Foro por prerrogativa de função, privilégio ou garantia?

Forum for privilege of function, privilege or guarantee?

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RESUMO: O instituto do foro por prerrogativa de função tem origem na Constituição Republicana em 1891 no seu art. 57, § 2º, que deu competência ao Senado para julgar os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade e, ao STF, para julgar os juízes federais inferiores (art. 57, § 2º) e o Presidente da República e os Ministros de estado nos crimes comuns e de responsabilidade (art. 59, II). Desde então ele se fez presente em todas as demais Constituições, mesmo recebendo muitas críticas da sociedade civil organizada. Contudo, a Constituição de 1988 não trouxe nenhuma vedação ao Foro por Prerrogativa de Função, ao contrário, ampliou essa garantia a outras funções dos três poderes. A presente obra tem por objetivo a análise do instituto do foro por prerrogativa de função. Abordando a sua origem, conceito, natureza jurídica e evolução histórica no direito constitucional brasileiro. Neste, serão discutidas as questões polêmicas que cercam o referido instituo e os princípios constitucionais que regem a Constituição Federal. Ao longo do desenvolvimento será analisado o atual cenário político e a ligação com o dispositivo em questão. Por fim, será examinada a Proposta de Emenda a Constituição 10/2013 que modifica drasticamente o instituto do foro por prerrogativa.

Palavras-chave: Instituto; Foro; Prerrogativa; Função; Princípios.

ABSTRACT: The institute of the forum by prerogative of function has its origin in the Republican Constitution in 1891 in its art. 57, § 2, which gave the Senate the power to judge the members of the Federal Supreme Court in crimes of responsibility and, to the STF, to judge the lower federal judges (article 57, § 2) and the President of the Republic and the Ministers of state in common crimes and responsibility (article 59, II). Since then he has been present in all other Constitutions, even receiving many criticisms from organized civil society. However, the Constitution of 1988 did not bring any prohibition to the Forum by Prerogative of Function, on the contrary, extended this guarantee to other functions of the three powers. The objective of this work is the analysis of the institute of the forum by function prerogative. Addressing its origin, concept, legal nature and historical evolution in Brazilian constitutional law. In this, the controversial issues surrounding the institution and the constitutional principles that govern the Federal Constitution will be discussed. Throughout the development will be analyzed the current political scenario and the connection with the device in question. Finally, it will examine the Proposed Amendment of the Constitution 10/2013 that drastically modifies the institute of the forum by prerogative.

Keywords: Institute; Forum; Prerrogativa; Function; Principles.

FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO, PRIVILÉGIO OU GARANTIA?

SUMÁRIO: 1. Conceito e natureza jurídica; 2. Origem e evolução histórica; 3. O foro por prerrogativa de função diante dos princípios constitucionais; 3.1.  Princípio da igualdade; 3.2. Princípio do juiz natural; 3.3. Princípio do duplo grau de jurisdição; 4. Atual cenário do foro por prerrogativa de função; 5. A incapacidade dos tribunais diante da prerrogativa de foro; 6. A pec 10/2013 e a necessidade de mudanças; 7. Considerações finais


INTRODUÇÃO

            Um assunto que ganhou força nos últimos anos foi o Instituto do Foro por Prerrogativa da Função, popularmente conhecido como “Foro Privilegiado”. Instituto esse que foi criado com o intuito de garantir o julgamento de autoridades públicas por magistrados com o mesmo nível hierárquico ou superior ao réu que está sendo julgado. Dessa forma, evitando que essas pessoas estejam sujeitas a um julgamento parcial, já que, em tese um magistrado de instância inferior poderia estar sujeito a pressões políticas. 

            O objeto de pesquisa do presente trabalho está pautado na análise de dois entendimentos divergentes. Um que se posiciona contra a permanência de tal instituto em nosso ordenamento jurídico, pois entende que ele viola princípios fundamentais previstos em nossa Constituição Federal. Outro posicionamento é o que vai de encontro aos ideais basilares da criação desse dispositivo e entendi que ele é fundamental para a segurança jurídica, porém, admite a necessidade de modificações para que ele produza o efeito desejado.

            Posto isso, iremos ao final concluir se o Foro por Prerrogativa da Função é uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público ou um privilégio assegurado a determinadas autoridades públicas, de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de primeira instância.


1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

            O Instituto do Foro por Prerrogativa de Função, se da através da competência em razão da pessoa (ratione personae), estabelecida pela própria Constituição Federal de 1988. A competência em razão da pessoa, “consiste no poder que se concede a Órgãos Superiores da Jurisdição de processarem e julgarem determinadas pessoas”. (TOURINHO FILHO, 2003, p. 129)

            Segundo Frederico Marques, aludida competência originária dos Tribunais constitui uma garantia:

No Processo Penal, o que se ensina é que, em lugar de privilégio, o que se contém nessa competência ratione personae constitui, sobretudo, uma garantia. Os dispositivos que a estabelecem, como dizia o Professor Beleza dos Santos, nas lições proferidas em Coimbra em 1919, longe de representarem um favor, muito ao contrário exprimem um dever de justiça. É o que também ensina Alcallá-Zamora, para que não se cuida na espécie de um privilégio odioso, e sim de elementar precaução para amparar a um só tempo o acusado e a justiça e ainda para evitar por esse meio à subversão resultante de que inferiores julgassem seus superiores. (apud DELGADO, 2004, p. 10).

