A formação dos contratos eletrônicos e a responsabilidade civil dos fornecedores

15/11/2017 às 08:25
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Constata-se que o contrato eletrônico cumpre os pressupostos para sua validade no mundo jurídico e, portanto, o seu cumprimento é plenamente exigível pela parte que sofreu o dano.

Introdução

Com o passar dos anos, observou-se o desenvolvimento dos computadores e das redes de comunicação chegando até a internet, que é uma rede internacional de comunicação que visa a proporcionar um intercâmbio de informações entre usuários dos mais diferentes locais, dando margem à aparição dos contratos eletrônicos. A contratação por via eletrônica atualmente é uma realidade e por meio desta é possível adquirir de produtos a serviços, tais como: ingressos para cinema, passagens aéreas, aparelhos eletroeletrônicos etc.

 Esse avanço tecnológico repercute diretamente no aspecto jurídico, fazendo-se necessária a apresentação do direito face à tecnologia e aos novos desafios surgidos para saber que tipo de legislação aplicar aos contratos eletrônicos. Isso exige estudos apropriados, tendo em vista identificar se essa nova realidade requer que se editem novas normas ou se apenas se faça uso de normas já existentes que poderiam se adaptar à questão dos contratos eletrônicos.

No Brasil, o legislador mantém-se inerte aos avanços trazidos com a globalização. Não existe, aqui, uma lei que verse especificamente sobre o contrato eletrônico e comércio digital. O Código Civil de 2002 não é adequado às necessidades dos novos tempos, pois não tem normas que tragam segurança ao consumidor sobre a contratação por meio eletrônico, como veremos adiante.

O objeto de exame do presente trabalho refere-se à decisão proferida no julgamento da Apelação Cível nº 70026151803, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no ano de 2008. A controvérsia envolve um consumidor que adquire de um fornecedor um produto por meio de um site de compras e o mesmo não recebe a mercadoria. Em decorrência do prejuízo gerado e visando à devida reparação dos danos, o usuário responsabiliza a entidade responsável pela intermediação do negócio, mas perde a ação sob o fundamento de que o cliente assumiu o risco da compra mal sucedida. É evidente, portanto, o elevado nível de insegurança que este contrato representa para o consumidor.

Ao longo da exposição serão analisadas as peculiaridades do caso acima exposto, abordando o problema da mitigação da vulnerabilidade do consumidor e o tipo de responsabilidade incidente sobre o fornecedor intermediário nos contratos eletrônicos. Será analisada ainda, de forma crítica e elucidativa, a relação do julgado com a jurisprudência e a doutrina, bem como os elementos que fundamentam a consistência e relevância social da decisão, a fim de orientar e informar o leitor, em especial, os consumidores que realizam contratos por meios eletrônicos.


1 O debatido conceito de contrato eletrônico

No que tange à definição do seu conceito, não há por parte da doutrina uma visão uniforme quanto aos seus elementos característicos. Atualmente, existem pelo menos duas posições divergentes neste aspecto. A primeira corrente admite como contrato eletrônico apenas aquele realizado por meio de computador; a segunda, defende que contratos desta espécie se estabelecem “de modo audiovisual através de uma rede internacional de telecomunicações e de uma aceitação suscetível de manifestar-se por meio de interatividade”[1]. De acordo com esta última definição, incluem-se como meios de realização dos contratos eletrônicos quaisquer meios de telecomunicação, tais como fax, telefone e também o computador.

Em regra, a lei não exige forma específica para a celebração dos contratos, de modo que os mesmos podem ser realizados sob qualquer forma, desde que não contrária à lei. Tendo em vista esse princípio da liberdade das formas impende atentar que o termo “eletrônico” refere-se ao meio a qual as partes elegem para efetivar o contrato.Sheila Leal aduz que “pode-se entender por contrato eletrônico aquele em que o computador é utilizado como meio de manifestação e de instrumentalização da vontade das partes”[2].

