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Aposentadoria especial no serviço público e o princípio da igualdade

07/02/2005 às 00:00
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Sabe-se que no texto constitucional existem normas que não precisam de qualquer disciplina posterior, sendo, portanto, exeqüíveis, desde a publicação da Lex Maior. José Afonso da Silva, constitucionalista de escol, nomeia-as de normas constitucionais de eficácia plena. Contudo, existem outras normas que não tem esse condão, caracterizando-se, pois, pela sua eficácia limitada, que tem como apanágio-mor não se realizarem de imediato, mas precisando de normatização posterior, geralmente, por intermédio de leis complementares ou ordinárias, pelo que foram cognominadas de normas constitucionais de eficácia limitada.

A notável propedeuta Maria Helena Diniz, apud Alexandre Morais [1], também ofereceu o seu quinhão ao estudo das normas constitucionais, propondo uma nova espécie de classificação, que se pautará por critérios como a intangibilidade e a produção dos efeitos concretos. Eis o conceito por ela enunciado, in litteris:

"(...)há preceitos constitucionais que têm aplicação mediata, por dependerem de norma posterior; ou seja, de lei complementar ou ordinária, que lhes desenvolva a eficácia, permitindo o exercício do direito ou do benefício consagrado. Sua possibilidade de produzir efeitos é mediata, pois, enquanto não for promulgada aquela lei complementar ou ordinária, não produzirão efeitos positivos, mas terão eficácia paralisante de efeitos de normas precedentes incompatíveis e impeditiva de qualquer conduta contrária ao que estabelecerem. Não recebem, portanto, do constituinte normatividade suficiente para sua aplicação imediata, porque ele deixou ao Legislativo a tarefa de regular a matéria, logo, por esta razão, não poderão produzir todos os efeitos de imediato, porém, tem aplicabilidade mediata, já que incidirão totalmente, sobre os interesses tutelados, após o regramento infraconstitucional. Por esse motivo, preferimos denominá-las normas com eficácia relativa dependente de complementação legislativa".

E todo esse prefácio é necessário para explicitar a atual situação da aposentadoria especial no serviço público, que merece guarida no excelso texto constitucional desde a sua promulgação, em 05.10.1988, posto que já constava na sua redação originaria, mas que, até hoje, inda, não encontra disciplina infraconstitucional, fato que prejudica, à saciedade, o servidor público que, decorridos mais de 15 anos da instituição da nova ordem, e tantos serviços prestados à nação - nos hospitais, nos laboratórios de química, mecânica, biologia dos parques tecnológicos das universidades federais, etc -, infelizmente, não foi contemplado com a publicação da respectiva lei complementar que fixará os procedimentos atinentes à concessão do benefício em tela.

Não se explica que o trabalhador da iniciativa privada, desde 1991, com a edição das leis 8.212/91 e 8213/91, tenha sido contemplado com a disciplina de sua aposentadoria decorrente de serviços prestados em condições anormais - até por que muitos dos diplomas legais existentes à época foram recepcionados pela novel ordem -, enquanto o servidor público, até hoje, amargue a marginalização, mourejando em ambientes insalubres, exposto a agentes patogênicos de riscos descomunais à sua higidez, sem quaisquer reduções em seu tempo de contribuição, inobstante, diuturnamente, sentir delir o seu organismo que, muitas vezes, não resiste às intempéries, aposentando-se por invalidez para, em seguida - muitas vezes nem dá tempo -, ser levado a óbito em decorrência da exposição prolongada aos multicitados agentes etiológicos.

Como forma de minimizar os efeitos deletérios dessas mazelas, os tribunais, contudo, vêm, mesmo parcialmente, restabelecendo, senão a justiça que o caso requer, in totum, ao menos minimizando as conseqüências da maliciosa inoperância legislativa, reconhecendo o direito dos servidores cuja data de admissão no serviço público seja inferior à data da publicação da Lei 8112/90, de 12.12.1990, e que tenham, efetivamente, mourejado em condições anormais, assegurando-lhes, por conseguinte, a possibilidade de verem o tempo trabalhado, devidamente, convertido com os respectivos acréscimos, em conformidade com a legislação previdenciária afeta aos trabalhadores do setor privado, respeitando-se, ademais, o direito adquirido que se aperfeiçoou e, definitivamente, aderiu aos seus patrimônios jurídicos, quando laboraram no regime trabalhista.

