A discussão acerca de um “mínimo existencial” não decorre de uma norma posta na Constituição, mas é uma construção doutrinária que tem por escopo a garantia de aplicabilidade e efetividade do art. 5º, §1º, ou seja, visa tornar factível a aplicação imediata das normas definidoras de direitos fundamentais.
Ocorre que, desde a positivação de um direito até a sua realização, engendra-se um embate entre a força orçamentária do Estado e a valoração do direito – em verdade, a valoração da pessoa humana –, a que se denomina, doutrinariamente, reserva do possível. Então, por meio de uma técnica jurídica de ponderação (ALEXY, 2011), sopesam-se os valores e extrai-se a solução adequada ao caso concreto com vistas a preservar os pontos controvertidos, ou, por outras palavras, o mínimo existencial surge como uma garantia de não eliminação do direito fundamental diante das (in)capacidades do Estado.
O mínimo existencial surge com um fenômeno doutrinário garantidor e a partir de um “núcleo essencial”, como noção fundante da dignidade da pessoa humana Sarlet (2015). Isso porque, da dignidade da pessoa humana, retiram-se ao menos duas conclusões: (i) a dignidade tem aspecto ontológico, isto é, é de consideração de cada ser humano enquanto único; e (ii) a dignidade tem uma vereda deontológica ao exigir dos indivíduos mutuamente a promoção de valores humanitários. Por ser um atributo do ser humano – mais que um direito –, a dignidade também figura em condição da própria existência da espécie humana e não pode ser reduzida à quadra filosófica, demandando concretização para a realização da vida em todos os seus aspectos imagináveis.
A crítica que se faz a essa noção de mínimo existencial é que, em vez de servir como um ponto de partida, sua utilização ocupa-se em tangenciar a potencialidade da efetivação dos direitos fundamentais, ou seja, em vez de se ter uma cláusula de barreira da eliminação do direito, tem-se a sua limitação e o seu nivelamento por baixo. Restando-se inoperante e ineficiente, tal qual um Leviatã de vitrine, Poder Público sem paisagem de Justiça Social, passando-se à posição de constrangimento da situação de comodismo do Estado. Por meio desse mínimo existencial, sob a capa das mais variadas formas, justifica-se a mitigação da atuação estatal no sentido de concretizar as tarefas constitucionais.
No mínimo existencial perde-se o objetivo do Máximo Existencial, o ser humano não mais é desenvolvido em suas potencialidades e o Estado Eudemonológico (BOBBIO, 2004), que busca a realização da felicidade das pessoas é revitalizado como redentorismo moralista e anti-iluminista, ou simplesmente como clerical fascismo, esquecendo-se propositalmente do pensamento emancipatório de que, quanto menor a intervenção estatal (controle social mínimo) e maior a liberdade e a igualdade, mais felizes os indivíduos são. O Estado Eudemonológico subverte a legalidade constitucional a fim de acomodar à Razão de Estado ao mercantilismo predatório da natureza ambiental e humana, tanto quanto mais seja pressionado pelos Grupos Hegemônicos de Poder. Sob este princípio de regimento do capital predominante, o Estado Eudemonológico – moralista, religioso, inerentemente contrário à inclusão social das minorias econômicas – aplica-se à repressão social em distanciamento crescente do processo civilizatório. Exemplo capilar desse produto, no Brasil, são as bancadas da bíblia, do agronegócio e da indústria armamentista; além dos bancos.
A natureza jurídica que se constrói no Brasil, de 2016-17, corresponde ao Estado de Não-Direito (Canotilho, 1999) – em atendimento aos reclamos do capital – e se consubstancia como formação peculiar de Estado de Exceção (Agamben, 2004). Ainda que nem todo Estado de Não-Direito – como direito capitalista que provoca injustiça social e agrava a miséria humana – seja considerado Estado de Exceção, por repetidas vezes, temos sabido combinar as duas formulações excepcionais de Estado de Direito regressivo e repressivo: consoante o Estado Penal (Wacquant, 2003) que se ramifica pela desconstrução do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e se aplica a consubstanciar a criminalização das relações sociais.
Mais uma vez, o tripé da Revolução Francesa é quebrado e nesse mínimo existencial a fraternidade (a solidariedade constitucional) não se realiza, exacerbando a liberdade – sem meios para ser livre – e a igualdade (em sentido formal), para encerrar uma noção de “igualmente” desprovida de isonomia e de equidade. Se ao mínimo existencial ainda equivalia a fórmula aristotélica do equilíbrio jurídico – “trata os iguais, igualmente” (isonomia); “os desiguais, desigualmente” (equidade), ao Máximo Existencial, para além disso, é preciso observar que é obrigação esperar/atender “de todos, secundo sua capacidade” (meritocracia); “a todos de acordo com suas necessidades” (igualitarismo): na descrição positiva do socialismo.
Aquém disso, o mínimo existencial pode ser confundido com a ideologia da “socialização da miséria”. Na prática, abdicamos do Estado de Direito: “Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais” (Malberg, 2001, p. 449-461 – tradução livre – grifos nossos). Mas, aplicamo-nos, como poucos na história política da humanidade a algum tipo de hermenêutica constitucional ínfima petita.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed.Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.
MALBERG, Raymond Carré de. Teoría general del Estado. Ciudad de México: Facultad de Derecho/UNAM; Fondo de Cultura Económica, 2001.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10.ed.rev.atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.