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Sistema de precedentes: Conceitos fundamentais para evitar confusões na sua aplicação

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09/02/2018 às 18:29
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1.4 RATIO DECIDENDI E OBTER DICTUM

No primeiro tópico deste artigo, percebeu-se que o conceito de Precedente Judicial pode ser utilizado em um sentido restrito. Neste sentido, o Precedente se aproxima da própria concepção de ratio decidendi. A ratio decidendi é constituída pelos fundamentos jurídicos da decisão. Ou seja, é a tese jurídica que o magistrado ou o tribunal acolheu ao proferirem a decisão. Para Rodrigues (2017, p. 07): “representaria os dados reputados relevantes no julgamento, as 'razões' que conduziram à decisão”.

Para o professor Tucci (2004, p. 388) a Ratio Decidendi pode ser decomposta em três elementos: “é composta: da indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts), do raciocínio lógico-jurídico da decisão (legal reasoning) e do juízo decisório (judgement)”. O professor Tucci (2004, p. 12) esclarece, ainda, que a Ratio Decidendi seria: “a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação do provimento decisório”.

Em outro sentido, Streck e Abboud (2015, p. 516) expõem: “Ratio Decidendi configura a regra de direito utilizada como fundamento da questão fática controvertida (lide)”. Já Wambier (2010, p. 35) a define como sendo:

A razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação, mas nela se encontra. Ademais, a fundamentação não só pode conter várias teses jurídicas, como também considerá-las de modo diferenciado, sem dar igual atenção a todas. Além disso, a decisão, como é óbvio, não possui em seu conteúdo apenas teses jurídicas, mas igualmente abordagens periféricas, irrelevantes enquanto vistas como necessárias à decisão do caso.

Neste mesmo entendimento, Oliveira (2013, p. 13-34) conceitua a Ratio Decidendi como sendo: “uma decisão, expressa ou implicitamente dada por um juiz, suficiente para resolver uma questão jurídica suscitadas pelos argumentos das partes no caso, sendo esta decisão necessária para justificar a decisão final proferida no caso”.

Nesta lógica, Marinoni (2013, p. 217) define a noção de Ratio Decidendi nos seguintes termos:

É preciso sublinhar que a ratio decidendi não tem correspondente no processo civil adotado no Brasil, pois não se confunde com a fundamentação e com o dispositivo. A ratio decidendi, no common law, é extraída ou elaborada a partir dos elementos da decisão, isto é, da fundamentação, do dispositivo e do relatório. Assim, quando relacionada aos chamados requisitos imprescindíveis da sentença, ela certamente é ‘algo mais’. E isso simplesmente porque, na decisão do common law, não se tem em foco somente a segurança jurídica das partes – e, assim, não importa apenas a coisa julgada material -, mas também a segurança jurídica dos jurisdicionados, em sua globalidade. Se o dispositivo é acobertado pela coisa julgada, que dá segurança à parte, é a ratio decidendi que, com o sistema do stare decisis, tem força obrigatória.

No tocante ao entendimento de Cruz e Tucci (2004, p. 12), os autores determinam o conceito do instituto como sendo: “a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação do provimento decisório”. Toda decisão é fruto de uma construção jurídica fundamentada do magistrado. Assim, a ratio decidendi – ou holding, para os norte-americanos – são as próprias fundamentações que serviram de base para a resolução do caso litigioso.

No ordenamento brasileiro, esta ratio decidendi também é denominada de motivo determinante de uma decisão. O motivo determinante é aquela premissa indispensável para a solução da causa. Essa construção não é aleatória. Pelo contrário, forma-se a partir de uma tese jurídica que embasará a decisão. O centro desta tese jurídica é a ratio decidendi.

Nesta perspectiva, pode-se entender a ratio decidendi como sendo um elemento que transcende a própria fundamentação e se constitui a partir de uma análise sistêmica da decisão judicial. Neste sentido, Didier Jr., Braga e Oliveira (2015, p. 447) asseveram: “Na verdade, pode ser elaborada e extraída de uma leitura conjugada de tais elementos decisórios (relatório, fundamentação e dispositivo); importa saber: a) as circunstâncias fáticas relevantes relatadas; b) a interpretação dada aos preceitos normativos naquele cotexto; c) e a conclusão a que se chega”.

