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Jurisprudência precisa avançar para enfrentar questões de concursos públicos

08/11/2018 às 14:20
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O motivo e o objeto de um edital de concurso não trazem discricionariedade para a Administração elaborar perguntas em total desacordo com a letra da lei ou corrigi-las em discrepância ao que prevê o ordenamento jurídico.

No ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal entendeu haver relevância social e jurídica na discussão acerca da possibilidade de o Poder Judiciário realizar o controle jurisdicional sobre o mérito das questões de concursos públicos, reconhecendo repercussão geral ao tema (RE 632.853/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes).

Em 2015, o plenário da Corte Suprema, no julgamento do supracitado recurso extraordinário, definiu não competir ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a ela atribuídas. Ressalvou, no entanto, ser permitido, de maneira excepcional, pelo Judiciário, o juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame.

Outrossim, já em 2017, em decisão monocrática na Reclamação 26.300/RS, mantendo a orientação do Tribunal, o Ministro Ricardo Lewandowski consignou não haver a excepcionalidade assinalada em sede de repercussão geral na hipótese de o Poder Judiciário efetuar a interpretação da questão do concurso público e alterar as notas atribuídas aos candidatos, a caracterizar, assim, indevida substituição da banca examinadora pelo Poder Judiciário.

De outro giro, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, dois são os informativos que se destacam. O informativo n°. 311, de 26 de fevereiro a 02 de março de 2007, reitera o entendimento de que “o exame pelo Judiciário dos atos discricionários de banca examinadora de concursos públicos limita-se aos princípios da legalidade e da vinculação das normas do edital. Tratando-se de pretensão visando à nulidade de questões formuladas na prova preliminar objetiva (eliminatória) aplicada no certame para ingresso no serviço de notários e registradores, tal mérito escapa ao controle judicial, verificada a observação dos requisitos pela banca examinadora, para fins de alteração da aferição de pontos”.

Mais recentemente, no entanto, o Tribunal da Cidadania publicou, no informativo n°. 603, de 07 de junho de 2017, a seguinte interpretação: “Em prova dissertativa de concurso público, o grave erro no enunciado – reconhecido pela própria banca examinadora – constitui flagrante ilegalidade apta a ensejar a nulidade da questão. De outra parte, a motivação do ato avaliativo do candidato, constante do espelho de prova, deve ser apresentado anteriormente ou concomitante à divulgação do resultado, sob pena de nulidade”.

O entendimento acima exarado refere-se à decisão proferida no Recurso em Mandado de Segurança n°. 49.896/RS, de relatoria do Ministro Og Fernandes. Das informações de inteiro teor, extrai-se a preocupação do decisum em respeitar a decisão proferida pelo STF em sede de repercussão geral, frisando-se que “de acordo com a Corte Suprema, a regra é que o Poder Judiciário não pode reexaminar (i) o conteúdo das questões nem (ii) os critérios de correção, exceto se diante de ilegalidade ou inconstitucionalidade, para fins de avaliar respostas dadas pelo candidato e as notas a eles atribuídas”.

No caso concreto, todavia, o STJ entendeu que o enunciado de uma das questões dissertativas trazia um erro grave insuperável (inversão de conceitos dos institutos “permissão de saída” e “saída temporária”), pelo que existe nulidade insanável. Asseverou que o reconhecimento do erro pela banca e pelo tribunal de origem são suficientes para se admitir que o equívoco no enunciado da questão teve, sim, o condão de influir na resposta dada pelo candidato, conclusão que, segundo o próprio STJ, vai ao encontro da tese firmada pelo STF no recurso extraordinário supramencionado, havendo evidente ilegalidade a permitir a atuação do Poder Judiciário.

Por derradeiro e mais importante, no mesmo julgado, o STJ avançou e consignou ser “certo que alguns editais de concursos públicos não preveem os critérios de correção ou, às vezes, embora os prevejam, não estabelecem as notas ou a possibilidade de divulgação dos padrões de respostas que serão atribuídos a cada um desses critérios. Em tese, com suporte na máxima de que ‘o edital faz lei entre as partes’, o candidato nada poderia fazer caso o resultado de sua avaliação fosse divulgado sem a indicação dos critérios ou das notas a eles correspondentes,  ou, ainda, dos padrões de respostas esperados pela banca examinadora. Tal pensamento, no entanto, não merece prosperar, pois os editais de concursos públicos não estão acima da Constituição  Federal ou das  leis que preconizam os princípios da impessoalidade,  do devido processo administrativo, da motivação, da razoabilidade  e  proporcionalidade. Do contrário, estaríamos diante verdadeira subversão da ordem jurídica”.

Precisamente nessa última linha de pensamento, é o que se pretende defender, pugnando por um progresso jurisprudencial ainda mais adequado ao ordenamento jurídico.