A propósito, válido é analisar a jurisprudência que se vem consolidando, mormente, a que se origina do Superior Tribunal de Justiça. Veja-se a ementa do acórdão, em sede de Recurso Especial, tombado sob o n.° 477741/PB, nos autos do processo n.° 2002/0129343-7, relatado pelo Ministro Felix Fischer, publicado no Diário da Justiça de 17/03/2003, p. 285, verbis:

"ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO. EX-CELETISTA. CONTAGEM TEMPO DE SERVIÇO. ATIVIDADE INSALUBRE. POSSIBILIDADE.

I - O servidor público ex-celetista tem direito a que seja averbado em sua ficha funcional o tempo de serviço que prestara no regime anterior, em condições nocivas à saúde, com o acréscimo legal

decorrente da insalubridade. Precedentes.

II – "Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida" (Súmula 83/STJ).

Recurso não conhecido."

Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Recurso Especial n.° 388.356, publicado no Diário da Justica, de 17.06.2002, p. 293, que teve o eminente Ministro José Arnaldo da Fonseca como relator, exauriu quaisquer dúvidas acerca da materia, dada a clareza com que enunciou a Ementa do respectivo acórdao, in litteris:

"RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. ATIVIDADES INSALUBRES. CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO. AVERBAÇÃO. POSSIBILIDADE. MUDANÇA DE REGIME.

Tendo os recorrentes prestado serviço em condições insalubres à época em que a legislação celetista permitia a contagem de tempo especial, tal direito já se encontra devidamente incorporado a seu patrimônio jurídico, ainda que posteriormente tenha havido a mudança de regime.Precedentes.Recurso provido."

Afigura-se de extrema importância trazer, in verbis, as excelentes premissas de que se valeu o Ministro José Arnaldo da Fonseca para subsidiar o seu voto:

"A irresignação merece amparo. Não se está pleiteando a aposentadoria em si, mas sim a contagem daquele tempo de serviço, efetivamente prestado em condições insalubres onde, na época, era reconhecido como especial, e, daí obter uma certidão de tempo de serviço.

Valho-me, aqui, das elucidações do il. Colega, Ministro Félix Fischer, ao relatar o Resp 292.734/RS:

‘O trabalhador que presta serviço em condições nocivas à saúde, e que teria direito por isso à aposentadoria especial faz jus ao cômputo do tempo com o acréscimo previsto na legislação... Assim, eventual alteração no regime ocorrida posteriormente, mesmo que não mais reconheça aquela atividade como insalubre, não retira do obreiro o direito à contagem do tempo de serviço na forma anterior, porque já inserida em seu patrimônio jurídico.’

(...)

‘...Nesse ponto, é importante observar que não se está reconhecendo o direito do servidor à aposentadoria especial, nem à contagem do tempo de serviço estatutário como se fosse prestado em condições insalubres. A decisão reprochada foi expressa em reconhecer ao recorrente apenas o direito à contagem do tempo trabalhado em regime celetista, em condições especiais na forma prevista na legislação da época...’

(In DJ 04.06.2001).

Realmente, não há que se negar o pretendido e, assim o fazendo, o decisum contrariou as legislações indicadas, pois estaria retirando um direito adquirido sob o amparo da legislação atinentes à época, direito já incorporado ao patrimônio do servidor."

O Tribunal de Contas da União, entrementes, não compartilha desse entendimento, visto que segue à risca a sua Súmula n.° 245, que hostiliza a contagem do tempo de atividades insalubres com o acréscimo previsto para aposentadorias concedidas pelo regime geral de previdência social, pelo que vem, sistematicamente, negando o registro de atos de aposentadoria que se valem do presente expediente. Eis, ipsis verbis:

"Não pode ser aplicada, para efeito de aposentadoria estatutária, na Administração Pública Federal, a contagem ficta do tempo de atividades consideradas insalubres, penosas ou perigosas, com o acréscimo previsto para as aposentadorias previdenciárias segundo legislação própria, nem a contagem ponderada, para efeito de aposentadoria ordinária, do tempo relativo a atividades que permitiriam aposentadoria especial com tempo reduzido".

Inevitavelmente, o meritum causae refere-se à questão da igualdade de situações existentes entre as duas classes de trabalhadores – o do serviço público e o trabalhador da iniciativa privada, vinculado ao regime geral de previdência social-, maiormente, no que pertine às condições ambientais a que estão submetidos em função das profissões que exercem. Alexandre Morais [2], discorrendo acerca do Princípio da Igualdade, faz os seguintes esclarecimentos, in litteris:

"A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois, o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal".(Grifos nossos e do original)

Não há, pois, critério idôneo que, validamente, albergue a existência da distinção de tratamentos, haja vista que não há como se explicar por que o trabalhador vinculado ao RGPS está cercado de garantias - leis, decretos, portarias, instruções normativas, enfim, uma série de instrumentais que disciplinam a sua condição, enquanto trabalhe em ambientes insalubres ou manuseie equipamentos e, ou, substâncias que ponham em risco sua incolumidade física -, e o servidor público, transcorridos mais de 15(quinze) anos da promulgação da nova Lei Magna, ainda amargue a aridez de normas regulamentadoras básicas de seu trabalho prestado em condições excepcionais, em conformidade com o preceptivo do art. 40, § 4.°, da CF88.

