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I – Introdução
Aspirando à alteração do decreto lei 2.848/40, o conhecido Código Penal, foi apresentado, no ano de 2015, mais precisamente em 24 de Março desse mesmo ano, um projeto de lei com consequências que vão muito além da exclusão de um tipo penal do referido código: a revogação dos artigos que cuidam do aborto provocado.
Com a pretensão de descriminalizar a prática do aborto, o autor do PL 882/2015 relativiza a prática abortiva com alusões ao livre arbítrio da interrupção da gestação, a prestação do serviço pelo Serviço Único de Saúde (SUS), tendo, ainda, a audácia de amparar-se nos Direitos Fundamentais. Mais ainda, elabora, pontua e explica gêneros como os da saúde sexual e os direitos reprodutivos, situados nos §§ 1º e 2º do primeiro artigo do referido projeto de lei. Todavia, o foco do presente questionamento é destinado ao Título III, que trata da Interrupção Voluntária da Gravidez.
Não é contemporânea a vontade de livrar-se da vida do considerado inconveniente e imprestável para a sociedade de seu tempo. É de saber notório que práticas de extermínio de crianças indesejadas passaram pela democracia grega e, mais recentemente, pelo direito nazista, cada um sustentando sob seu entendimento motivações para a eliminação do indivíduo ao nascer. Embora sejam distintas tais práticas do aborto, ambas ferem o direito mais fundamental de todos, o que cuida da vida, sendo que tanto o recém-nascido quanto o feto ainda possuem pouquíssimo tempo transcorrido de vida.
Mesmo reconhecendo os inúmeros impactos que tal lei causaria quando em vigência, como questões religiosas, comportamentos sociais, danos à integridade física e psicológica da mulher, bem como os direitos do nascituro, para fins de uma discussão mais delimitada, nos nortearemos apenas no tocante ao patrimônio regido pelo Direito Sucessório, tendo em vista a complexidade que tal tema nos traz. De qualquer sorte, tal prática, encarada como lícita e saudável, sendo, ainda, custeada pelo Poder Público, impactaria diretamente nos comportamentos parentais no que tange à preservação mais concentrada do patrimônio, sobretudo por motivações espúrias.
II – Dos Filhos Havidos Fora do Casamento.
Atualmente, elencados no artigo 1596 do Código Civil de 2002, sendo também tratados no Livro V, que cuida das sucessões, foram objeto de constantes mudanças na evolução do direito nacional. O Código Civil de 1917 estabelecia, expressamente, em seu artigo 396, a proibição do reconhecimento de paternidade, tanto a voluntária como a judicial, para os filhos adulterinos. É evidente a preocupação do legislador de igualar a filiação ocorrida na constância do casamento com os oriundos de adultério. Tanto que, atualmente, fazem parte da vocação hereditária, sendo convocados para a sucessão quando da morte de seu genitor comum.
Ademais, mostra-se uma preocupação não apenas na proteção ao filho adulterino, mas uma tentativa de inibir a prática do adultério, o que finda, ainda mais, na diluição do patrimônio, prejudicando a figura do casamento e a constituição da família tradicional, visto que tal prática ainda é rechaçada pela sociedade.
Com a aprovação do livre arbítrio da interrupção da gestação nas primeiras 12 semanas de gravidez, prevista nos artigos 10º e seguintes do PL 882/2015, tal proteção torna-se passível de questionamento, ou mesmo de incompatibilidade. O prazo mencionado ainda é estendido para até 22 semanas, com a alegação da gestante de ter sido vítima de estupro ou ato atentatório a liberdade sexual, sendo suficiente apenas a palavra da gestante para que tal hipótese seja aceita.
Os detentores do direito à herança em primeiro lugar são os descendentes, tendo eles tanto o direito ao legado deixado por testamento, quanto como a parte legítima, minimamente constituída em metade do patrimônio do autor da herança. São eles os primeiros a serem buscados pela vocação hereditária.
É estarrecedor o vislumbre das possibilidades que isso causaria na sociedade, sobretudo sob a ótica do patrimônio quando aberta a sucessão. Estando ciente de que os irmãos unilaterais são também chamados para a sucessão, cuidando-se de descendentes, por força da saisine, é plausível que seu genitor, quando ciente da gestação inesperada, prefira ao seu descendente já concebido dentro de seu casamento. Nada o impediria de obstar a gravidez, pois estaria exercendo seu pleno direito de interrupção voluntária, sendo ainda amparado pelo Parágrafo único do artigo 10º do PL, que o protege de qualquer questionamento, sob o pretexto de discriminação.