            Fundada em uma espécie de competência originária que determinados órgãos de jurisdição superior possuem para conhecer, processar e julgar determinados cargos e funções públicas, esse instituto sobrepõe-se às demais espécies de competência previstas no ordenamento jurídico brasileiro em razão de sua especialidade.

            Deste modo, é a importância do cargo público que está resguardada pela prerrogativa de foro e não o sujeito que a desempenha.

            A prerrogativa de foro está ligada a função desempenhada, tanto que, ao cessar o desempenho desta, seja por aposentadoria, por término do mandato ou por exoneração, finda também os efeitos do mecanismo. E assim o indivíduo que ocupava o cargo que gozava desse dispositivo passa a ser julgado pelo juiz de primeira instância.

            O legislador constituinte atribuiu essa garantia alguns cargos e funções públicas, com o objetivo de dar a eles em um possível julgamento, uma maior segurança nascida do fato de que passam a ser julgados por um órgão colegiado, o qual os magistrados que o compõem são mais experientes, já que em tese os juízes de primeira instância estariam mais pretensos a pressões políticas. Eugênio Pacelli de Oliveira ao comentar as regras que dispõem sobre Foro por Prerrogativa afirmou:

Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli, de Curso de Processo Penal, 2015, p. 179).

            O Foro por Prerrogativa de Função tem o caráter imperativo, devido a essa natureza jurídica ele não pode ser renunciado por aquele que goza dos seus efeitos, muitos menos, pode ser preterido por anseio de outros.


2. ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

            Segundo os historiadores o foro por prerrogativa de função tem origem no Antigo Egito, onde se existia um tribunal composto por setenta juízes que eram responsáveis pelo julgamento de senadores, profetas, chefes militares, cidades e tribos rebeldes. Esse tribunal ficou conhecido como Sinédrio.

            Depois disso, as notícias sobre esse dispositivo remontam a última fase do Império Romano no século V, no qual, sob a forte influência da igreja católica, senadores eram julgados por seus pares e os eclesiásticos pelas jurisdições superiores. José Augusto Delgado leciona que:

“a Igreja Católica influenciou (...) as regras do processo criminal, incentivando o foro privilegiado para determinadas pessoas, no século V, no fim do Império Romano. Defendeu e fez prevalecer à ideia de que os ilícitos criminais praticados por senadores fossem julgados pelos seus iguais. Os da autoria dos eclesiásticos processados e julgados, igualmente, por sacerdotes que se encontrassem e maior grau hierárquico. Os reis, a partir do século XII, começaram a lutar para que a influência da Igreja Católica fosse afastada nos julgamentos de pessoas que exerciam altas funções públicas. (...) [A] legislação processual daquela era passou a adotar foros privilegiados ‘não sobre natureza dos fatos, mas sobre a qualidade das pessoas acusadas, estabelecidos em favor dos nobres, dos juízes, dos oficiais judiciais, abades e priores etc., fidalgos e pessoas poderosas, casos esses que se confundiam muitas vezes com os casos reais. (...) Durante o século XII ao XV, em Portugal, enquanto vigorou as Ordenações Filipinas, ‘os fidalgos, os desembargadores, cavaleiros, doutores, escrivães da Real Câmara, e suas mulheres, ainda que viúvas, desde que se conservando em honesta viuvez, deputados da Real Junta do Comércio e da Companhia Geral da Agricultura das vinhas do Alto Doiro’ (...) tinham o privilégio do relaxamento da prisão quando pronunciados, embora a lei determinasse que deveria se proceder a captura dos réus em tal situação, tudo em razão da qualidade pessoal que possuíam, ficando, apenas, à disposição do Juízo, sob promessa de cumprir as suas ordens”.7. 7 DELGADO, José Augusto. “Foro por prerrogativa de função. Conceito. Evolução histórica. Direito comparado. Súmula 349 do STF. Cancelamento. Enunciados”. In Estudos em Homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 329-30.

            Dessa forma, percebe-se que as Ordenações asseguravam aos nobres privilégios, pois impediam que estes fossem sujeitados ao tormento (um tipo de interrogatório onde se empregava o método da tortura até que o réu confessasse a verdade ou aquilo que eles queriam ouvir).

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            Com a proclamação da primeira Constituição Política do Império do Brasil, em 25 de março de 1824 chegou ao fim as Ordenações do Reino, com isso estava extinto o foro privilegiado e surgia o Foro por Prerrogativa de Função, mais próximo dos moldes que conhecemos hoje. O art. 179, inciso XVII da Constituição do Império é expresso ao banir os privilégios pessoais.

Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, são garantidos pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:

17.º À exceção das causa, que por sua natureza pertencem a Juízes particulares, na conformidade das Leis, não haverá fôro privilegiado, nem Comissões especiais nas causas cíveis ou crimes. (ALMEIDA, 1959, p.158)

            Com isso, pois se fim ao julgamento de indivíduos levando em consideração as suas características pessoais.

            A Constituição do Império criou o Tribunal de Justiça (art. 163) e previa a prerrogativa de foro em seu art. 164, ao dizer que: “A êste (sic) tribunal compete: §2º Conhecer dos delitos e erros de ofício que cometerem os seus ministros, os das Relações, os empregados do Corpo Diplomático e os Presidentes das Províncias” (ALMEIDA, 1959, p.157).

            Esta Carta Magna, em seu art. 47, concedia foro por prerrogativa aos membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, Senadores e Deputados, estes durante o mandato, bem como, aos Secretários e Conselheiros de Estado para os crimes de responsabilidade. Essas pessoas, em razão do relacionamento que tinham com o Estado, eram julgadas pelo Senado, conforme o artigo mencionado da referida Constituição.

            A Constituição de 1824 determinou, ainda, privilégio absoluto à pessoa do Imperador; este não estava sujeito a nenhum tipo de responsabilidade. (art. 99).

            A Constituição de 24 de fevereiro de1891, a primeira Constituição Republicana, previa que competia ao Senado julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade e ao Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, cabendo, nos dois casos, à Câmara dos Deputados a acusação (art. 53 c/c 29 e 59, I, a).

            A Constituição de 1934 não mais deu competência ao Senado para julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade. Em tal caso, o julgamento seria feito por um Tribunal Especial, constituído para esse fim (art. 58). Ela determinou, ainda, que a Corte Suprema, nome dado ao hoje Supremo Tribunal Federal, seria a competente para processar e julgar, pela prática dos crimes comuns: Presidente da República, Ministros da Corte Suprema, Ministros de Estado, Procurador-Geral da República, Juízes dos Tribunais Federais e das Cortes de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, Ministros do Tribunal de Contas, Embaixadores e Ministros diplomáticos.

            A Carta de 10 de novembro de1937 foi inovadora. Deu competência originária a um denominado Conselho Federal, órgão composto por representantes dos Estados e por dez membros nomeados pelo Presidente da República (art. 50), para processar e julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade (art. 86). 

            A partir da Constituição Federal de 1946, em face do processo de democratização, foram configuradas várias situações de foro por prerrogativa, as quais permanecem hoje definidas, expressamente, na Constituição Federal de 1988.

            O foro por prerrogativa de função deu origem à Súmula n° 394 do STF, que o alongava ao ex-agente público, para os casos de fatos ilícitos penais tentados ou consumados durante o exercício do mandato, ainda que o inquérito ou a ação penal fossem iniciados após a cessação daquele exercício. A referida Súmula resultou de interpretação dada pela jurisprudência aos artigos 59, I, 62, 88, 92, 100, 101, a, b e c, 104, II, 108, 119, VII, 124, IX e XII, da CF de 1946, e, ainda, das Leis n° 1.079/50 e n° 3.258/59.

            Em 1967, foi outorgada uma nova Constituição que foi renovada pela Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969, criando a Constituição da República Federativa do Brasil. Umas das inovações trazidas por essa Carta, foi em relação ao rito do processo e julgamento nos casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal, que passou a ser fundado em seu regimento interno, e outra advindo da aprovação da Emenda Constitucional nº. 7, de 13 de abril de 1977, que distribuiu a competência penal originária ao Tribunal Federal de Recursos, passando este a ser competente para processar e julgar os juízes federais, do trabalho e os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho, bem como dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal e os do Ministério Público da União nos crimes comuns e de responsabilidade.

            Com o fim do Regime Militar, deu se a promulgação da Constituição Federal de 1988. Que tem como características marcantes a democracia e o caráter garantista. A CF de 1988 delimitou o Poder Judiciário. Instituiu o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, os quais substituíram o Tribunal Federal de Recursos e deu ao Supremo Tribunal Federal o título de guardião supremo.

            A CF 1988 trouxe todas as possibilidades e os tribunais que gozam de competência originária para, julgar as autoridades públicas que possuem a prerrogativa de foro dada função que exercem. A mesma manteve a jurisdição extraordinária dos órgãos políticos, atribuindo ao Senado Federal à competência originária de processar e julgar o Presidente, o Vice-Presidente da República pelos crimes comuns e de responsabilidades e os Ministros de Estado, os Comandantes das Forças Armadas nos crimes de mesma natureza conexos com aqueles. Também previu a competência originária para o julgamento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União.

            Atribui ao Senado Federal a competência para julgar os membros do Congresso Nacional pela prática de crimes de responsabilidade.

Sobre os autores
Antônio César Mello

Advogado; Especialista em Direito e Estado pela Universidade do Vale do Rio Doce, Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal do Tocantins; Doutor em Direito pela PUC/MG e; Professor de Direito.

Tiago Costa Menezes

aluno do curso de direito da Faculdade Católica do Tocantins (FACTO). Estou cursando o 9º período e esse é o meu artigo científico de conclusão do curso.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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