas e, no mínimo, perturbadoras, o que nos relembra dos horrores filmados e fotografados nos Manicômios do século passado, fazendo-nos refletir. Não podemos deixar que se perca nas memórias a luta Antimanicomial, afinal, os horrores do passado ainda persistem no presente.
Notas
[1] http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,denuncias-de-maus-tratos-em-clinicas-psiquiatricas-sobem-49-no-pais,70001901646; acesso em 28/09/17 as 04h13min.
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-08/com-reforma-numero-de-leitos-psiquiatricos-no-sus-diminuiu-40-em; acesso em 28/09/17 as 04h14min.
[3] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/25/em-nota-associacao-de-juizes-repudia-politica-higienista-de-doria-na-cracolandia/; acesso em 28/09/17 as 04h16min.
[4] http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sus-discute-retomada-do-papel-de-hospitais-psiquiatricos-medida-e-criticada,70001959717; acesso em 28/09/17 as 04h17min.
[5] https://www.abrasco.org.br/site/noticias/movimentos-sociais/hoje-no-brasil-so-defende-o-hospital-psiquiatrico-quem-faz-gordo-negocio-com-ele/10780/; acesso em 28/09/17 as 04h19min.
[6] https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/relatorio-aponta-falhas-em-hospitais-credenciados-por-doria-para-atender-usuarios-da-cracolandia.ghtml; acesso em 28/09/17 as 04h20min.