Os contratos eletrônicos não se confundem com os contratos da informática, haja vista que estes últimos não são efetuados, necessariamente, através do computador, no entanto, o objeto de sua prestação é voltado para o ambiente de digital. É o caso dos contratos de desenvolvimento de websites, por exemplo.

Distinguem-se também os contratos concluídos pelo computador daqueles executados por computador. Nos primeiros, o computador constitui-se como um instrumento necessário para a formação do contrato. Nos contratos executados por computador, apenas a execução do objeto contratual é feita de forma eletrônica. São eletrônicos, portanto, independentemente da natureza do objeto contratual, os contratos nos quais as partes manifestarem a vontade através de veiculação de mensagens eletrônicas.


2 As partes da relação de consumo eletrônico

A relação existente na modalidade de mercado eletrônico compõe-se em três partes:

a) o consumidor, que é quem acessa o site para adquirir produtos e serviços com preços minorados;

b) o fornecedor primário ou mediato, que é aquele que detém os produtos e serviços e os oferece a um preço aquém do valor de mercado; e

c) o fornecedor intermediário ou imediato, cuja finalidade é divulgar e intermediar a venda dos produtos e serviços ofertados pelo fornecedor primário.

A fim de que se possa harmonizar esta relação de consumo, cujo caráter, em geral, sempre se apresenta desproporcional, tendo em vista a vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, faz-se necessária a inserção destas partes dentro do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

O art. 2° do CDC (lei 8.078/1990) define o consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos e serviços como destinatário final”. Consumidor, portanto, segundo a posição adotada pelo direito brasileiro, é aquele que adquire ou utiliza produtos e serviços com a finalidade não profissional, sem colocá-los em uma fase de fornecimento.

O conceito de fornecedor encontra-se no art. 3° do CDC como “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”. Em síntese, é aquele que tem como atividade habitual o fornecimento de produtos e serviços.

Como visto, o comércio eletrônico possui dois sujeitos que dispõem de maneira diversa os produtos e serviços aos consumidores, seja como o fornecedor mediato ou imediato.

A relação estabelecida pelo fornecedor primário pode ser de consumo ou civil, dependendo sempre do fator habitualidade do fornecimento de produtos e serviços. Caso este requisito não seja suprido, aplicar-se-á o Código Civil, o qual regula a relação entre os particulares, de forma individual.

Ao fornecedor intermediário, ou imediato, enquadrado na definição do art. 3º do CDC, aplica-se, em sua totalidade, as disposições do referido dispositivo. Portanto, os sites através dos quais ocorre intermediação entre o consumidor e o produtor com vistas à circulação de bens e serviços são ditos comerciantes.

Rubens Requião definiu o comércio como fato social e econômico, ou “uma atividade humana que põe em circulação a riqueza produzida, aumentando-lhe a utilidade”[3].

Seguindo a mesma linha de entendimento, o professor italiano Alfredo Rocco introduziu a seguinte definição: “comércio é aquele ramo de produção econômica que faz aumentar o valor dos produtos pela interposição entre produtores e consumidores, a fim de facilitar a troca das mercadorias”[4] .


3 O Código de Defesa do Consumidor e a Teoria do Risco

O Código de Defesa do Consumidor parte do pressuposto de que o fornecedor deve suportar os riscos da atividade lucrativa que exerce, repartindo o ônus com a sociedade. Sendo assim, a regra imposta por este estatuto é a da responsabilidade objetiva do fornecedor, que dispensa a comprovação da conduta culposa por parte do lesado, bastando, apenas, a comprovação do defeito, nexo de causalidade e o dano.

O mercado eletrônico admite uma complexa cadeia de fornecedores, cujo grau de responsabilidade varia de acordo com as suas respectivas classificações. Aos fornecedores primários cabe, posteriormente, o direito de regresso ao responsável pela causação do dano.