A partir destas fundamentações, o magistrado constrói uma tese que lhe permite encontrar a solução do caso concreto. A solução deste conflito, fundamentada pela ratio decidendi, constará do dispositivo, no qual ficará delimitada a norma individual, protegida pela coisa julgada material, que valerá para o caso concreto apreciado pelo magistrado.

Ao contrário desta norma individual, tem-se a norma geral, construída, por meio da indução argumentativa do magistrado, tendo como pano de fundo o caso concreto. Esta indução argumentativa resulta nas razões de decidir do magistrado. Esta ratio decidendi compõe a tese jurídica que se depreende do caso específico podendo, se aplicado em situações vincendas similares ao caso paradigma, ser considerado um precedente.

Estas duas acepções de normas jurídicas criadas pelo magistrado são bem delimitadas por Mitidiero (2012, p. 61-69):

A percepção de que o magistrado, ao apreciar uma demanda, (re) constrói duas normas jurídicas é fundamental para que se possa entender, em primeiro lugar, a diferença entre o efeito vinculante do precedente - na verdade, da ratio decidendi contida num precedente - […] e o efeito vinculante da coisa julgada erga omnes, presente em determinadas situações. […] Assim, decisão sem fundamentação, justamente por não conter a exposição da ratio decidendi, não é capaz de ser invocada como precedente. A sentença contém dois atos jurídicos distintos: a fundamentação, na qual se expõe a ratio decidendi, e o dispositivo, no qual se determina a norma individualizada. A falta de fundamentação torna difícil ou impossível identificar a ratio decidendi e, por isso, permite a invalidação do dispositivo, outro ato jurídico, cuja validade depende da existência do primeiro. Em terceiro lugar, é imprescindível perceber que a fundamentação da decisão judicial dá ensejo a dois discursos: o primeiro, para a solução de um determinado caso concreto, direcionado aos sujeitos da relação jurídica discutida; o outro, de ordem institucional, dirigido à sociedade, necessariamente com eficácia erga omnes, para apresentar um modelo de solução para outros casos semelhantes àquele.

Desta forma, conclui-se que a decisão do caso concreto – norma individual – apresenta-se no dispositivo. Por outro lado, o precedente – norma geral – é encontrado na fundamentação. Sobre o assunto, o doutrinador Bustamante (2012, p. 271-272), em brilhante lição, acrescenta:

É nas razões que os juízes dão para justificar suas decisões que devem ser buscados os precedentes, e a ausência dessas razões ou a sua superação por outros argumentos mais fortes compromete sua aplicação. As normas extraídas dos precedentes judiciais devem, todas, ser enunciadas sob a forma de enunciados universais do tipo ‘sempre que se verifiquem os fatos operativos (OF), então devem se aplicar as consequências normativas (NC).

Ressalta-se a definição trazida por Goron (2004, p. 284-292), sobre o instituto da ratio decidendi:

Constitui ela a abstração de um princípio legal dos fatos essenciais de uma causa. Evidentemente, quanto maior o grau de abstração utilizado, maior será o número de casos aos quais a regra extraída poderá ser aplicada. (...) A common law oferece a seus juízes basicamente três métodos para extrair a ratio decidendi dos precedentes. Ela pode sê-lo de forma extensiva, restritiva ou analógica. Pelo método extensivo o juiz está habilitado a ampliar o campo de abrangência da regra jurisprudencial. O método restritivo é usado em regra para evitar a aplicação de precedentes injustos ou incômodos. A aplicação analógica, por fim, tem lugar nos chamados cases of first impression, quando não existe um precedente que possa ser diretamente aplicado e o juiz necessita criar solução adequada ao caso concreto.

Em relação a Ratio decidendi, verifica-se que existem várias controvérsias e acepções sobre o correto entendimento do conceito. Entretanto, realizando uma junção entre as diversas definições trazidas, neste tópico, nota-se um ponto convergente para a Ratio decidendi.

Nesta temática, a Ratio Decidendi tem seu conceito norteador construído, a partir das citações feitas neste tópico, como sendo a tese assentada na motivação que resolve a questão suscitada, a partir de uma regra de direito usada no fundamento da questão controvertida. Ou seja, é o elemento central da fundamentação, cerne de toda a decisão judicial, considerada a norma jurídica do caso concreto.

