3-AS JARI`s E SUA COMPETÊNCIA
O Código de Trânsito Brasileiro – CTB, Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997, traz em sua seção II, sob o título Da composição e da competência do Sistema Nacional de Trânsito, em seu artigo 7º, inciso VII, a seguinte redação:
Art. 7º Compõem, o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades;
VII – as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI.
Por sua vez, o artigo 17 do CTB diz que compete às JARI:
I – julgar os recursos interpostos pelos infratores;
II – solicitar aos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários informações complementares relativas aos recursos, objetivando uma melhor análise da situação recorrida;
III – encaminhar aos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários informações sobre problemas observados nas autuações e apontados em recursos, e que se repitam sistematicamente.
As JARI, portanto, servem para proporcionar aos condutores e ou proprietários de veículos autuados, momento de defesa de seus direitos, direitos estes resguardados pela Carta Maior do Brasil.
O município de Goiânia criou por meio do Decreto nº 568, de 30 de março de 1998, as JARI necessárias ao julgamento dos recursos administrativos provenientes das infrações de trânsito cometidas dentro do limite territorial de sua competência.
Em 10 de abril de 2001, o Excelentíssimo senhor Prefeito de Goiânia, Professor Pedro Wilson Guimarães, promulga o Decreto nº 1578/2001, criando o Regimento Interno das Juntas Administrativas de Recursos de Infrações de Trânsito - JARI.
Com o advento do Regimento Interno, as JARI passam a ter maior legitimidade para sua atuação, vez que até aquele momento, não haviam métodos ou diretrizes que minimamente orientassem no seu funcionamento.
O Decreto 1578/01 não determina quais os critérios de julgamento da JARI, limita-se a dar orientações gerais de funcionamento interno das reuniões e competências de seus membros, ainda assim, foi um grande passo na intenção de se dar maior legitimidade ao julgados da JARI.
Como pode ser notado, o Legislativo e o Executivo municipal agiram com timidez ao criar órgão de importância salutar para a preservação da democracia e do cumprimento assíduo da Constituição Federal de 1988. Os direitos de Ampla Defesa e do Contraditório, ainda que com o advento do regimento interno da JARI, ficaram prejudicados, pois àquela época não havia sido criado em Goiânia, a comissão de análise de defesa prévia, a qual teria o objetivo de analisar a regularidade das infrações, oportunizando aos cidadãos o direito de defenderem-se amplamente, assim como consagra a Carta Maior de 1988.
3.1-AS JARI COMO MEIO DE CERCEAMENTO DE DEFESA DO CIDADÃO E TUMULTO DO PODER JUDICIÁRIO.
Podemos observar que o legislador buscou, ao criar a Junta Administrativa de Recursos de Infrações, promover a democracia e garantir, ainda que restritivamente, o acesso ao direito de defesa outrora submisso aos interesses escusos dos ditadores pátrios. Contudo, ainda que agindo com zelo, os mentores da JARI deixaram de observar que por tratar-se de órgão julgador de deliberação coletiva, tais Juntas necessitavam de um aparato normativo mais bem estruturado, o qual deveria acompanhar as diretrizes constitucionais. O CTB, superficialmente, diz qual a competência da JARI, porém deixou de mencionar qual sua composição e forma de ação.
A JARI é mais um fenômeno político que jurídico e constitucional. Ao serem criadas tais juntas, fica evidenciado que o legislador não buscou preservar os princípios constitucionais da Ampla Defesa e do Contraditório, contudo, o fato de não haver maiores determinações legais sobre a competência e a composição de tais órgãos, muito mais evidente fica demonstrado quão politicamente danosas são as decisões de relevância nacional.
Como podemos crer que haja uma seriedade legislativa, vez que o princípio da segurança jurídica não encontra guarita em códigos nacionais tão amplamente utilizados, a exemplo do CTB?
Chegamos a um impasse, nas palavras de ilustre Luis Roberto Barroso:
[...] a própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade. Fala-se em desconstitucionalização, delegificação, desregulamentação. A segurança jurídica – e seus conceitos essenciais, como direito adquirido sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das interpretações pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico.
Sem dúvidas, a criação das JARI, vem demonstrar quão frágeis são nossas instituições democráticas, vez que a legitimidade – soberania popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte; a limitação do poder – repartição de competências, processos adequados de tomada de decisões, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias e por fim os valores – incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade, não são necessariamente observados com o fim de velar pela manutenção saudável das instituições democráticas.
A crença na Constituição e no constitucionalismo não deixa de ser uma espécie de fé: exige que se acredite em coisas que não são direta e imediatamente apreendidas pelos sentidos. Os princípios constitucionais, admitido esse entendimento, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos e seus fins.
Existe desde na tradição judaico-cristão o mandamento de respeito ao próximo, princípio magno que atravessa os séculos e inspira um conjunto amplo de normas; por sua vez o direito romano pretendeu enunciar a síntese dos princípios básicos do Direito: "Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu". Vislumbramos, portanto, dois princípios basilares da dogmática jurídica, quais sejam: o da razoabilidade e o da dignidade da pessoa humana.
