4. Impossibilidade de contagem de prazo prescricional durante paralisação do processo decorrente da morosidade do Poder Judiciário
Diante da sobrecarga de processos que abarrotam o Poder Judiciário brasileiro hoje em dia, são bastante comuns paralisações processuais por falha ou morosidade do sistema judiciário, isto é, por questões que não podem ser atribuídas à parte exequente. São exemplos de tais paralisações a demora para expedição de certo mandado de citação e penhora e o longo período em que o processo pode se encontrar concluso aguardando pronunciamento judicial.
Pelo entendimento apresentado de que a inércia da exequente é condição essencial para a decretação da prescrição ordinária e intercorrente, durante as referidas paralisações no curso do processo não poderia fluir prazo prescricional. Tal conclusão parece simples, mas a questão merece aprofundamento, sobretudo no tocante à prescrição ordinária.
Antes da Lei Complementar nº 118/2005, o artigo 174 do CTN previa, em seu parágrafo único, inciso I, a citação válida do devedor como causa de interrupção da prescrição do crédito tributário. Com a referida lei complementar, o dispositivo foi modificado, de modo a antecipar a interrupção prescricional para o despacho do juiz que ordena a citação do devedor tributário. Essa alteração foi benéfica para a Fazenda Pública, que era bastante prejudicada com a morosidade do Judiciário associada à dificuldade de localizar o executado. Nesse sentido, explica Alexandre:
“A prevalência da redação anterior do CTN possibilitava ao devedor fugir à citação pessoal, de forma a manter artificiosamente a fluência do prazo prescricional. Tal situação era por demais injusta para a Fazenda Pública que, mesmo agindo (propondo a execução fiscal), poderia ver seu direito parecer por algo que lhe é alheio (a fuga do devedor)”[17].
O Código de Processo Civil de 1973 dispõe que “a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação” (art. 219, §1º). O Novo Código de Processo Civil, de 2015, por sua vez, em seu artigo 240, §1º, estabelece que “a interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação”. Assim, aplicando subsidiariamente o diploma processual civil na cobrança judicial da Dívida Ativa da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme permite o artigo 1º da Lei nº 6830/80, tendo agido a Fazenda Pública, ajuizando o feito executivo fiscal, não há mais o que se falar em fluência de prazo prescricional, já que interrompido.
É no sentido exposto, favorável à Fazenda Pública, o teor do enunciado 106 da Súmula do STJ, segundo a qual “proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência”.
Existem autores, porém, que defendem a inaplicabilidade do enunciado 106 da Súmula do STJ em execuções fiscais. Moura, por exemplo, argumenta:
“Não há que se falar em aplicação da Súmula 106 do STJ, quando o CTN (lei complementar) já fixou qual o marco para a interrupção da prescrição nas execuções fiscais, qual seja, o despacho que ordenar a citação. Se assim não fosse, o legislador teria alterado o inciso I, do parágrafo único, do artigo 174, do CTN, com a seguinte redação: ‘A prescrição se interrompe com a propositura da execução fiscal’, o que não ocorreu. (...) não obstante o prazo quinquenal, o Fisco deixa para propor as ações faltando poucos meses para o transcurso do prazo prescricional, e se utiliza da Súmula 106, STJ, para que a arguição da prescrição não seja acolhida. De mais a mais, quando a Fazenda Pública contribui para a ocorrência da prescrição, seja quando deixa para ajuizar a execução fiscal no último exercício ou quando propõem milhares de execuções simultaneamente, não há como ser aplicada a mencionada súmula”[18].
Paulsen, por sua vez, pontifica:
“O CTN enquanto lei de normas gerais de Direito Tributário, sob reserva de lei complementar, e a LEF, enquanto lei processual especial, prevalecem sobre as normas gerais de processo estabelecidas pelo CPC. Assim, ainda hoje, não tem aplicação às execuções fiscais o disposto no §1º do art. 219 do CPC, que prevê que a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação. Nas execuções fiscais, decorrido o prazo prescricional após o ajuizamento mas antes de proferido o despacho inicial que determinar a citação, cabe ao Juiz reconhecer de ofício, a prescrição, não havendo modo de vir a ser sanada”.[19]
Outro argumento apresentado por Moura para defender que a Súmula nº 106 do STJ não deve ser aplicada em execuções fiscais é o de que “há nítida diferença entre despacho e citação”[20], sendo o despacho, interruptor da prescrição, ato do Juiz, e não da Justiça, enquanto que a citação é ato da Justiça pelo qual se chama a juízo o sujeito passivo da relação processual para apresentar sua resposta. Moura considera, portanto, que o despacho não estaria incluído no “mecanismo da justiça”, termos da referida súmula.
Com a devida vênia, entendemos ser aplicável a Súmula nº 106 nos feitos executivos fiscais. Primeiramente, é de se afastar a ideia de que a demora para despachar não pode ser incluída como “demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça”. “Demora na citação”, nesse contexto, inclui também a demora na determinação da citação, isto é, o lapso temporal em que se aguarda o pronunciamento judicial. Igualmente, é indubitável que o juiz, cujo principal poder-dever é o de prestar a tutela jurisdicional, está inserido no mecanismo da justiça.