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Frise-se, ademais, que ambos os trabalhadores operam substâncias químicas, agentes biológicos da mesma natureza, e, convenhamos, a estrutura orgânica dos servidores públicos em nada diverge da dos demais trabalhadores. Assim, se um servidor público está exposto ao mercúrio em nada serão diferenciados os malefícios que esta substância causará a esse servidor, se cotejados com a mesma substância operada por trabalhador da iniciativa privada, que já ostenta direito a uma aposentadoria especial aos 25 anos de trabalho.

A propósito, não se pode olvidar de que já existe dispositivo na Charta de Outubro, art. 40, § 12, com a redação imposta pela EC n.°20/98, que manda aplicar, no que couber, ao regime de previdência dos servidores públicos, requisitos e critérios utilizados e instituídos pelo Regime Geral de Previdência Social, ipsis verbis:

"§ 12. Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social."

Obviamente, que tal dispositivo não pode ser aplicado no caso das aposentadorias especiais, dado que a Constituição é clara quando impõe a edição de lei complementar para disciplinar a matéria; contudo, se o legislador quisesse resolver, definitivamente, a situação e livrar o judiciário do congestionamento de processos, bastaria revogar o § 4.° do art. 40, e mandar aplicar quantum satis o estatuído pelo art. 40, § 12, da nossa Charta Política e, doravante, proceder às necessárias adaptações.

O que se não pode admitir é que esses critérios, que podem ser observados nas duas situações, apenas sejam utilizados quando prevejam alguma desvantagem ao servidor público. O contrário, id est, quando houver alguma vantagem na igualdade de tratamento, também deve ser observado.

Não se pode, ademais, firmar-se no argumento, segundo o qual a instituição do benefício vai ocasionar a aposentadoria precoce de servidores. Ora, assim admitindo, estaríamos aceitando subverter a ordem jurídica de nosso País, impondo aos servidores sacrifícios incomensuráveis, malferindo seus direitos, desrespeitando-se, alfim, a própria Constituição, como lei máxima e definidora da ordem pública, que tem como objetivo, dentre outros, o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Tendo em vista os argumentos expendidos e vislumbrando-se, ademais, a promulgação das Emendas Constitucionais n.os 20/98 e 41/2003, que, em variados dispositivos, tencionaram igualar em sendas previdenciárias os servidores públicos aos trabalhadores da iniciativa privada, inclusive, criando a possibilidade de o servidor público não receber mais do que o teto estipulado para o regime previdenciário administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social, ex vi do art. 40, § 14, da Charta de Outubro, nada mais justo que também se espraie tal igualdade para outras vertentes, principalmente, aquelas que tragam alguma vantagem, dignidade e respeito ao trabalhador do serviço público nacional.

Isto posto, há de se apelar para que os congressistas se sensibilizem com a situação atroz por que passa o servidor público que, malgrado contribuir com o seu quinhão para o desenvolvimento deste país, diuturnamente, perdendo sua higidez física, tendo, na maioria das vezes, de, ao final da carreira, ser informalmente desviado de função, ou mesmo readaptado, em razão das agressões que sofreu à saúde, no decorrer de trinta e cinco anos de serviços prestados - tempo no qual trabalhadores da iniciativa privada já estão há muito retirados dos inóspitos ambientes de trabalho -, inda não são tratados com a deferência e respeito a que têm direito.

Conclui-se, pois, que, a persistir tal estado de coisas, o art. 40, § 4.°, da Lei Maior, inexoravelmente, estará fadado a trilhar o mesmo caminho do art. 192, § 3..°, da mesma Carta Política, que dispunha sobre a limitação constitucional dos juros, que, empós anos e anos sem qualquer regulamentação, capitulou, expugnado que foi palmo a palmo pelo Governo Neo-Liberal do Partido dos Trabalhadores, pela Emenda Constitucional n.° 40/03, que o revogou sobejamente.


Notas

1Morais, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas Editora. p. 40.

2 Idem. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, Ed. Atlas, São Paulo, 2003, p. 180.

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Sobre o autor
Sérgio Lopes de Paula

advogado, orientador do Escritório Modelo da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Sérgio Lopes. Aposentadoria especial no serviço público e o princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 580, 7 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6259. Acesso em: 23 nov. 2024.

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