Os artigos 1834 e 1841 do Código Civil vigente que cuidam dessas filiações sob a luz da sucessão da classe dos descendentes correm o risco de se tornarem pouco utilizáveis ou mesmo inócuos, sendo que sua única aplicação plausível seria nos casos de dissolução de casamentos por força de divórcio, cujos filhos já foram concebidos antes da dissolução do matrimônio. Somente nessa hipótese há as figuras dos irmãos unilaterais concorrendo com os bilaterais com a abertura da sucessão do genitor comum.
Visto que a nova prática simplificaria o planejamento familiar, ainda que por ímpeto estritamente patrimonial, sob o argumento de exercer o chamado direito reprodutivo, como pontuado pelo autor do projeto de lei, a liberação e facilitação das práticas abortivas não só restringiriam a aplicabilidade dos dispositivos supramencionados, como também afrouxariam as características de elementos já estabelecidos no direito contemporâneo brasileiro, como o casamento e o dever de fidelidade ao cônjuge. Salienta-se a presença dos mesmos no Código Civil vigente, em seus artigos 1511 e 1566, o que demonstra a preocupação legislativa com tais instituições.
Ainda que a presente análise se atenha apenas acerca do patrimônio e sua manipulação dentro do universo sucessório, com o advento da prática abortiva, mostra-se imperativo também pontuar que os filhos não reconhecidos pelo pai e não passíveis de cuidados pela mãe serão tutelados por pessoa nomeada pelo Poder Público. Fato este contido no capítulo do código vigente que trata do Poder Familiar, em seu artigo 1633, trazendo à tona mais uma consequência relevante: a retirada dessa responsabilidade do Poder Público.
III – Da Motivação do Cônjuge Concorrente.
O código antigo tinha uma preocupação nítida em proteger a instituição do matrimônio, haja vista o forte apelo religioso da época. Tanto que as figuras de hoje denominadas como companheiras, até então era conhecidas como concubinas, sendo que a união era intitulada de concubinato. Ressalta-se que a concubina era destituída de qualquer direito sucessório. Porém, não foi apenas a situação da união estável que sofreu mudanças nas sucessões, mas também o casamento.
A situação do cônjuge se alterou muito no direito sucessório se comparado o código em vigor com o já mencionado Código Civil de 1916. Nessa época o cônjuge somente herdaria na hipótese de não existirem vivos descendentes ou ascendentes, visto que a ordem sucessória era feita por classes, respeitando integralmente a posição em que essa figura se situava na referida ordem, em terceiro lugar, após os ascendentes. Ele também era passível da exclusão da sucessão, juntamente com o parente colateral, demandando apenas uma vontade legítima por parte do autor da herança colocada em testamento, conforme expressamente preceituava o artigo 1725 do antigo código.
Evidentemente, isso era compensado pelo fato do regime de bens legal da época ser o da Comunhão Universal de bens, entendendo este como o regime adotado no caso de silêncio durante o pacto antenupcial. Dessa forma reduzia o desamparo patrimonial para com o cônjuge sobrevivente.
O primeiro inciso do artigo 1829 do Código Civil em vigor situa o cônjuge como concorrente da herança com os descendentes, com ressalvas que dependem do regime de bens adotado no pacto antenupcial. Salienta-se sua concorrência em qualquer situação no caso de não existirem descendentes, somente ascendentes.
Além do patrimônio recebido enquanto meeiro, o cônjuge também é detentor do direito da herança, concorrendo com os descendentes, no caso do casamento sob o regime de comunhão parcial de bens com bens particulares. Não obstante, ainda possui direito a um mínimo de um quarto do patrimônio deixado pelo de cujus em caso dos descendentes serem todos do casal. Com o planejamento familiar mais facilitado em virtude da prática abortiva liberada, o controle do patrimônio é passível de aspirações mais individualistas por parte do cônjuge.
O entendimento do planejamento familiar enquanto manutenção e construção de patrimônio é perfeitamente salutar, na hipótese de ser feito dentro de um contexto familiar mais sólido, com descendentes já concebidos, a exemplo da utilização de técnicas anticoncepcionais oriundas da medicina. Destarte, presume-se que tal ensejo na prosperidade já exista e é preponderante, porém é passível de alterações caso esse projeto de lei seja sancionado e promulgado.
Tendo como objeto o artigo 1838 do atual Código Civil, nota-se a maior motivação de concentração patrimonial de todas: a ausência de descendentes e ascendentes transforma o cônjuge sobrevivente detentor de toda a herança. Tal hipótese, somada com a possibilidade do controle de natalidade facilitado, traz a possibilidade de um planejamento voltado para o crescimento patrimonial próprio, sendo que o sobrevivente agiria com torpeza.
