Análise da resolução 2.121/2015 sob a ótica da natureza jurídica do CFM e de suas resoluções

30/11/2017 às 23:10
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Neste artigo fazemos uma breve análise da natureza jurídica do CFM e suas resoluções para dar uma visão crítica da resolução 2.121/2015 que dispõe sobre a reprodução assistida.

1. Introdução

Grande parte dos trabalhos sobre o tema da gravidez por sub-rogação com os quais nos deparamos parecia repetir a ideia de que, diante do vácuo legislativo sobre o tema, a resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina surgiu como um norte a fim de regular a matéria. Embora não refutemos a ideia como um todo, diante de diversos pontos da referida resolução que nos parecem extrapolar o poder regulamentar, decidimos fazer uma breve análise da natureza do Conselho Federal de Medicina e suas resoluções.

Para tanto, valeremo-nos das preciosas lições de Direito Administrativo do professor José dos Santos Carvalho Filho.


2. Do CFM

O Conselho Federal de Medicina, instituído pelo Decreto-Lei 7.955/45, tem seu fundamento legal na Lei 3.268/57, que, em seu artigo 1º, já nos traz sua natureza jurídica: autarquia federal.

Conforme nos ensina a doutrina administrativista, as autarquias são pessoas jurídicas da Administração Indireta, que surgem através do fenômeno da descentralização. Conforme ensina Carvalho Filho (2014, p. 489), o critério para instituição de pessoas da Administração indireta é de ordem eminentemente administrativa, ou seja, por critério de conveniência e oportunidade, o Poder Público transfere, no caso das autarquias, a titularidade de determinada atividade.

Carvalho Filho segue conceituando as autarquias como a pessoa jurídica de direito público, integrante da Administração Indireta, criada por lei para desempenhar funções próprias e típicas do Estado. Importante notar que justamente a possibilidade de as autarquias receberem funções próprias do Estado é que foi utilizada como fundamento para declarar a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei 9.649/97, que buscou reorganizar a administração federal, especialmente na parte em que estabeleceu que os conselhos de fiscalização profissional passariam a ter natureza privada. Ora, conforme decisão do STF, não é possível que o Estado transfira a titularidade de funções suas a particulares, dessa forma, não encontrou respaldo constitucional a tentativa legislativa de considerar autarquias como o CFM entidades privadas, especialmente quando consideramos a natureza de sua atuação, que cria regras e tem poder de polícia e tributação.

O CFM, assim, pode ser considerado autarquia profissional ou corporativa, incumbida na forma da lei 3.268/57 de organizar e regular diversos aspectos da profissão médica, bem como de seus Conselhos Regionais.


3. Das Resoluções do CFM

Antes de analisarmos a natureza das resoluções do CFM, é indispensável que nos confrontemos com um dos poderes da administração, qual seja, o poder regulamentar.

Como já pontuado, o Poder Público ao criar autarquias, neste caso específico o CFM, transfere por descentralização uma parte das suas funções e poderes. Implica dizer que a o Poder Público só pode transferir a esta autarquia uma função ou poder do qual era o titular. Nesse sentido, o poder regulamentar, que o CRM recebeu da Administração Direta quando da sua criação, pode ser, no máximo, o mesmo titularizado por aquela, uma vez que não se pode transferir a outrem algo do qual não se dispõe.

Assim, ensina Carvalho Filho (2014, pag. 57) que cumpre à Administração criar os mecanismos de complementação indispensáveis à sua efetiva aplicabilidade, sendo esta a base do Poder Regulamentar. Importante atentar que, ainda que tal poder regulamentar tenha inegável função normativa, sua função é única e exclusivamente a de complementar o sentido da lei, sendo vedada qualquer disposição que aumente, suprima ou altere as disposições legais. Devem tais regulamentos encontrar seu fundamento na lei, sob pena de abuso no poder regulamentar e consequente ilegalidade, sendo, portanto, considerados de natureza derivada ou secundária. Seu fundamento constitucional encontra-se no art. 84, que confere ao chefe do executivo o poder para viabilizar a efetiva execução das leis.

Segue Carvalho Filho (2014, pag.60) alertando-nos de que a obrigação do exercício do Poder Regulamentar ter respaldo na lei, decorre de consequência lógica do art. 5º, II, da CF, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Assim, é legítimo ao Poder Regulamentar fazer exigências, desde que elas encontrem fundamento nas obrigações impostas pela lei que visa regulamentar.

Assim, revestem-se de ilegalidade atos que, a pretexto de regulamentar determinada situação jurídica, criem, modifiquem, alterem ou restrinjam direitos, bem como aqueles que impõem condições ou obrigações, quando não encontrarem conexão com as determinações legais.

Dessa forma, quando o Poder Público transferiu por descentralização ao CFM a titularidade para organizar e regular aspectos da prática médica, no tocante ao poder regulamentar que esta autarquia recebeu, aplicam-se as mesmas restrições impostas ao poder descentralizado, em outras palavras, as resoluções expedidas pelo CFM com base no Poder Regulamentar têm que manter estreita observância à lei da qual se pretende viabilizar a efetiva execução, sob pena de a Resolução ser eivada pela ilegalidade.