Em primeiro momento, parece ser possível concluir haver certa precipitação, com o devido respeito, na elaboração de algumas frases taxativas integrantes das decisões mencionadas, especialmente daquelas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Não há dúvida de que, politicamente, é por demais desinteressante compelir o Poder Judiciário ao enfrentamento de correções de questões de concursos públicos, notadamente porquanto a ampliação de matérias submetidas a decisões judiciais inevitavelmente causaria o fenômeno de enxurradas de processos, prejudicando a eficiência da máquina judiciária e desvirtuando o direito fundamental de acesso à justiça.

Além disso, torna-se crítica a sugestão quando se recorda que a contratação de pessoas pelo poder público deve, em regra, ser precedida de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, nos termos do artigo 37, inciso II, da Constituição Federal. Ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, nas três esferas de poderes (legislativo, judiciário e executivo) estão vinculadas à obrigatoriedade de realização de concursos públicos, por mandamento constitucional.

Exatamente por isso, cogitar ser competência do Poder Judiciário, quando provocado, a correção de provas de todos os concursos públicos realizados no Brasil inviabilizaria a própria atividade jurisdicional. Contudo, não se trata disso.

Antes de enfrentar a controvérsia, é imprescindível compreender o fundamento da orientação pela qual o Poder Judiciário não poderia agir como instância revisora da banca examinadora do concurso público, substituindo-a para rever os próprios critérios de correção das questões: em suma, para o STF, mencionada atuação não caracteriza controle jurisdicional de legalidade, mas, sim, de mérito administrativo.

Em uma visão simplificada sobre os atos administrativos, duas são suas principais formas de extinção: a) anulação, quando há um vício de legalidade ou legitimidade, feita pela administração, de ofício ou quando provocada, ou pelo Poder Judiciário, desde que provocado; b) revogação, quando o ato é válido, mas por razões discricionárias, deixou de ser oportuno ou conveniente, efetuada exclusivamente pela Administração.

Na lição de Marcelo Alexandre e Vicente Paulo:

“A revogação de atos administrativos configura o denominado controle de mérito, que incide sobre atos válidos, sem quaisquer vícios, diferentemente do controle de legalidade ou legitimidade, que incide sobre atos ilegais ou ilegítimos, anulando-os”. [...] é relevante notar que tanto os atos vinculados quanto os atos discricionários são passíveis de anulação. O que nunca existe é anulação de um ato por questão de mérito administrativo, ou seja, a esfera do mérito não é passível de controle de legalidade. Isso é a mesma coisa que dizer que um ato nunca pode ser anulado por ser considerado inoportuno ou inconveniente”[1].

Consequentemente, para a jurisprudência prevalente, tem-se que mergulhar no conteúdo de uma questão de concurso público, em regra, representa uma análise sobre o mérito do ato administrativo, que só pode ser examinado pela própria Administração Pública, sob pena de indevida invasão pelo Poder Judiciário.

Nesse enfoque, é preciso apontar que todos os atos administrativos possuem cinco elementos ou requisitos: competência, finalidade, forma, motivo e objetivo. A distinção existe quanto às espécies de atos administrativos, pois, enquanto nos “vinculados” todos os elementos estão dispostos na lei e não há margem de discricionariedade para a atuação do administrador, nos “discricionários” apenas os três primeiros o são.

Assim, percebe-se que só há mérito administrativo no mundo dos atos administrativos discricionários, específica e unicamente quanto aos requisitos “motivo” e “objeto”. O motivo, como se sabe, é o próprio fato, que, se constatado e por lei autorizado, faculta à Administração a prática do ato. Por sua vez, objeto é o conteúdo do ato administrativo.

Exemplificando, no caso de edital de concurso público, o motivo é a necessidade fática de contratação de pessoas para o serviço público e a autorização legal para tanto, ao passo que o objeto é o próprio concurso público. Veja-se, assim, que, sendo o edital um ato administrativo discricionário, a Administração Pública terá a liberdade de avaliar se é oportuno ou conveniente suprir a necessidade existente e, em caso positivo, de decidir como o fará, isto é, se por concurso público ou outro meio previsto em lei.

Destaca-se, em complemento, importante acórdão do STF, que limitou-se a decidir que “o edital de concurso, desde que consentâneo com a lei de regência em sentido formal e material, obriga candidatos e Administração Pública”. [2]

Feita a explanação, a primeira impropriedade constatada reside na afirmação de que a imersão pelo Poder Judiciário, quando provocado, é indevida em razão de a correção de uma pergunta feita em concurso público ser parte integrante do mérito administrativo e, portanto, inalcançável pelo Estado-Juiz.

Como se viu, em um edital de concurso público o mérito administrativo é restrito ao motivo fático existente e legítimo (faltam servidores) e ao objeto previsto em lei (o próprio edital, a própria carreira, o próprio concurso). A discricionariedade da Administração Pública está restrita a decidir se irá ou não realizar o concurso e a como o fará, se assim entender oportuno e conveniente, mas sempre dentro dos limites legais.