No tocante ao momento do ajuizamento da ação de cobrança fiscal, não importa se o Fisco movimentou a máquina judiciária faltando poucos meses para o transcurso do prazo prescricional. É indiferente, também, se ajuizou várias execuções simultaneamente. Deve-se aferir, apenas, se cada proposição deu-se dentro de prazo quinquenal, cujo termo inicial é constituição do crédito. Defender a inaplicabilidade do enunciado 106 da Súmula do STJ para executivos fiscais sob o argumento de que a Fazenda deixa para ajuizar pouco tempo antes do final do prazo é, em verdade, desconsiderar a existência do próprio prazo.
Também em sentido contrário às ideias de Moura trazidas, vem se posicionando o STJ, para quem é admissível a aplicação da Súmula 106 nas execuções fiscais. Veja-se julgado recente:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. ART. 514, II, DO CPC. REQUISITOS. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTIVA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 106/STJ. (...) 3. Em recurso especial representativo da controvérsia, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que iniciado o prazo prescricional com a constituição do crédito tributário, o termo ad quem se dá com a propositura da execução fiscal. Outrossim, a interrupção da prescrição pela citação válida, na redação original do art. 174, I, do CTN, ou pelo despacho que a ordena, conforme a modificação introduzida pela Lei Complementar 118/2005, retroage à data do ajuizamento, em razão do que determina o art. 219, § 1º, do CPC, quando a demora na citação não for atribuída ao Fisco. Precedentes: REsp 1.120.295/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 21/5/2010, julgado sob o rito do art. 543-C do CPC e AgRg no AREsp 167.016/DF, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira Turma, DJe 19/6/2012. (...). (STJ. AgRg no AREsp 571.242/SC 2014/0216564-4, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 05/05/2015, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/05/2015).
O entendimento de Paulsen, para quem é inaplicável às execuções fiscais o artigo 219, §1º, do CPC de 1973, também merece ser criticado. Isso porque o CTN, segundo nova tese do STJ, ao estabelecer o momento da interrupção da prescrição (despacho ordenando a citação, após a Lei Complementar nº 118/05), não dispôs acerca do momento no qual tal interrupção deveria começar a produzir efeitos. Essa data é buscada por analogia, equidade e princípios gerais de Direito Público no Código de Processo Civil, que estabelece o referido momento como sendo a data de propositura da ação. Eis um trecho do brilhante voto do Ministro Mauro Campbell Marques no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.392.745 - RS (2013/0214318-2)[21]:
“(...) restaram superados os entendimentos que se pretendiam literais no sentido de que a prescrição do crédito tributário somete se interrompia na data da citação pessoal feita ao devedor (redação original do art. 174, parágrafo único, I, do CTN) ou na data do despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal (redação atual dada pela Lei Complementar nº 118/2005). Em verdade, esses entendimentos confundiam o suporte fático hipotético eleito pelo ordenamento jurídico para haver a interrupção (ocorrência de citação ou despacho) com o momento da produção de seus efeitos (data da interrupção da prescrição). Fazendo uso de outras palavras, traduzindo-se para a terminologia tributária: confundia-se o critério material de uma hipótese de incidência com o critério temporal, cousas que podem estar em normas distintas (e normalmente o estão). Com efeito, se o CTN, a exemplo do CPC, elege expressamente o suporte fático hipotético para haver a interrupção do prazo prescricional (citação ou despacho), ele é omisso em relação ao momento da produção de seus efeitos, pois não estabelece uma data para tal. Essa data, seja por emprego da analogia, por emprego da equidade ou dos princípios gerais de Direito Público (fórmula prevista no art. 108, I, III e IV, do próprio CTN) pode e deve ser buscada no CPC que estabelece expressamente em seu art. 219, §1º, como sendo ‘a data da propositura da ação’”.
É de perceber, com o julgado colacionado, que se encontra superado o posicionamento de não aplicação aos feitos executivos fiscais do artigo 219, §1º, do CPC de 1973 (artigo 240, §1º, no CPC de 2015). O novo ponto de vista no STJ, em verdadeiro juízo de equidade e em analogia com norma vigente de Direito Processual Civil, dá ao crédito fiscal tratamento protetivo equivalente ao dado pelo para o crédito particular. É, portanto, sistematicamente melhor e atenta para o fato de que a inércia do credor se encerra com a propositura da ação.
Assim, a fluência de prazo prescricional perde sentido com o exercício do direito de ação, cuja efetivação é representada pela propositura da demanda. Desse modo, estando paralisado o processo por questões intrínsecas ao Poder Judiciário, seja pela demora a se conceder o despacho, seja pela demora a se efetivar a citação, não há o suporte fático para decretação de prescrição, qual seja a inércia da parte exequente.
Como alhures exposto, também é a inércia a condição fática eficiente para a decretação da prescrição intercorrente, cuja existência impede negligência da Fazenda Pública nas execuções fiscais em que almeja a satisfação do seu crédito e se constitui como medida punitiva para o titular de pretensão que se mantém inerte durante o processo. Dessa forma, importante consignar, igualmente, a impossibilidade de contagem de prazo prescricional intercorrente em casos de paralisação da marcha processual por questões que não podem ser atribuídas à exequente, isto é, questões ligadas à morosidade do Poder Judiciário.