Aspira-se aqui a um entendimento de que a evolução da situação do cônjuge dentro do direito sucessório já o coloca numa posição patrimonial favorável e de responsabilidade, haja vista que o mesmo é o primeiro da lista preferencial no tocante à administração dos bens. O advento da prática abortiva tida como lícita só traria um poder desproporcional a esse elemento, indo de encontro à igualdade prevista na própria Constituição Federal de 1988.
O caos jurídico não se limitaria apenas ao direito sucessório dentro da esfera cível, mas também criaria uma figura com um Poder familiar diferenciado, cabendo apenas o consentimento válido da gestante para a prática abortiva se concretizar.
IV – Considerações Finais
O Código Penal vigente entende em seus incisos I e II do seu artigo 128 que se caracteriza como excludente de punibilidade o aborto provocado nos casos da gestante correr risco de vida, ou mesmo quando a gestação é fruto de estupro, desde que com consentimento válido por parte da gestante em favor da prática abortiva.
Apesar de ser um dado que já data sete anos, o IBGE apontou no ano de 2010 que o percentual da população brasileira que se declarava cristão era de 86,8%, número este que representa todas as religiões dessa natureza, como os católicos e evangélicos. É notório que as instituições religiosas cujas diretrizes e atos são coerentes entre si são evidentemente contra a prática legal abortiva. Posto isso, é um reflexo a vontade massiva do brasileiro de repudiar a prática do aborto como legal, cujas consequências são majoritariamente negativas. Assim, infere-se que o Poder Legislativo parece trabalhar contra os interesses da população, elaborando conteúdos normativos que vão de encontro aos interesses dos indivíduos sustentadores da nação, elegendo deputados para trabalharem num sentido de representação negativa.
Embora exista uma infinidade de definições acerca do vocábulo direito, há o entendimento pacífico que o mesmo serve para guiar a população no intuito de uma vida harmônica, com condutas retas e íntegras. Para tanto, existe a parte coercitiva contida no Poder Judiciário, trabalhando para inibir as ações reprováveis ainda não executadas, e penalizar as já efetuadas. Isso se estende de tal forma que a alegação de desconhecimento de lei não é defesa válida para o descumprimento da mesma, o que traz coerência acerca do fato dos costumes terem sido durante muito tempo uma fonte para o direito elaborar normas e positivá-las.
Com uma inversão na lógica supramencionada, surge esse projeto de lei, almejando ser encarado como legítimo em virtude de estar normatizado, notadamente contrário ao que deveria ser, ou seja, estar normatizado em virtude de ser legítimo.
As consequências de tal choque sob a ótica meramente patrimonial com tal alteração seriam inúmeras, como o comportamento do povo com o passar dos anos no tocante ao planejamento familiar. É plausível a gradativa queda na sensibilidade e valoração por parte do brasileiro quanto à vida recém-concebida. Em decorrência disso, o planejamento familiar se tornaria mais maleável e detentor de maior resiliência, visto que os erros praticados numa gestação indesejada seriam facilmente corrigidos. A irresponsabilidade tornar-se-ia uma conduta mais corriqueira, transformando adultos com o poder de gerarem vida em adolescentes que teriam seus deslizes amparados não pelos seus genitores, mas pelo Poder Público, que apoiaria e até custearia tal prática.
Felizmente, recentemente, no dia 08/11/2017, a Câmara dos Deputados se mobilizou e aprovou a Proposta de Emenda 181/2011, conhecida popularmente como PEC Cavalo de Tróia. Uma das maiores determinações dessa proposta é a afirmação categórica de que a vida começa desde a sua concepção, com a finalidade de barrar de vez a descriminalização do aborto no Brasil em qualquer caso. Se sancionada e promulgada, as modificações na sociedade e seus reflexos no planejamento familiar sob o prisma do Direito Sucessório não passarão de meras conjecturas.
V – Referências
- Huffpost Brasil: PEC Cavalo de Tróia. Acesso em 19/11/17. http://www.huffpostbrasil.com/2017/11/08/pec-cavalo-de-troia-deputados-dao-1o-passo-para-criminalizar-aborto-em-todos-os-casos_a_23189424/
- Lei 10406/2002: Código Civil de 2002.
- Lei 3.071/1916: Código Civil de 1916.
- PL 882/2015. Câmara dos Deputados. Acesso em 07/11/17. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1313158.