1. INTRODUÇÃO
No Código Civil de 1916 era nítido o conservadorismo de uma sociedade patriarcal, onde pouco importava o vínculo afetivo entre os membros de uma mesma família e os pais serviam apenas para ditar as regras que lhes haviam sido passadas, geração após geração.
Contudo, devido a uma série de avanços feitos pela sociedade nos campos sociais, outros valores começaram a ser vistos como importantes e a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi a maior responsável por essa mudança, considerando que, ao proteger a isonomia, a família, o direito à igualdade entre os filhos e o bem-estar social, havendo uma nova concepção de família, muito mais adequada ao momento de avanços que estamos acompanhando no âmbito social.
Com os citados avanços, surgiram também as técnicas de reprodução assistida, com as quais diversos casais adquiriram a possibilidade de gerar uma criança de maneira homóloga ou heteróloga.
No presente artigo, discutiremos a respeito do direito sucessório do filho concebido por inseminação artificial homóloga post mortem, entretanto e justamente por ser um tema bastante discutido atualmente, o objetivo não é esgotar a discussão a respeito do assunto, mas apenas trazer alguns pontos controvertidos a serem analisados, partindo do princípio da igualdade entre os filhos, garantido pela Constituição Federal.
2. PRESUNÇÃO LEGAL DE PATERNIDADE PELO DIREITO DE FAMÍLIA
A regra da presunção legal de paternidade é herança cultural do direito Romano onde havia a máxima pater is est quem justae nuptiae demonstrant¹, que, trazendo para o nosso ordenamento jurídico, é a presunção de que, sendo a mulher casada, o filho que ela gerar foi fecundado pelo marido.
O artigo 1597, do Código Civil, dispõe da seguinte forma:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
O primeiro inciso trata da presunção de paternidade pelo casamento e a contagem se inicia a partir da celebração do matrimônio. Nascendo a criança antes de completar os 180 dias, não há presunção legal de paternidade.
O segundo parte da dissolução da sociedade conjugal e considera que os filhos nascidos até 300 dias após a dissolução se valem da presunção de paternidade.
O terceiro, quarto e quinto incisos tratam de presunção de paternidade nas diversas formas de reprodução assistida.
3. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM
Entretanto, para o presente estudo, analisaremos apenas o inciso III, do supramencionado artigo que é um dos temas mais polêmicos a respeito da reprodução assistida, pois o procedimento pode ser realizado inclusive após a morte do marido, vejamos:
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
Fecundação é a fertilização do óvulo pelo espermatozoide. A fecundação homóloga mencionada pelo código ocorre quando as células reprodutivas utilizadas para a reprodução assistida são dos próprios pais, e não de terceiro, como acontece na heteróloga.
Ainda, é possível a fertilização do óvulo mesmo após o falecimento do marido e, para isso, o sêmen ou o embrião são conservados, para serem usados no futuro.
Contudo, conforme o enunciado 106, da I Jornada de Direito Civil², para que se presuma a paternidade como sendo do marido falecido, é essencial que a mulher esteja ainda na condição de viúva à data do procedimento e que haja autorização do marido por escrito (consoante VIII, da Resolução 2121/2015)³, admitindo o uso de seu material genético para fecundação.
Portanto, não há dúvidas quanto à filiação do fruto da fecundação artificial homóloga, mesmo após o falecimento do marido, nos termos ora mencionados, pois, para o direito de família, o filho é considerado, presumidamente, do de cujus.
4. BREVE SÍNTESE DO DIREITO DAS SUCESSÕES
4.1. CONCEITO
Sucessão em seu sentido amplo significa o ato de suceder, ou seja, quando há a venda de uma casa, por exemplo, o comprador sucede o vendedor, ou, quando há a doação de um bem, o donatário sucede o doador.
Todavia, o direito das sucessões trata da sucessão chamada de causa mortis. Nesse ramo do direito, o objeto de estudo é a destinação do patrimônio de uma pessoa após a sua morte.
4.2. ESPÉCIES
Ainda, existem duas formas de suceder no direito sucessório: testamentária e legítima.
Na forma testamentária, é respeitada a vontade do falecido, sendo que ele poderá doar toda sua herança (ou parte dela, caso haja herdeiros necessários) a quem decidir.
Na sucessão legítima, cumpre-se o que ordenar a lei quanto à destinação do patrimônio do autor da herança.
5. PRINCÍPIO DA SAISINE E O DIREITO SUCESSÓRIO DO FILHO CONCEBIDO POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA
A doutrina elenca vários princípios reguladores do direito sucessório, porém, para o presente artigo, estudaremos apenas o princípio da saisine.
Então, o princípio da saisine é o que define que o herdeiro receberá os direitos de propriedade e posse, sem praticar conduta alguma, no momento da morte do de cujus. Para esse princípio, a transmissão do direito hereditário é feita de maneira automática. Sendo assim, mesmo não tomando a ciência da morte do autor da herança, o herdeiro já é o dono da mesma.
Nesse sentido dispõe o artigo 1784, do Código Civil, que preceitua: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.
O vocábulo “desde logo” presente no texto da lei significa que, para que haja a sucessão, é necessária a subsistência do herdeiro legítimo e que o mesmo não seja incapaz de herdar no momento da transmissão.
Da mesma maneira entende-se com base na leitura do artigo 1798, do mesmo dispositivo legal, que aduz da seguinte forma: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.
O que excluiria o filho que seria concebido por fecundação artificial homóloga post mortem, considerando que a fertilização ainda não foi iniciada e, por isso, este descendente não existe no momento do falecimento do de cujus.