O princípio da razoabilidade, em síntese, é um mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o meio empregado; b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha. Tal princípio não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é o voluntarismo que se trata. A razoabilidade, contudo, abre ao Judiciário uma estratégia de ação construtiva para produzir o melhor resultado, ainda quando não seja o único possível – ou mesmo aquele que, de maneira mais óbvia, resultaria da aplicação acrítica da lei. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se valido do princípio para invalidar descriminações infundadas, exigências absurdas e mesmo vantagens indevidas.
Trazendo a baila a questão fundamental desta obra, ou seja, o cerceamento de defesa no processo administrativo de defesa de multas de trânsito no Código de Trânsito Brasileiro, observamos que o princípio da razoabilidade deixa de ser observado por tal Diploma, em especial no julgamento efetuado pelas JARI, pois ao não ofertar ao cidadão autuado a oportunidade de defender-se previamente com todos os meios de prova admitidos em direito, o CTB ofende de forma letal a tal princípio, conforme demonstrado no item 2.3 retro.
O outro princípio, o da dignidade da pessoa humana, identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. È um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como as condições materiais de subsistência. O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar.
Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade.
Destarte, ao ofender os princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como o da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana, as JARI obrigam o cidadão a buscar as vias judiciais a fim de serem respeitados pela Administração Pública, seus direitos individuais.
O acúmulo de ações provenientes da ofensa dos princípios acima elencados, por parte das JARI, vem fazendo com que o Poder Judiciário retarde seus julgados, tornando-se dia-a-dia mais moroso, gerando um grande desconforto em toda a sociedade.
A falta de observância, ou a insistências sistêmica das JARI em continuar cerceando a defesa do cidadão vem gerando sucessivos julgados desfavoráveis à Administração Pública, o que inefávelmente, conturba todo o bom andamento e zelosa prestação de serviço público por parte do Poder Judiciário.
3.2-COMPOSIÇÃO DAS JARI
O art. 12 da Lei 9.503/97 declara ser o Conselho Nacional de Trânsito –CONTRAN, o órgão responsável para estabelecer as diretrizes do regimento das JARI. Tal conselho, portanto, deveria explicitar quais os mínimos quesitos necessários aos membros componentes de tais juntas, contudo, não o fez.
O esforço do Executivo e do Legislativo municipal em dar legitimidade e credibilidade aos julgados das JARI esbarra em questão ética da maior importância, pois, ainda que exista um regimento interno dando orientações aos membros componentes de tais juntas, em nenhum momento fora tratada a questão da composição de tais juntas, limitando-se o Decreto 1.578/01, em seu artigo 3º e incisos, a mencionar que tais componentes deverão ter reconhecida experiência na área de trânsito.
A atual composição dos membros da JARI do município de Goiânia não cita qual a "reconhecida experiência na área de trânsito" possuem seus membros. Se levarmos em conta que para se tirar a Carteira Nacional de Habilitação – CNH, todo cidadão deve possuir conhecimentos específicos na área de trânsito e, que para se compor a JARI não é exigido nenhum outro quesito senão e tão somente "reconhecida experiência na área de trânsito", então concluímos que todo cidadão habilitado poderá ser membro julgador dos recursos interpostos contra as infrações de trânsito, bastando para tal, apenas possuir o documento qualificador da aptidão em dirigir veículos automotores.
A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB não se manifesta a respeito de tal órgão julgador não ter a obrigatoriedade de ser composto por no mínimo um membro com conhecimento acadêmico específico na área de direito, ou seja, o advogado.
Seria razoável que tais juntas fossem compostas exclusivamente por profissionais habilitados a lidar com códigos, que possuam conhecimentos das técnicas legislativas e judiciárias, afinal, as JARI tratam de tema de maior importância para a preservação da democracia, o qual seja, o julgamento justo, por meio do qual visa-se a preservação da ordem democrática constitucional.
Contudo, tais cuidados não vem sendo observados, basta analisar a composição das 4 (quatro) JARI do município de Goiânia. O Decreto nº 1.577 de 10 de abril de 2001 institui tais juntas e suas composições, sem, em nenhum momento, indicar qual a reconhecida experiência na área de trânsito de seus membros.
Sem que haja a devida composição de tais órgãos julgadores, o que se dará por meio da indicação de profissionais habilitados aos procedimentos legais para um bom e justo julgamento, as JARI, portanto, passam a integrar uma espécie de aberração, vez que seus julgados, em quase sua totalidade, são considerados nulos pelo poder Judiciário, por não terem observado os princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, razoabilidade e dignidade da pessoa humana.
3.3-A CRIAÇÃO DA COMISSÃO DE ANÁLISE DE DEFESA PRÉVIA
O presente trabalho objetivava sugerir ao seu final a criação no município de Goiânia, junto ao órgão executivo de trânsito, de uma comissão de análise prévia de infrações de trânsito. Tal sugestão visava superar a falha existente na administração de tais procedimentos, pois, como vimos no decorrer deste estudo, afronta as normas constitucionais garantidoras dos direitos a um justo julgamento, resguardado pelo direito de ampla defesa.