Assim, nota-se que a Ratio Decidendi está presente na decisão do caso concreto. Ela é construída a partir das razões que levaram o julgador a decidir determinada causa em um sentido. Ou seja, são todas as argumentações desenvolvidas com características de possuírem “causa e efeito” na decisão tomada. Esta deve constituir-se em um fator essencial para a decisão judicial, podendo ser considerado o elemento determinante – a matriz de fundamentação – da decisão.

Neste ponto, percebe-se que a distinção é material. Nota-se que, para se constituir um Precedente Judicial, existirão Ratio Decidendi que servirão de suporte para aquele. Desta forma, percebe-se que, destas razões de decidir, pode surgir um Precedente Judicial. Assim, a soma de Ratio Decidendi pode constituir um Precedente Judicial. Ou seja, este deriva de uma Ratio Decidendi somada a outros requisitos. Conclui-se que estes dois institutos, apesar de similares, não se confundem.

Concentrando-se a atenção na parte da decisão judicial conhecida como fundamentação, é essencial realizar a diferenciação entre ratio decidendi e obter dictum. Em um primeiro momento, deve-se entender que nem tudo o que está na fundamentação é a ratio decidendi. Além das razões de decidir, existem, na fundamentação, outros comentários, opiniões, dizeres que não serviram de fundamentação direta e imediata ao caso concreto.

O obter dictum é este elemento dispensável, podendo ser facilmente retirado da fundamentação sem que houvesse perda substancial no conteúdo da decisão tomada pelo magistrado. Pode-se dizer que é um elemento acessório, uma opinião jurídica adicional. De modo simplório, pode-se afirmar que tudo aquilo que não se configura como sendo ratio decidendi é um obter dictum. Neste sentido, possui uma delimitação residual da fundamentação.

Nesta concepção negativa – ou residual – do conceito de obter dictum, tem-se o ensinamento de Didier Jr., Braga e Oliveira (2015, p. 674):

O obiter dictum (obiter dicta, no plural), ou simplesmente dictum, consiste nos argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência ou relevante e substancial para a decisão.

Um exemplo para ilustrar situação é dado por Silva (2004, p. 185): “O exemplo mais visível de utilização de um dictum é quando o tribunal de forma gratuita sugere como resolveria uma questão conexa ou relacionada com a questão dos autos, mas que no momento não está resolvendo”.

Para reforçar esta exemplificação, tem-se a situação trazida à baila por Viana (2017, p. 12):

Imaginem que um tribunal, ao julgar uma apelação, produza o seguinte texto: “Efetivamente, tal como defende o apelante, a sentença impugnada foi proferida por juízo absolutamente incompetente, motivo pelo qual é ela nula, apesar do acerto da fundamentação nela utilizada, já que, de fato, o juiz está certo ao concluir que é inválida a venda feita por um ascendente a um descendente, sem o expresso consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante”. Percebam: tendo o tribunal invalidado a sentença, o conteúdo dela, sentença, perdeu completamente a importância. Mesmo assim, o tribunal entendeu de afirmar que, quanto ao conteúdo, a sentença estava correta.

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Pode-se configurar, ainda, em votos vencidos dos órgãos colegiados. Ou seja, quando ocorrerem decisões não unânimes em julgamentos colegiados, aqueles que se manifestaram, contrariamente, a decisão convergente da maioria apresentam, no total de suas fundamentações, obter dictum.

Sobre o assunto, Mello (2008, p. 214) afirma que se trata de: “comentário feito pelo juiz na sentença a título de ilustração, sem força de precedente”. No mesmo sentido, Andrews (2009, p. 112) assevera: “a expressão vem de ‘dito para morrer’, ou seja, trata-se de coisas ditas na decisão, mas que não têm efeito vinculante em relação às decisões posteriores, só persuasivo”.

Expressão esta que não representa o exato teor do instituto, porquanto este elemento não é mera peça figurativa. Pelo contrário, pode exercer força persuasiva, gerando uma futura modificação de entendimento do magistrado ou do tribunal. A tese jurídica vencedora pode ser modificada, atualizada, reformada. Estas “modificações” advém da força argumentativa dos votos vencidos, dos argumentos contrários que podem sinalizar uma futura superação desta tese.