A confusão ocorre porque alguns raciocinam ser permitido à Administração Pública formular questões e corrigi-las como bem pretender justamente porque é dado definir o “como” (objeto) da realização do concurso público.

Ora, o motivo e o objeto de um edital de concurso não trazem (e nem poderiam!), em seu bojo, a discricionariedade de a Administração Pública elaborar perguntas em total desacordo com a letra da lei, por exemplo. Igualmente, não outorga ao administrador a possibilidade de corrigir questões de cunho subjetivo com pontuações discrepantes se o próprio ordenamento jurídico expressamente conforma a resposta do candidato como correta.

Dito de outra maneira, o Poder Judiciário não pode, ao ser provocado sobre o tema “questão de concurso público”, fechar os olhos e ignorar as particularidades do caso concreto. Na prática, todavia, é o que se tem decidido.

Disso decorre outro ponto fundamental a ser debatido: a pluralidade de matérias cobradas nos mais diversos concursos públicos ocorridos no País e a necessidade de comportamentos adequados pelo Poder Judiciário em cada um deles, sendo imprópria a fixação prévia e genérica de orientação sobre o assunto.

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Os enunciados abstratos dos Tribunais Superiores acerca do tema, além de afastar qualquer caso semelhante da devida apreciação judicial, impedem que haja discussão aprofundada com a formulação de parâmetros objetivos para a decisão de cada ocorrência concreta e distinta. Ao final, a própria justiça é ferida de morte.

Destarte, imperiosa a análise de cenários hipotéticos, a fim de se aproximar de decisões mais justas e respeitosas ao interesse público e à eficiência administrativa.

Em um concurso público de cargos de natureza jurídica (juiz, promotor, defensor, delegado, enfim), na primeira fase do certame (objetiva), é incompreensível que não se dê ao Poder Judiciário, se provocado, a possibilidade de rever e anular questões contrárias à letra fria da lei, aos entendimentos jurisprudenciais pacíficos e à doutrina majoritária ou com mais de uma resposta ou mesmo com nenhuma assertiva correta. Mais, isso não pode ficar condicionado ao reconhecimento de erro pela própria banca, como parece ter definido o STJ.

Qualquer entendimento contrário significa atribuir à Administração Pública o poder de elaborar tais equívocos e de contratar os candidatos que melhor pontuaram em desacordo com o ordenamento jurídico. Por não mais se tratar de mérito administrativo, a posição não pode prevalecer, permitindo-se ao Poder Judiciário o controle direto entre o conteúdo da questão e sua própria conformação com o ordenamento jurídico.

Aliás, se a jurisprudência reconhece que o conteúdo das perguntas deve estar previsto no edital, ato administrativo infralegal, mais sentido ainda restarem adequadas às normas jurídicas legais e constitucionais.

De outro lado, em uma segunda etapa, de cunho subjetivo (fase dissertativa ou oral), admite-se que a tarefa se torna mais complicada. No entanto, erros claros sobre o Direito não podem ser ignorados pelo Poder Judiciário, sob o pretexto de inseridos no âmbito do mérito administrativo. A Administração Pública não tem o poder de decidir ser conveniente ou oportuno contrariar a lei e os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários dominantes, menos ainda quando quer contratar serviço pessoal a bem do interesse público.

Por último, cogita-se a hipótese de questões de concursos públicos de áreas não-jurídicas chegarem à apreciação jurisdicional. Nada impede que o Poder Judiciário também sobre elas emita juízo de valor, especialmente quando suficientemente provados os eventuais equívocos da Administração, tal como nos cenários anteriores.

Consigne-se, ademais, ainda que se queira inserir a faculdade de a Administração Pública elaborar e corrigir questões como bem quiser no âmbito do mérito administrativo, este, como sabido, jamais pode ser totalmente afastado da avaliação judicial. Isso porque, se a atuação discricionária da Administração sobre o motivo e o conteúdo do ato for desproporcional, estará configurada a ilegalidade, e, assim, passível de apreciação jurisdicional.

Em curtas palavras: nada mais desproporcional do que ferir o interesse público ao retirar a eficiência da investidura em cargo ou emprego público e do próprio serviço público, avaliando seus integrantes com questões que afrontam a realidade do direito, nos concursos jurídicos, ou de assertiva técnica consagrada e provada, nas demais áreas.


Notas

[1] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 559.

[2] (RE 480129, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 30/06/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-07 PP-01454)

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Sobre o autor
Hugo Campitelli Zuan Esteves

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina: especialista em Direito Constitucional. Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Docente em Kroton Educacional. Docente em Anhanguera.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTEVES, Hugo Campitelli Zuan. Jurisprudência precisa avançar para enfrentar questões de concursos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5608, 8 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61838. Acesso em: 23 dez. 2024.

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