Recentemente a Superintendência Municipal de Trânsito de Goiânia, por meio da Portaria nº 083, de 3 de setembro de 2003, institui no âmbito municipal a Comissão de Análise de Defesa prévia.
O Conselho Estadual de Trânsito de Goiás – CETRAN-GO, por sua vez, institui a Resolução nº 08, de 2 de julho de 2003, a qual determina a criação de tais comissões nos órgãos executivos de trânsito estaduais e municipais de Goiás, seguindo exemplo do estado do Paraná, que desde 2001 cumpre os preceitos constitucionais já mencionados.
A Comissão criada em Goiânia, aparentemente, visa tapar lacuna legal, a qual favorecia o ingresso junto aos Poder Judiciário de centenas de cidadãos autuados por infrações de trânsito e que entendiam estarem sendo lesados em seus direitos por não haver em Goiânia a possibilidade de obterem a análise prévia de suas supostas infrações.
Contudo, a criação de tal comissão, por si só não aufere aos autuados no trânsito a amplitude de seus direitos e garantias constitucionais, vez que a Portaria 083/03 não regulamenta a forma de funcionamento da mesma, assim, a garantia de uma análise prévia justa e obediente aos princípios legais do contraditório e da ampla defesa, restam prejudicados pela falta de transparência em seus procedimentos.
Por final, a composição da Comissão de Análise de Defesa Prévia, constituída por três membros titulares e três membros suplentes, não especifica qual a graduação necessária a seus membros, acompanhando, portanto, a mesma linha de composição da JARI.
3.4-DIREITO À PUBLICIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
A Carta Política de 1988 assegura a publicidade dos atos administrativos no seu artigo 37, caput.
O princípio da publicidade, agora com previsão constitucional, aplica-se ao processo administrativo. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: "Por ser pública a atividade da Administração, os processos que ela desenvolve devem estar abertos ao acesso dos interessados".
O acesso aos processos administrativos é mais amplo do que o acesso aos processos judiciais, visto que estes apenas as partes e seus defensores podem exercer tal direito; por sua vez, os processos administrativos podem e devem ser abertos à consulta popular, resguardando tão somente os necessariamente sigilosos como os de segurança nacional, (art. 5º XXXIII, da CF), os ligados a certas investigações, a exemplo dos processos disciplinares, de determinados inquéritos policiais (art. 20 do Código de Processo Penal) e dos pedidos de retificação de dados (art. 5º LXXII, b, da CF), desde que prévia e justificadamente sejam assim declarados pela autoridade competente.
Ressalto que a publicidade dos atos administrativos é garantida a qualquer pessoa, pois tais são titulares de tal direito, desde que tenham algum interesse coletivo ou geral, no exercício do direito à informação assegurado pelo art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição.
Segundo brilhante dissertação de Fabrício Mota [20]:
[...] a publicidade é requisito essencial para a eficácia do controle do poder, elemento indissociável também da noção de Estado de Direito... A efetivação do princípio democrático traz consigo a idéia de democratização da Administração Pública, requisito essencial para o Estado de Direito não se reduza a um sistema de proteção do cidadão frente as violação jurídicas. Nessa linha de entendimento, por trás do princípio da publicidade estão a exigência de segurança do direito e a proibição da política do ‘segredo’, entendida esta última proibição não somente como uma vedação ao arbítrio, mas como um dever de informar por parte do Estado.
Não podemos falar em democracia sem que haja por parte da Administração publicidade de seus atos. A publicidade é pré-requisito para o controle do cumprimento dos princípios que devem informar a atuação administrativa, como legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, razoabilidade, ampla defesa e contraditório entre outros.
A efetiva aplicação do princípio da publicidade promove condições de controle direito por parte do cidadão, dos atos públicos, controle este constitucionalmente garantido.
Em suma, o princípio da publicidade protege o cidadão de intromissões indevidas da Administração em sua esfera de liberdade garantido pela Carta Maior, esta é a sábia conclusão de Fabrício Mota.
3.5-O CERCEAMENTO DO DIREITO DE PUBLICIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS NA SMT
É evidente que o direito de acesso não pode ser exercido abusivamente, sob pena de tumultuar o andamento dos serviços públicos administrativos; para exercer esse direito deve a pessoa demonstrar qual o seu interesse individual, se for o caso, ou qual o interesse coletivo que pretende defender.
O presente trabalho de monografia viu-se prejudicado vez que encontrou obstáculo transponível apenas por remédio constitucional, o qual seja, mandado de segurança.
O Parecer nº 133/2003 da Superintendência Municipal de Trânsito e Transporte é claramente ofensivo ao princípio constitucional da publicidade vez que cerceia o direito as informações solicitadas em requerimento nº 23074150 de autoria do redator desta monografia.
Concluímos, portanto, que não há meios administrativos cabíveis para a obtenção de informações necessárias à ampla defesa e ao contraditório nos processos administrativos movidos pelo cidadão contra atos praticados pela SMT, restando as vias judiciais para a garantia de tais direitos.