4. DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Consagrada pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXII, com o intuito do Estado em equilibrar as relações de consumo, a defesa do consumidor é promovida a direito fundamental. Entende-se que, apesar de na prática este conceito de defesa já esteja difundido entre os indivíduos, até mesmo no consumo de serviços básicos, há a preocupação em proteger as relações consumeristas e os consumidores. Trata-se de tema tão importante que a CF/88 em seu artigo 170, inciso V, elenca a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica. Logo, a Constituição Federal impõe ao Estado o dever de intervir nas relações contratuais, com o intuito de evitar abusos, devendo os princípios da ordem econômica serem observados.
Desta forma, atendendo ao disposto no art. 48 do Ato das Disposições Transitórias, foi elaborada a Lei nº 8078/90, chamada Código de Defesa do Consumidor.
Nas suas disposições gerais, a lei nº 8078/90 em seu artigo 2º conceitua primeiramente consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Logo em seguida, no artigo 3º determina a figura do fornecedor:
Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Assim, a relação de consumo acontece com dois lados bem definidos, qual seja o consumidor, que adquire o bem ou serviço oferecido pelo fornecedor, que figura o outro lado.
O Código de Defesa do Consumidor, entendendo que na relação consumerista cabe ao consumidor apenas receber o produto ou serviço que é adquirido, sem a possibilidade de controlar a sua produção, reconhece em seu art. 4º, inciso I que o consumidor é o pólo mais frágil dessa relação. Assim sendo, dispõe:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
Logo, por assim entender, cerca o consumidor de proteção, afim de que práticas prejudiciais ou abusivas sejam evitadas, igualando as partes a um mesmo nível, segundo a premissa de tratar desigualmente os desiguais. Importante ressaltar, que a vulnerabilidade do consumidor, não depende da sua classe social, escolaridade, nível cultural, etc. Ela é inerente ao consumidor, não sendo necessário comprová-la.
A mesma preocupação tem o CDC em cercar o consumidor de proteção quando determina a boa fé como base da relação de consumo. O mencionado artigo 4º, em seu inciso III prescreve:
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
E prevê no artigo 51, inciso IV, a possível nulidade dos contratos consumeristas quando não detectada a boa fé.
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
Portanto, é possível perceber que o Código de Defesa do Consumidor se preocupa com a transparência nas relações de consumo, evitando que aquele que adquire um produto ou serviço seja prejudicado por intenções enganosas, que induzem ao erro e o prejudique.
Finalmente, e não menos importante, dentre os dispositivos que elegemos necessário destacar está o artigo 22 do CDC. Nele apresenta-se a figura dos serviços essenciais prestados por órgãos públicos e o dever da sua continuidade. Assim estabelece:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Apesar de não definir o termo “serviços essenciais” e conforme já exposto não ser uma tarefa fácil conceituá-los, de modo geral, estão relacionados aos serviços indispensáveis à sobrevivência, impondo que estes não sejam interrompidos. É fácil entender porque o legislador não tenha definido quais seriam os serviços essenciais, pois estes não são estáticos, dependendo do contexto histórico, da evolução humana e da importância social. É o caso, por exemplo, dos serviços de fornecimento de energia elétrica, que a princípio eram tratados como bem supérfluo e, portanto, viável a poucos administrados, o que difere da atualidade, considerado importante e indispensável serviço público.
Também é possível verificar no artigo ora analisado, que o Código de Defesa do Consumidor, não se exime da aplicação das suas regras e princípios aos serviços públicos, especialmente aqueles prestados por concessionárias como os de fornecimento de água, energia, telefonia, etc. Além do artigo 22, o referido diploma em seu artigo 42 torna inquestionável a sua aplicação às concessionárias prestadoras de serviços públicos.
5. A INCOMPATIBILIDADE DAS NORMAS QUANTO À SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA FACE AO INADIMPLEMENTO
Pelo que aqui foi exposto até então, percebe-se claras divergências entre os dispositivos que tratam do fornecimento de energia elétrica e as causas de sua suspensão.
Verificou-se que os serviços prestados por concessionárias de serviço público estão condicionados às normas do Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, princípios constitucionais, leis e resoluções específicas também prevêem e incidem sobre este tema, causando diversos questionamentos.
A possibilidade de suspensão do fornecimento de energia está prevista na Lei de Concessões, Lei nº 8987/95, em seu artigo 6º, § 3º, a seguir exposto:
Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
Assim também, prevê os artigos 172 e 173 da Resolução 414 da ANEEL:
Art. 172. A suspensão por inadimplemento, precedida da notificação prevista no art. 173, ocorre pelo:
I – não pagamento da fatura relativa à prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica;
Art. 173. Para a notificação de suspensão do fornecimento à unidade consumidora, prevista na seção III deste Capítulo, a distribuidora deve observar as seguintes condições:
I – a notificação seja escrita, específica e com entrega comprovada ou, alternativamente, impressa em destaque na própria fatura, com antecedência mínima de:
a) 3 (três) dias, por razões de ordem técnica ou de segurança; ou
b) 15 (quinze) dias, nos casos de inadimplemento.
Tais dispositivos consideram o interesse da coletividade como fundamento da interrupção do fornecimento do serviço, decorrente da aplicação do princípio da supremacia do interesse público. Cria-se uma ficção jurídica de continuidade nestes casos, pois, para a lei, não há quebra do princípio da continuidade quando o caso concreto se enquadre nas suposições elencadas pela norma. Logo não se deve oferecer, segundo princípio da isonomia, tratamento igual, no que se refere ao fornecimento do serviço, a usuários desiguais, comparando os adimplentes e os inadimplentes.