Para confirmar este entendimento, Didier Jr. (2012, p. 388) afirma:

O obiter dictum, embora não sirva como precedente, não é desprezível. O obiter dictum pode sinalizar uma futura orientação do tribunal, por exemplo. Além disso, o voto vencido em um julgamento colegiado é obiter dictum e tem a sua relevância para a elaboração do recurso dos embargos infringentes, bem como tem eficácia persuasiva para uma tentativa futura de superação do precedente.

Desta forma, é facilmente compreensível o entendimento de que o obter dictum pode vir a se configurar em uma ratio decidendi. Neste mesmo entendimento, percebe-se que o contrário, também, pode ocorrer. Neste sentido, ressalta-se a importância daquele elemento, que surge como marco do contraditório, da livre argumentação e gera crescimento jurídico e justiça social.

Concluindo, Marinoni (2009, p. 232) tece o conceito do instituto do obter dictum:

Como esclarece Neil Duxbury, as passagens que são obiter dicta se apresentam de diversas formas, como as que não são necessárias ao resultado, as que não são conectadas com os fatos do caso ou as que são dirigidas a um ponto que nenhuma das partes buscou arguir. De outro lado, informa Robert Summers, em trabalho voltado a explicar o funcionamento dos precedentes em seu país, que a espécie de dicta mais comum nos Estados Unidos consiste em declarações da Corte sobre questões que ela não está realmente decidindo ou foi chamada a decidir.

Assim, o Obter Dictum tem sua definição construída como argumentos de passagem que não influem para a decisão final, mas poderiam resolver outra questão diversa ou servirem de futura orientação. Nesta temática, o Obter Dictum surge em paralelo com a Ratio Decidendi. Na fundamentação, onde um não se fizer presente, o outro estará. Desta forma, complementam-se, formando uma fundamentação coerente e sistemática.

Nesta toada, percebe-se que, como a Ratio Decidendi, o Obter Dictum não é Precedente Judicial. Estes comentários acessórios não podem ser utilizados como diretrizes para casos análogos futuros. Os elementos acessórios não influem para o resultado do litígio, nem tampouco para a constituição do Precedente Judicial. Ou seja, o Obter Dictum distancia-se, ainda mais, do conceito de Precedente Judicial, do que o conceito encontrado para a Ratio Decidendi.

Como conclusão, percebe-se que este capítulo foi constituído com a finalidade de descrever, de forma sistemática, a conceituação de institutos elementares para o correto entendimento da dinâmica dos Precedentes Judiciais. Tendo em vista que esta dinâmica constitui-se de institutos correlatos que acabam por se confundirem, houve por necessário realizar, primeiramente, a conceituação de todos estes institutos.

Posteriormente, ocorreu a diferenciação entre Precedentes Judiciais e estes institutos correlatos. Assim, possibilita-se, aos operadores do direito, realizar a adequada interpretação de uma determinada Decisão Judicial, decompondo todos os seus elementos e classificando, de maneira correta, os seus institutos essenciais que servirão de suporte para realizar, de modo adequado, o estudo das técnicas de dinâmica dos precedentes.

Enfim, espera-se que estudo descritivo contribua para esclarecer alguns conceitos fundamentais da técnica de dinâmica dos Precedentes Judiciais, evidenciando seu suporte teórico básico para a correta aplicação do tema. Destaca-se, então, o estudo dos conceitos fundamentais das técnicas de dinâmica dos Precedentes Judiciais como uma introdução essencial e elementar para o apronfundamento sobre esta importante temática.

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Sobre o autor
Fernando Teófilo Campos

Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (2009). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017). Pós-graduado em Direito Militar pelo Instituto Venturo Educacional (2018). Pós-graduado em Direito Público pelo Instituto Damásio Educacional. Autor do livro "Precedentes Judiciais: Técnicas de Dinâmica, Teoria e Prática"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Fernando Teófilo. Sistema de precedentes: Conceitos fundamentais para evitar confusões na sua aplicação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5336, 9 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62254. Acesso em: 26 abr. 2024.

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