Quanto aos defeitos dos produtos, o CDC determinou a responsabilidade subsidiária do fornecedor intermediário, quando verificada a hipótese dos incisos do seu art. 13, são elas:

I quando o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados;

II o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador;

III não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

A responsabilidade pelo fato do serviço, encontrada no art. 14 do CDC, pode ser considerada como o acidente de consumo ocasionado por defeito na prestação do serviço. De acordo com o dispositivo mencionado, “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”. No caso de defeito no serviço, excluída a hipótese de prestação pelos profissionais liberais, por força do disposto no § 4º, a responsabilidade é objetiva, considerando-se as circunstâncias descritas no § 1º e as causas de exclusão do § 3°.


4 Pressupostos para formação e validade dos contratos eletrônicos

O Código Civil não possui nenhum preceito legal que defina o contrato propriamente dito, entretanto, em seu artigo 104 reuniu os elementos essenciais do negócio jurídico, os quais se aplicam diretamente à noção de contrato. O contrato é uma espécie de negócio jurídico, que exige para a sua validade agente capaz; objeto lícito e possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei. A palavra “contrato” é empregada em acepções distintas, designando o negócio jurídico bilateral gerador de obrigações e/ou instrumento.

Por terem as características comuns aos contratos, os requisitos de validade dos contratos eletrônicos são os mesmos dos contratos já conhecidos, eis que a presença de duas ou mais pessoas, a vontade livre e manifesta, além da capacidade civil para o ato, devem estar presentes para o ato se perfazer de forma válida. Idêntica situação em relação aos requisitos objetivos de validade, como a licitude do objeto, o seu conteúdo econômico, a possibilidade física e jurídica de sua acessibilidade.

Como todo ato de negócio pressupõe uma declaração de vontade, a capacidade do agente é indispensável à validade dos contratos eletrônicos na seara jurídica, uma vez que está intimamente ligada à existência ou não de uma vontade válida. Ou seja, se um menor de 16 anos, sem assistência, aceitar uma oferta vinculada na Internet, este ato jurídico será anulável. Esta regra, todavia, não possui caráter geral. Como todo ato negocial pressupõe uma declaração de vontade, a capacidade do agente é indispensável à validade dos contratos eletrônicos na seara jurídica, uma vez que está intimamente ligada à existência ou não de uma vontade válida.

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Relevante destacar que o contrato eletrônico é realizado sem o contato entre as partes. Não há a pessoalidade no uso do mesmo computador entre fornecedor e consumidor, uma vez que ambos podem utilizar aparelho diverso da sede do fornecedor ou da residência do consumidor, o que sem dúvida gera insegurança, uma vez que o último pode acabar sendo ludibriado por um hacker que acessa um fornecedor idôneo, obtendo informações como número de cartões de crédito, senhas que podem lesar o consumidor. Por tais motivos, visando uma maior segurança, se discute e já se torna viável, a assinatura digital por meio de criptografia, evitando má-fé.

Há ainda o requisito do consentimento dos interessados. Neste, "as partes deverão anuir, expressa ou tacitamente, para a formação de uma relação jurídica sobre determinado objeto, sem que se apresentem quaisquer vícios de consentimento, como erro, dolo e coação, ou vícios sociais, como simulação e fraude contra credores". O acordo de vontades, indispensável para a formação da relação contratual, se expressa de um lado pela oferta e de outro pela aceitação. São esses dois os elementos indispensáveis para a formação dos contratos.

A oferta ou proposta é a declaração de vontade, dirigida de uma pessoa a outra, através da qual a primeira manifesta a sua intenção de se vincular, caso a outra parte aceite. É ela a declaração unilateral de vontade oriunda do proponente. Tem por característica vincular aquele que a formula, salvo se o contrário resultar dos próprios termos da proposta, da natureza do negócio ou das circunstâncias do caso concreto. Posto ser vinculante, deve conter todos os elementos essenciais do negócio jurídico proposto, de forma que deve ser séria, completa, precisa e inequívoca.