6. DA LEGITIMIDADE PASSIVA PARA HERDAR DO FILHO CONCEBIDO POR REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM
Muito embora o artigo 1799, I, do Código Civil, tenha sido criado para o testador indicar que: “o filho de tal genitor, que ainda não foi concebido, será beneficiário do meu testamento” (regra de legitimação especial), é possível que seja utilizado para a prole eventual de sua própria esposa, após a sua morte, desde que cumpridos os requisitos de validade para presunção de paternidade.
Note-se que, para o artigo, não é necessário que o herdeiro seja filho do testador, apenas que seja filho de pessoa indicada pelo mesmo.
Sendo assim, caso haja cláusula indicativa no testamento, a prole eventual poderá ser parte legítima na sucessão testamentária, considerando, ainda, que há o prazo de dois anos para a concepção do herdeiro, decorrido o mencionado período, a herança retorna à posse dos herdeiros legítimos.
Esse prazo ainda é muito discutido doutrinariamente, mas, por estar regulamentado dessa maneira (§4º, artigo 1800, do Código Civil), o que se entende é que a implantação no útero materno deve ser feita dentro do prazo legal, para que seja cumprida a vontade expressa no testamento.
Há quem entenda que o prazo não é suficiente e que deveria ser alterado para três anos, encontrando justificativa na Lei 11105/05.
Ainda, há o entendimento de que o próprio autor da herança possa fixar um prazo para a fecundação do óvulo fertilizado.
Em que pese o período ainda seja muito discutido, a sucessão é condicionada à sua concepção, sendo que o direito sucessório apenas se consolida a partir do nascimento com vida do então denominado legatário pelo testador e a partilha é realizada sob condição resolutiva, sendo feita de maneira provisória, deixando os herdeiros com a obrigação de recompor o quinhão respectivo ao possível legatário.
Apesar de ser possível a utilização desse artigo para beneficiar possíveis filhos do próprio testador, como dito anteriormente, não foi para isso que ele foi criado, sendo que, no âmbito do direito civil, não há legislação que regulamente efetivamente a inseminação artificial homóloga, ficando a cargo da doutrina e jurisprudência discutir a respeito do assunto.
Sobre a matéria, preleciona Maria Helena Diniz (2006, p. 480, apud GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2016, p. 130):
“Filho póstumo não possui legitimação para suceder, visto que foi concebido após o óbito de seu pai genético, e por isso, é afastado da sucessão legítima ou ab intestato. Poderia ser herdeiro por via testamentária, se inequívoca a vontade do doador do sêmen de transmitir herança ao filho ainda não concebido, manifestada em testamento. Abrir-se-ia a sucessão à prole eventual do próprio testador, advinda de inseminação artificial homóloga post mortem. (LICC, arts. 4º e 5º).”
Segundo José Roberto Moreira Filho, em sua obra denominada “os novos contornos da filiação e dos direitos sucessórios em face da reprodução humana assistida”, citada por Gagliano e Pamplona Filho (2016, p.130), não há que se falar em direito sucessório ao filho concebido após a morte, conforme trecho transcrito:
“Quanto à inseminação post mortem, ou seja, a que se faz quando o sêmen ou o óvulo do de cujus é fertilizado após a sua morte, o direito sucessório fica vedado ao futuro nascituro, por ter sido a concepção efetivada após a morte do de cujus, não havendo, portanto, que se falar em direitos sucessórios ao ser nascido, tendo em vista que pela atual legislação somente são legitimados a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.”.
Entretanto, a Constituição Federal proíbe qualquer discriminação entre filhos, consoante artigo 227, §6º, que preceitua que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”, da mesma forma aduz o artigo 1.596, do dispositivo aqui em análise, e justamente em razão disso é que o Professor Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 76) nos ensina que:
“Se, assim, na sucessão legítima, são iguais os direitos sucessórios dos filhos, e se o Código Civil de 2002 trata os filhos resultantes de fecundação artificial homóloga, posterior ao falecimento do pai, como tendo sido “concebidos na constância do casamento”, não se justifica a exclusão de seus direitos sucessórios. Entendimento contrário conduziria à aceitação da existência, em nosso direito, de filho que não tem direitos sucessórios, em situação incompatível com o proclamado no art. 227, §6º, da Constituição Federal”.
7. CONCLUSÃO
Até o presente momento, entende-se que os filhos concebidos por inseminação artificial homóloga post mortem não possuem vocação hereditária para herdar o patrimônio do autor da herança de maneira legítima, apesar de ser considerado como filho do falecido pelo direito de família.
Entretanto, poderá o mesmo, por força do artigo 1799, I, ser legatário, desde que o testador assim disponha e se respeitado o prazo estipulado em lei.
Isto posto e devido à divergência doutrinária e à omissão legislativa, o tema continuará a ser matéria de discussão na esfera do direito sucessório, o que causa grande insegurança jurídica.
Ademais, convém realizar uma interpretação extensiva aos dispositivos, a fim de respeitar o fundamento constitucional da igualdade entre os filhos, aplicando, o operador do direito, as técnicas de ponderação de interesses.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 – GONÇALVES. Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, v.6, pg. 280.
2 – CJF – Enunciados - http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/737. Acesso em: 22/11/2017.
RESOLUÇÃO CFM nº 2.121/2015 - http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2121_2015.pdf. Acesso em: 22/11/2017.
Código Civil - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm Acesso em: 22/11/2017.
GAGLIANO. Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, 3ª Ed. 2016. São Paulo: Editora Saraiva.
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil. 14ª Ed. 2014. São Paulo: Editora Atlas S.A.