Neste diapasão, a mesma Lei 3.268/57 que instituiu os Conselhos Regionais e Federais de Medicina traz em seu art. 5º as atribuições do Conselho Federal, dentre elas votar e alterar o Código de Deontologia Médica, que deve ser entendido como as regras morais que todo médico deve respeitar e que se impõem a todos os profissionais inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina, conforme o preâmbulo do próprio Código de Deontologia Médica, Resolução 1.154/1984 do CFM.

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Em outras palavras, as disposições do referido Código de Deontologia Médica têm aplicação interna corporis, com objetivo de instituir princípios e regras que nortearão a profissão médica.

A mesma resolução 1.154/1984, em seu art. 2º, institui que, sempre que preciso, pode o CFM baixar resoluções que atendam às necessidades éticas, propiciando um relacionamento harmônico e atualizado entre os profissionais. Assim, diante do rápido progresso da ciência, é normal que o CFM necessite emitir outras resoluções de caráter deontológico para complementar pontos específicos cuja regra geral da Resolução 1.154/1984 não trate com clareza.


4. Da Resolução 2.121/2015

É exemplo desse tipo de Resolução Complementar a Resolução 2.121/2015, que busca tratar especificidades éticas e técnicas da reprodução assistida.

Contudo, é importante notar que ambas as resoluções, enquanto oriundas do Poder Regulamentador, estão sujeitas às mesmas limitações que se impõem sobre o poder descentralizador, conforme já foi alertado. Se a partir da leitura do Código de Deontologia Médica é possível contatar que este traz princípios e regras que norteiam o exercício ético da medicina, com regras voltadas para os profissionais aos conselhos de medicina vinculados, a leitura da Resolução 2.121/2015 contrasta nitidamente com a primeira.

A resolução de 2015 nos parece extrapolar seu Poder Regulamentar conferido pela Lei 3.268/57, uma vez que, além de padronizar procedimentos e condutas a serem seguidas pelos profissionais médicos que atuam com técnicas de reprodução assistida, cria ela diversas normas que não encontram fundamento na lei, caracterizando por tudo que foi colocado, verdadeira afronta ao princípio da legalidade insculpido no art. 5º, II, da Constituição Federal.

Como exemplos de regras que extrapolam o Poder Regulamentar conferido pelo art. 5º da Lei 3.268/57 podemos citar a regra que restringe as pessoas que podem se voluntariar para a gravidez por substituição, bem como proíbe caráter lucrativo na prática. Nos parece também questionável a exigência de consentimento do cônjuge da gestante por sub-rogação para que ela possa se submeter ao procedimento. Nesse caso, embora possamos ver boa intenção por parte do órgão regulador, a fim de se evitar constrangimentos ao marido da gestante, tal exigência configura verdadeira restrição aos direitos da personalidade da gestante, especialmente no tocante à sua liberdade e integridade física, que não são transmitidos para o esposo como consequência da inalienabilidade de tais direitos. Aceitar esse entendimento implica dizer que a esposa precisaria de outorga marital para realizar uma cirurgia plástica, ou até mesmo para sair na rua, já que, após o casamento, ela deixaria de ser senhora de seu próprio corpo.

Ademais, a Lei 9.434/97, que regulamenta o Transplante de Órgãos, não pode ser aplicada à gravidez por sub-rogação, porque não se trata de caso abrangido pela referida lei, em que não há de se falar em disposição permanente do órgão, que é o que caracterizaria o transplante a nosso ver.

Com a devida vênia àqueles que veem alento no fato de, diante da inércia legislativa, ter se avocado o Conselho Federal de Medicina à condição de verdadeiro órgão legiferante, dispondo sobre direitos da personalidade que estão completamente fora de seu Poder Regulamentar, entendemos que tal inércia legislativa não justifica a flagrante ilegalidade representada por algumas disposições dessa resolução. Especialmente quando refletimos que o mesmo órgão que prega o altruísmo absoluto da gravidez por substituição, representa os profissionais que cobram verdadeiras fortunas pelas exatas consultas e procedimentos que permitem tal gravidez. A lógica que nós usamos é a de que, se as gestantes por sub-rogação passarem a ser pagas, sobraria menos dinheiro para gastar com honorários e procedimentos. É de se refletir.

Portanto, se a gravidez por sub-rogação deve se revestir de caráter gratuito, e quais são as pessoas que podem a ela se submeter, cabe ao poder legislativo determinar, modular e decidir. Ao CFM cabe estabelecer os padrões éticos para a prática por parte dos profissionais médicos, não cabendo ao Conselho Federal limitar ou legislar sobre direitos de terceiros estranhos a seus quadros além de critérios técnicos para a proteção da vida tanto da gestante quanto do nascituro.

Ao legislador federal, e somente a ele, competiria restringir o direito da cidadã decidir se vai se submeter à uma gravidez por sub-rogação e a qual título. Gravidez é algo tão natural quanto respirar, portanto causa-nos estranheza que o mesmo sistema jurídico que permite trabalho em minas de amianto e tantos outros trabalhos flagrantemente insalubres proíba a gravidez por sub-rogação profissional, seja a título de empreitada, seja a título de prestação de serviços. Mas sequer esta é a questão aqui, pois a entidade autárquica que resolveu a questão, o fez extrapolando os poderes a ela conferidos, tratando-se de verdadeiro caso de abuso de poder regulamentador.

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