Aos contratos eletrônicos a regra é a mesma, distinguindo-se apenas na maneira como a vontade é expressa. Particularmente, nos contratos celebrados eletronicamente, a manifestação de vontade pode se dar pelo envio de um e-mail, por tratativas em tempo real e pela a interação com um sistema pré-programado.

Tendo em vista o conteúdo abordado neste tópico, importa aqui demonstrar a relevância prática da classificação dos contratos eletrônicos, haja vista que, a partir do respectivo enquadramento, será possível responder as seguintes questões:

a.    O local de formação contratual, para definição da legislação aplicável ao contrato objeto de exame e, a depender da situação específica, do foro competente para processar e julgar feitos que cuidem sobre as controvérsias entre as partes, que decorram da inexecução contratual.

b.   O momento da formação contratual, instante em que passa a existir a relação jurídica, obrigações são constituídas, passam a ser contados os prazos prescricionais e decadenciais.

Dentre os critérios de classificação existentes, interessa ao nosso estudo aquele que se refere ao grau de intereção homem/máquina. Tendo por base os elementos fáticos do caso concreto tratado neste artigo, veremos, por conseguinte, os ditos Contratos Interpessoais, cuja definição foi proposta por Mariza Delapieve Rossi. Este tipo de contrato caracteriza-se pela troca de mensagens entre as pessoas, como ocorre, por exemplo, em uma contratação por e-mail. A compra e venda via homepage pode ser enquadrada nesta hipótese quando a página eletrônica não oferecer recursos para a aceitação automática da oferta, dispondo, contudo, de um email para contato.

Se é oferecido um e-mail para que o aceitante possa manifestar sua vontade e, por isso mesmo, o contrato, embora eletrônico na sua formação, é ora classificado como interpessoal, e celebrado entre ausentes. A formação dar-se-á no instante em que o aceitante expedir email que contém a sua declaração de vontade.


Conclusão

Ante o exposto, constata-se que o contrato eletrônico cumpre os pressupostos para sua validade no mundo jurídico, e, portanto, o seu cumprimento é plenamente exigível pela parte que sofreu o dano. No que tange à exigibilidade do contrato eletrônico perante o fornecedor intermediário, cumpre informar que o mesmo detém responsabilidade subsidiária nos acidentes de consumo, atinentes aos produtos. Não subsiste a interpretação baseada no argumento segundo o qual o art. 14 do CDC não previu essa subsidiariedade, tendo em vista que um site especializado em compras, por exemplo, não presta diretamente os serviços do fornecedor primário, cabendo-lhe unicamente a oferta e intermediação dos serviços, com a percepção de remuneração indireta.  

Os sites de compras não realizam a aquisição dos produtos e serviços, como comumente fazem os fornecedores, no entanto, executam de forma onerosa a intermedição das vendas, por meio da participação indireta nos lucros percebidos pelos fornecedores primários. A remuneração indireta não exime da responsabilidade o fornecedor intermediário que, contudo, não deixa de prestar serviço às partes, a saber: a intermediação do negócio jurídico bilateral. Desse modo, não se trata de mera tarefa de aproximação de sujeitos, com vistas ao estabelecimento de um contrato eletrônico. As atividades do fornecedor mediato, preliminares à formação do negócio, bem como sua política de conduta e estratégias de captação de usuários, implicam direta e fundamentalmente na delineação dos meandros atinentes aos modos de declaração de vontade nos contratos eletrônicos.


Notas

[1] LEAL, Sheila Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via internet. São Paulo: Atlas, 2007, p. 78.

[2] LEAL, 2007. Ob. cit., p.79

[3] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v. 1. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 4.

[4] ROCCO, Alfredo apud REQUIÃO, Rubens. Ob. cit. p. 4.

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Sobre a autora
Daniela Almeida

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Especialista em Tecnologias e Educação a Distância.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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