Outro fundamento da doutrina para suspender o fornecimento de energia seria o de coibir o enriquecimento ilícito por parte do usuário do serviço, excluindo o direito de receber o serviço de forma gratuita, uma vez que são serviços cobrados e as empresas concessionárias dependem do lucro para sobreviver.
Segue decisão que defende essa posição:
EMENTA: ADMINISTRATIVO – SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELETRICA – PAGAMENTO À EMPRESA CONCESISONÁRIA SOB A MODALIDADE DE TARIFA – CORTE POR FALTA DE PAGAMENTO: LEGALIDADE. 1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde, educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e energia elétrica. 2. Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços públicos. 3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio. 4. Os serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do serviço, podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no art. 6º, 3º, II, da Lei 8.987/95, exige-se, entretanto, que a interrupção seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/96, que criou a ANEEL, idêntica previsão. 5. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade da partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito (arts. 42 e 71 do CDC, em interpretação conjunta).6. Recurso especial improvido. (Resp 705203/SP, Rel.ª Min.ª Eliana Calmon, STJ – Segunda Turma, Julgamento: 11.10.2005, Dj: 07.11.2005)
A decisão ora citada se baseia no fundamento de que o serviço público prestado mediante pagamento de tarifa possa ser interrompido quando há inadimplência, porque o direito não admite enriquecimento ilícito, uma vez que o usuário continua a usufruí-lo sem cumprir com a sua contraprestação. Entretanto, entende-se que tal argumento não se aplica, pois não se trata de uma simples relação consumerista privada. Considerando que o fornecimento de energia elétrica é relevante serviço público para a sobrevivência do usuário, faz-se necessário a aplicação de outras ações permitidas no direito que obriguem ao pagamento que não seja a descontinuidade do serviço.
Na contramão destas fundamentações, o Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 4º e 6º, aqui já transcritos, valoram a dignidade humana e os direitos essenciais à sua sobrevivência. Consagra ainda em seu artigo 22, que estes devem ser contínuos e que se por ventura haja necessidade de cobrança, não seja o consumidor exposto a nenhum tipo de constrangimento
Em tempos anteriores ao nascimento do Código de Defesa do Consumidor, decisões judiciais eram comumente proferidas decidindo pela legalidade da interrupção do fornecimento de energia em casos de inadimplência. Porém, com a previsão do artigo 22 do CDC, estabelecendo expressamente a continuidade de serviços essenciais, eis que várias manifestações contrárias à suspensão do serviço foram surgindo.
Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana, pilar e fundamento da Constituição Federal, não deixa dúvidas que a preservação da vida deve estar acima de tudo e, portanto, motivo pelo qual o fornecimento de energia não poderia ser suspenso, pois ao contrário, colocaria em risco a saúde, a dignidade e a vida das pessoas.
Neste viés, já manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. DIREITO DO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇAO DO FORNECIMENTO. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 22 E 42, DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO DE PROTEÇAO E DEFESA DO CONSUMIDOR). 1.Recurso Especial interposto contra Acórdão que entendeu ser ilegal o corte de fornecimento de energia elétrica, em face de inadimplemento do Município recorrido. 2. Não resulta em se reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma em face de ausência de pagamento de fatura vencida. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. O art. 22, do Código de Proteçâo e Defesa do Consumidor, assevera que "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. O seu parágrafo único expõe que "nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste código”. Já o art. 42, do mesmo diploma legal, não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Os referidos dispositivos legais aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 6. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 7. Caracterização do periculum in mora e do fumus boni iuris para sustentar deferimento de ação com o fim de impedir suspensão de fornecimento de energia. 8. Recurso Especial não provido.(REsp 442814/RS, STJ – Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, julgamento: 03.09.02, DJ:11.11.2002)
Percebe-se que há elevada importância dada aos artigos 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor, e a menção do direito do cidadão de utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade.
Diante o exposto, e analisando as defesas apresentadas verifica-se que as duas correntes, de um lado a que compatibiliza com a suspensão do fornecimento de energia em caso de inadimplemento e do outro lado os que defendem a continuidade do serviço, utilizam como fundamento respectivamente, o princípio do interesse coletivo e do direito de crédito em face do princípio da continuidade e da dignidade da pessoa humana. Ambos válidos e aplicáveis ao caso em tela.
Entretanto, eis que surge uma divergência de princípios o que nos leva a uma análise mais profunda para definir quais deles teria maior validade diante do caso concreto
O princípio do interesse coletivo é fundamento para aqueles que defendem a suspensão do fornecimento de energia, pois segundo este princípio, o inadimplemento de um usuário, ataca todos aqueles que cumprem com o pagamento, garantindo o fornecimento. A falta de pagamento, gera inclusive, o enriquecimento ilícito do consumidor devedor, o que desrespeita o direito de crédito das concessionárias.
Em função disso, é comum que as empresas fornecedoras de energia elétrica, aumentem suas tarifas para garantir sua manutenção no mercado e consequentemente a prestação do serviço. Logo, os usuários adimplentes estariam pagando pelo inadimplemento de terceiros, que caso não ocorresse, não seria necessário tal reajuste.
Porém, os princípios da continuidade do serviço essencial, juntamente com o princípio da dignidade humana, garantem ao indivíduo saúde, segurança e dignidade, sendo que o contrário, atacaria estes princípios diretamente.
Logo, conclui-se que o direito de crédito não deve se sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana, muito menos privar o homem de condições básicas de sobrevivência. A dificuldade em manter o fornecimento do serviço pelo inadimplemento, não deve ser motivo para suspender o serviço, uma vez que a empresa deve arcar com os riscos das relações econômicas.